Acórdão n.º 9/2010, de 9 de Março de 2010, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 2285/2009)

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ACÓRDÃO N.º 09/2010 - 09.Mar.2010 - 1ªS/SS

(Processo n.º 2285/2009) 

DESCRITORES:

Aquisição de Serviços / Arquitectura / Trabalhos de Concepção / Ajuste Directo / Concurso Público / Concurso Limitado por Prévia Qualificação / Publicidade de Concurso / Jornal Oficial / Nulidade / Formalidade Essencial / Recusa de Visto

SUMÁRIO:

1. A aquisição de serviços no domínio da arquitectura deve ser feita, em princípio, mediante concurso de concepção nos termos do art.º 219.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).

2. Tendo em conta o valor do contrato, e  as demais circunstâncias do caso, poderia ter sido seguido o procedimento de concurso de concepção (art.º 219.º e seguintes do CCP), pela modalidade de concurso público ou de concurso limitado com prévia qualificação (art.º 220.º, n.ºs1 e 2 do CCP), e o respectivo anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do CCP.

3. A falta de concurso público ou de concurso limitado com prévia qualificação, quando legalmente exigidos, torna nula a adjudicação e o contrato, por preterição de uma formalidade essencial, nos termos do art.º 133.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo e do n.º 2 do art.º 284.º do CCP.

4. A nulidade constitui fundamento de recusa de visto, nos termos do art.º 44.º, n.º 3, al. a) da Lei de Organização de Processo do Tribunal de Contas. 

Conselheiro Relator: João Figueiredo

ACÓRDÃO Nº 9 /2010 - 9.MAR.10-1ª S/SS

Processo nº 2285/2009

  

I - RELATÓRIO

1. A  Câmara Municipal  de Viseu (doravante designada por CMV)  remeteu, para efeitos de fiscalização prévia,  o contrato  relativo à "Elaboração do Projecto - Centro de Artes e Espectáculos de Viseu", celebrado, em 10 de Dezembro de 2009, entre o Município de Viseu e a empresa Filipe Oliveira Dias, Arquitecto, Lda., no montante de 764.525,21 €, ao qual acresce o correspondente valor em IVA, à taxa legal aplicável.

2. Para além dos factos referidos no número anterior, são dados ainda como assentes e relevantes para a decisão os seguintes:
a) O contrato acima referido tem como objecto, nos termos da sua cláusula primeira, a prestação de serviços de "Elaboração do Projecto - Centro de Artes e Espectáculos de Viseu";
b) Em documento de 20 de Janeiro de 2009 (1), assinado pelo vicepresidente da CMV e responsável pelos pelouros do ambiente, segurança, educação e cultura, refere-se que a  "construção de um Centro de Artes e Espectáculos de Viseu é imperativa" (...), devendo dele fazer parte para além de " um Grande Auditório com lotação variável"  (...),  "uma Sala de Exposições, um Café Concerto, uma Oficina de Artes, uma Galeria-Bar, Restaurantes, bares e parques de estacionamento" (...) e que é "desejo da Câmara solicitar a concepção do novo centro de Artes e Espectáculos de Viseu ao arquitecto portuense Filipe Oliveira Dias";
c) Em informação de 13 de Fevereiro de 2009 do Departamento de Habitação e Urbanismo (2),  "que serviu de caderno de encargos" (3), refere-se que "[e]mbora em abstracto, o procedimento previsto na alínea g) do artigo 27º e do artigo 219º do CCP pudesse ser igualmente aplicado,  e sem pôr em causa uma certa latitude interpretativa dos limites decorrentes dos motivos técnicos e artísticos, consagrados na alínea e) do artigo 24º do referido CCP, parece-nos porém estarem preenchidos os requisitos que sustentam a proposta decorrente desta informação" e que face à "identidade da obra em que a par da satisfação de um programa funcional e dos atributos técnicos inerentes ao mesmo, se procura uma identificação com um estilo conhecido/pressupostos de desenvolvimento do projecto na sua relação com a envolvente urbana/integração de valências, que se justifica, face ao currículo e obras do Sr. Arq. Filipe Oliveira Dias na área em causa, como seja  a título de exemplo o Teatro Helena Sá da Costa, no Porto, Teatro Municipal de Bragança, o Teatro Municipal de Vila Real, o Centro de Artes da Covilhã e Casa das Artes de Espectáculo e da Criatividade, em são João da Madeira, a adopção do ajuste directo ao abrigo da alínea e) do artigo 24º do CCP";
d) Em parecer do Gabinete Jurídico da CMV (4) de 18 de Fevereiro (5), refere-se que perante a factualidade atinente,  "parece-nos consubstanciar um desses casos" (...),  "em que a lei permite a adopção de determinados procedimentos pré-contratuais sem adstrição aos limites de valor de contrato a celebrar - artigo 23ª do CCP" (...),  "subsumindo-se às previsões legais contidas nos artigos 23º e 24º, nº 1, alínea e) do CCP, permitindo o convite directo ao Arquitecto Filipe Oliveira Dias";
e) Em reunião de 5 de Março de 2009, a CMV "dá por verificados os requisitos previstos nos art. 23º e 24º nº 1, alínea e) do CCP"  e deliberou-se por maioria de votos "possibilitar o desenvolvimento procedimental nos termos propostos".  Votando vencidos  contra a adjudicação por ajuste directo,  outros vereadores declararam  "que não estão cumpridos os requisitos formais previstos no Decreto-Lei nº 18/2008 de 29 de Junho, concretamente com o argumento invocado na alínea e) do art. 24º daquele diploma", (...) "uma vez que existem diversas entidades no mercado capazes de responder ao mesmo";
f) Após deliberação  tomada pela CMV em 2 de Abril de 2009, ao abrigo da alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CCP, foi dirigido convite para apresentação de proposta para ajuste directo ao arquitecto Filipe Oliveira Dias;
g) O contrato foi celebrado na sequência de decisão de adjudicação, por ajuste directo, tomada pela CMV em deliberação tomada em 9 de Julho de 2009;
h) A prestação de serviços apresenta um prazo de execução de 120 dias;
i) Tendo-se solicitado à autarquia que  esclarecesse como considera legalmente possível enquadrar o presente contrato no disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CCP,  veio aquela, no essencial, alegar o seguinte:

i. "Dispõe o artigo 24º, nº 1, alínea e) do Código dos Contratos Públicos (CCP) (...) que qualquer que seja o objecto do contrato a celebrar, pode adoptar-se o ajuste directo quando, por motivos técnicos, artísticos ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos, a prestação objecto do contrato só possa ser confiada a uma entidade determinada.
A Câmara Municipal de Viseu indica expressamente o citado preceito legal nas suas deliberações (...) na convicção de (...) ter por demonstrado que o contraente privado reunia e cumpria os requisitos técnicos e artísticos legitimadores da sua escolha (...)";
ii. "...o previsto no artigo 27º, nº 4 do CCP não proíbe, absolutamente, o recurso ao ajuste directo para a adjudicação de fornecimentos de projectos, mas tão só, que o seja "ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1" não excluindo, por isso, a utilização desse tipo de procedimento com fundamento noutras normas, como seja o artigo 24º.
Na verdade, resulta do artigo 27º, nº 1, que este artigo é aplicado "sem prejuízo do disposto no artigo 24ª", afigurando-se que este raciocínio não é prejudicado pelo artigo 219º do citado Código..."
Com efeito, o "serviço" a prestar, dada a sua especificidade, complexidade e definição de uma imagem artística /arquitectónica" conduziu ao entendimento de "que por tais razões, o referido serviço, apenas, poderia ser "confiado" ao prestador em causa.
Lembramos que o clausulado do contrato (...) não admite a cessão da posição contratual, em observância do que é determinado pelo artigo 317º, nº 1, alínea a) do CCP (...)".
 

II - FUNDAMENTAÇÃO  

3. No presente processo suscita-se exclusivamente uma questão: a de saber se é legalmente admissível a celebração do  presente  contrato por ajuste directo.

4. Analisemos tal questão - a da escolha do procedimento - explorando as soluções suscitadas pela própria entidade adjudicante e que se inserem nos domínios em que tal escolha é feita segundo critérios materiais, e não em função do valor. Não deixaremos contudo de analisar esta outra vertente a final.

II - A.  A formação do contrato por ajuste directo fundado em motivos artísticos

5. Para fundamentar o ajuste directo, como se viu, foi invocada a alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CCP que dispõe:
"Qualquer que seja o objecto do contrato a celebrar, pode adoptar-se o ajuste directo (...) quando [p]or motivos técnicos, artísticos ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos, a prestação objecto do contrato só possa ser confiada a uma entidade determinada".
Sublinhe-se que este artigo tem como epígrafe  "Escolha do ajuste directo para a formação de quaisquer contratos" e insere-se em capítulo sobre "Escolha do procedimento em função de critérios materiais" que, na sua primeira disposição normativa (o artigo 23º), estabelece:
"A escolha do procedimento nos termos do disposto no presente capítulo permite a celebração de contratos de qualquer valor, sem prejuízo das excepções expressamente previstas".

6. Sublinhe-se igualmente que disposição idêntica à do nº 1 do artigo 24º do CCP existe na Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de Março de 2004, que o CCP transpôs para a ordem jurídica nacional (6). Na sua subalínea b) da alínea 1) do artigo 31º também se prevê que "As entidades adjudicantes podem celebrar contratos públicos recorrendo a um procedimento por negociação, sem publicação prévia de anúncio (7)(...) [n]o caso de contratos públicos de serviços (...) [q]uando, por motivos  técnicos, artísticos ou atinentes à protecção de direitos de exclusividade, o contrato só possa ser executado por um operador económico determinado" (8).

7. Recorde-se ainda que, antes do início de vigência do CCP, análoga disposição existia na alínea d) do nº 1 do artigo 86º do Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, em que se admitia que o ajuste directo podia ter lugar, independentemente do valor, quando por "motivos de ordem técnica ou artística ou relativos à protecção de direitos exclusivos ou de direitos de autor, a locação ou o fornecimento dos bens ou serviços apenas possa ser executado por um locador ou fornecedor determinado".

8. Perante tais constatações, é possível afirmar pois não só coerência, no essencial, do Direito nacional com o Direito comunitário  - como não podia deixar de ser, já que está em causa nessas disciplinas normativas, a concretização de princípios fundamentais de Direito comunitário originário  - como continuidade de soluções no nosso Direito interno, permitindo-se fazer apelo, se for o caso, tanto às interpretações doutrinais como jurisprudenciais existentes, sobre as disposições normativas aplicáveis ao caso concreto. Mas como se verá ao longo do texto, esta continuidade no plano do Direito interno, está marcada por soluções que acentuam a vertente  concorrencial dos procedimentos relacionados com os serviços a adquirir no domínio da arquitectura. Não há pois rígida manutenção do Direito. Há continuidade, mas também evolução.

9. Face ao que dispõe aquela norma e ao que está em causa no presente processo, não nos preocupemos com o entendimento a dar ao pressuposto relacionado com a  "protecção de direitos exclusivos", mas com a interpretação a dar a "motivos técnicos" e "motivos artísticos". Sem nos querermos alongar sobre tal matéria, pode afirmar-se que estamos perante conceitos de conteúdo indeterminado que à Administração e ao intérprete compete preencher: o seu conteúdo e extensão é em larga medida incerto (9), não permitindo uma comunicação clara e, na sua interpretação, a lei confere uma margem de discricionariedade  à Administração e  ao intérprete, para a fixação do conteúdo do conceito.
Importa igualmente sublinhar a importância do pressuposto de que "a prestação objecto do contrato só possa ser confiada a uma entidade determinada",  recaindo sobre a Administração uma margem de apreciação, de determinação e de demonstração de que o pressuposto se verifica. De qualquer modo também aqui há uma margem de discricionariedade, embora limitada.
De facto, como se sabe,  um poder discricionário não é um poder arbitrário.  "A discricionariedade não dispensa, pois, o agente de procurar uma só solução para o caso: aquela que considere, fundadamente, a melhor do ponto de vista do interesse público" (10).
A margem de apreciação e decisão da Administração está balizada por critérios de competência e outros fixados pela lei para o exercício dos poderes discricionários, pelo respeito pelas finalidades da norma e pelos princípios gerais a que se subordina a actividade administrativa, que constituem a dimensão vinculada no exercício daqueles poderes.
E, como é mais que reafirmado na doutrina e na jurisprudência, não sendo os poderes discricionários poderes arbitrários  - até porque, no exercício do que nesta matéria está em causa, devem ser observados os referidos critérios,  finalidade e princípios - o seu exercício está igualmente, nessa sua dimensão vinculada, também sujeito a controlo jurisdicional. 
Assim uma entidade adjudicante, perante o caso concreto, seguindo os critérios fixados pela lei, observando a finalidade da norma e respeitando princípios a que se subordina a actividade administrativa, pode decidir quanto à verificação daqueles pressupostos. E este Tribunal deve exercer o controlo jurisdicional do exercício daquele poder, na dimensão vinculada já referida, para salvaguarda da legalidade administrativa na sua vertente financeira, usando as competências que a lei lhe confere.

10.Recorde-se que sobre a matéria daquela disposição legal já no passado este Tribunal se pronunciou. Veja-se, de entre todas as decisões proferidas, o seguinte trecho do Acórdão nº 20/07, de 20 de Novembro (11):
"O que o preceito consagra é a exclusividade de uma certa e determinada entidade para a prestação dos serviços em causa, por só ela ter a aptidão técnica ou artística necessária para os prestar. Ou seja, o ajuste directo apenas é admitido quando no mercado haja uma única entidade detentora de aptidão técnica ou artística capaz de prestar os serviços pretendidos. Ou dito ainda de outra forma: os serviços a prestar são de tal maneira exigentes do ponto de vista técnico ou artístico que só aquela entidade concreta, e mais nenhuma outra, detêm capacidade técnica ou artística para os prestar. Só assim interpretado é que o preceito se pode entender como excepção à regra geral da realização prévia de concurso público. Efectivamente se só aquela determinada entidade pode, se só ela é capaz de prestar o serviço pretendido, não vale a pena, por inútil, submeter essa prestação à concorrência abrindo para isso um concurso público".

11. Na mesma linha vai a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Veja-se designadamente o seguinte trecho do Acórdão de 10 de Abril de 2003 (Comissão contra República Federal da Alemanha) (12):
 "58. A este respeito, importa referir, em primeiro lugar, que as disposições do artigo 11º, nº 3, da Directiva 92/52 (13), que autorizam derrogações às regras que visam garantir a efectividade dos direitos reconhecidos pelo Tratado no sector dos contratos públicos de serviços, devem ser objecto de interpretação estrita, cabendo o ónus da prova de que se encontram efectivamente reunidas as circunstâncias excepcionais que justificam a derrogação a quem delas pretenda prevalecer-se (...).
59. Quanto ao artigo 11º, nº 3 alínea b), da Directiva 92/50 esta disposição apenas pode aplicar-se quando se provar que, por motivos técnicos, artísticos ou atinentes á protecção de direitos exclusivos, apenas existe uma empresa que está efectivamente em condições de executar o contrato em causa (...).

II - B. A formação do contrato por concurso de concepção

12.Na apreciação do caso  sub judicio - e como a matéria dos autos expressamente já refere e na entidade adjudicante se ponderou (14)- não pode igualmente ignorar-se o que se dispõe  no artigo 219º do CCP de interesse para o caso concreto:
"1. O concurso de concepção permite a selecção de  um ou demais trabalhos de concepção, ao nível de estudo prévio ou similar, designadamente nos domínios artístico, do ordenamento do território, do planeamento urbanístico, da  arquitectura, da engenharia ou do processamento de dados.
2. Quando a entidade adjudicante pretenda adquirir por ajuste directo, adoptado ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 27º, planos, projectos ou quaisquer criações conceptuais que consistam na concretização ou no desenvolvimento dos trabalhos de concepção referidos no número anterior, deve previamente adoptar um concurso de concepção nos termos previstos no presente capítulo." E o artigo 220º no seu nº 1 estabelece que o  "concurso de concepção reveste a modalidade de concurso público" e no seu nº 2 fixam-se os pressupostos com que pode ser desencadeado o concurso público por prévia qualificação.
Retenha-se ainda que o artigo 27º  - sob a epígrafe  "Escolha do ajuste directo para a formação de contratos de aquisição de serviços" - na alínea g) do seu nº1 dispõe que se pode adoptar o ajuste directo quando: "O contrato, na sequência de um concurso de concepção, deva ser celebrado com o concorrente adjudicatário ou com um dos concorrentes adjudicatários nesse concurso, desde que tal intenção tenha sido manifestada nos respectivos termos de referência e de acordo com as regras nele estabelecidas". Isto é: é admissível o recurso ao ajuste directo, mas na sequência de concurso de concepção.
E do nº 4 do artigo 27º, resulta que mesmo que sendo possível o recurso ao ajuste directo nos casos da alínea b) do nº1, tal recurso já não é admissível "quando o serviço a adquirir consista na elaboração de um plano, de um projecto ou de uma qualquer criação conceptual [no domínio] da arquitectura".
Deve ver-se nessa disposição o reforço das soluções concorrenciais no domínio da criação conceptual em arquitectura.
E deve ter-se em conta ainda o nº 2 do artigo 114º quando estabelece:
"No caso de o ajuste directo ser adoptado ao abrigo do disposto na alínea g) do nº1 do artigo 27º, a entidade adjudicante deve convidar a apresentar propostas todos os adjudicatários do concurso de concepção. De novo se deve ver aqui o reforço de soluções concorrenciais.
E no processo de formação do contrato deve igualmente atender-se ao disposto no nº 5 do artigo 115º, e nos nºs 5 e 6 do artigo 27º.
Em conclusão: quando envolvam concepção, a aquisição de serviços no domínio da arquitectura, face ao que agora se expôs, deve ser feita,  em princípio, mediante concurso de concepção nos termos do artigo 219º e seguintes e outras disposições, designadamente as já expressamente referidas.

13.Também a Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 31 de Março de 2004, estabelece na alínea e) do nº 11 do artigo 1º que "Concursos para trabalhos de concepção são procedimentos que permitem à entidade adjudicante adquirir principalmente nos domínios do ordenamento do território, do planeamento urbano, da arquitectura e da engenharia civil, ou do processamento de dados, um plano ou um projecto seleccionado por um júri de concurso, com ou sem a atribuição de prémios"
E o Título IV da Directiva que estabelece  as "Regras aplicáveis aos concursos para trabalhos de concepção no domínio dos serviços"estabelece na alínea a) do nº 2 do artigo 67º que tal título se aplica aos "concursos  organizados no âmbito de um processo de adjudicação de um contrato público de serviços".
E a alínea d) do nº 2 do artigo 1º da Directiva define que são "Contratos públicos de serviços" os "contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II".
E no anexo II A (relativo aos serviços referidos na alínea d) do nº 2 do artigo 1º), na sua categoria 12 constam os "serviços de arquitectura".
Concluindo no que respeita á disciplina normativa da Directiva: os serviços de arquitectura são objecto de contratos públicos de serviços e, quando envolvam trabalhos de concepção, devem ser,  em princípio, o resultado de um  concurso para trabalhos de concepção no domínio dos serviços, seguindo as regras do Título IV (15).

14.Também aqui convém relembrar que já o Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, estabelecia regime idêntico ao que resulta do artigo 219º do CCP, partindo do nº 1 do seu artigo 164º que estabelecia que: "Os contratos de concepção destinam-se a fornecer projectos ou planos, designadamente nos  domínios artístico, do ordenamento do território, do planeamento urbanístico, da arquitectura e engenharia civil ou do processamento de dados."
E o nº 1 do artigo 165º remetia o processo de formação de tais contratos para o regime geral, fazendo pois depender a escolha do procedimento dos pressupostos nele fixados.

15.Também neste caso, é possível afirmar não só coerência, no essencial, do Direito nacional com o Direito comunitário, como continuidade de soluções no nosso Direito interno. E também neste regime, pelo menos quanto ao conceito de  "domínio artístico", se poderá desenvolver a reflexão  já acima feita em matéria de conceitos de conteúdo indeterminado e de exercício de poderes discricionários.                                               

II  - C.  Os motivos artísticos como fundamento de ajuste directo ou de concurso de concepção na formação de contratos: um conflito normativo?

16.Uma análise mais atenta dos textos normativos permite fazer uma constatação: nas disposições relativas ao ajuste directo com fundamento em motivos artísticos há integral coincidência, no essencial, na disciplina normativa do Direito nacional e do Direito Comunitário.
Nas disposições relativas ao concurso de concepção, se em ambas as fontes normativas se prevê a aplicação de tal modalidade de concurso ao "domínio da arquitectura", só na disposição nacional se prevê expressamente tal aplicação também no "domínio artístico". Contudo, na Directiva, mediante o uso do advérbio  "principalmente", não fica afastada essa possibilidade.
Em ambos os textos normativos há expressa referência aos trabalhos nos domínios da arquitectura, quando envolvam concepção, como devendo ser objecto de concursos de concepção.
Assim, sendo a arquitectura indubitavelmente uma "arte" ou um "domínio artístico", resulta então do CCP, mas também da Directiva, um conflito normativo ou a possibilidade de, sem qualquer critério, poder o aplicador da lei socorrer-se de qualquer das soluções referidas em matéria de escolha do procedimento  - como aconteceu no presente processo  -quando está em causa a realização de trabalhos daquela "arte" ou daquele "domínio"?

Veremos que não.

II  - D. Os princípios da contratação pública na interpretação e aplicação das normas relativas á formação de contratos envolvendo motivos artísticos. 

17.Na interpretação e aplicação destas disposições - e das demais - do CCP e na sua aplicação, há que atender-se que devem ser observados os princípios a que se subordina a contratação pública: "[à] contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência", estabelece o nº 4 do artigo 1º do Código. E deve igualmente ter-se em conta que no artigo 16º, ao fazer-se o elenco dos tipos de procedimento a adoptar na contratação pública, também se estabelece o tipo de contratos a que o Código se aplica: aqueles  "cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência do mercado".
A mesma orientação resulta do nº 1 do artigo 5º quando nele se determina que  "[a] parte II do presente Código não é aplicável à formação de contratos (...) cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidos à concorrência do mercado".
A promoção da concorrência atravessa pois por todo o Direito da Contratação Pública, como forma de melhor se satisfazerem os interesses e necessidades públicas: "Chamar a concorrência (...) pressupõe (...) considerar os concorrentes como opositores uns dos outros, permitindose-lhes que efectivamente compitam ou concorram entre si, que sejam medidos (eles ou as suas propostas) sempre e apenas pelo seu mérito relativo (...) (16)".
Há pois um apelo geral à concorrência. A  consagração do princípio da concorrência, no âmbito da contratação pública, resulta do texto constitucional que estabelece no seu artigo 81º, que incumbe ao Estado "assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral". A CRP assume assim  "o princípio da concorrência como valor objectivo ou constelação de valores objectivos de ordem constitucional (17)".
A observância do princípio da concorrência é pois luz a ter em conta na interpretação e aplicação das normas da contratação pública, em particular daquelas que, com  ratio legis específico, parecem constituir excepção à sua observação. E deve ser tido particularmente em conta ainda quando se trata de preencher conceitos de conteúdo indeterminado ou de exercer poderes discricionários. Em todos estas situações, deve privilegiar-se soluções interpretativas restritivas (18).

18.A par do princípio da concorrência,  "muitas vezes sobrepostos, outras vezes para o garantir, aparece o princípio da igualdade a dominar os procedimentos adjudicatórios" (19), como aliás resulta da disposição acima citada. Também consagrado na CRP como princípio geral no artigo 13.º e como princípio de actuação da Administração no artigo 266.º, n.º 2, e previsto também no artigo 5.º do CPA, visa-se no essencial, no específico domínio dos mercados públicos, garantir a todos os operadores económicos uma igualdade  de acesso a esses mercados e um tratamento igual de todos por parte da Administração.  Tal princípio impõe  pois  à Administração que assegure uma conduta igual para com todos os interessados e para com todos os concorrentes e impõe-lhe que ora adopte comportamentos, ora se abstenha de outros, visando objectivos de não discriminação, jurídica ou fáctica.

19.Se o princípio da concorrência é, numa particular perspectiva, uma das inúmeras traduções do princípio da igualdade (a referida igualdade de posições entre  os operadores económicos no acesso aos mercados públicos e de não discriminação) e este instrumento daquele, também o princípio da transparência decorre do princípio da igualdade: a Administração tem de agir de forma imparcial e transparente para que a igualdade seja de facto assegurada. A Administração, na contratação pública, deve assegurar uma posição de equidistância relativamente aos interesses particulares e tal posição só é eficaz se a administração actuar de forma transparente. E para observância do princípio da transparência é igualmente fundamental dar cumprimento às regras de publicidade dos procedimentos de contratação pública.

20.É pois á luz dos princípios da concorrência, da igualdade e da transparência - consagrados no referido nº 4 do artigo 1º do CCP - que as normas aplicáveis ao caso concreto devem ser interpretadas. E, repete-se, quando as normas admitem uma solução que restringe a plena observância desses princípios devem ser objecto de interpretação restritiva (20). E devem tais princípios ser tidos especialmente em conta quando se trata da integração de conceitos indeterminados ou de exercício de poderes discricionários.
E relembre-se que agora se questiona a possibilidade de escolha de um dos procedimentos possíveis  - o ajuste directo ou um concurso por concepção - quando estão em causa motivos ou domínios artísticos e não se contesta, à partida, a qualificação de trabalhos de arquitectura como se integrando em tais domínios.
Feita esta breve deambulação pelos princípios fundamentais da contratação pública, é tempo de voltar ao caso concreto. 

II - E. A avaliação do caso concreto

21.Dos pontos anteriores resulta uma orientação essencial já afirmada e que agora se repete: quando a letra dos textos normativos admite a adopção de soluções alternativas, exige a integração de conceitos de conteúdo indeterminado ou autoriza o exercício de poderes discricionários, deve fazer-se apelo a uma interpretação restrita da letra, de forma a se respeitar os princípios a que se subordina a contratação pública.                                           

22.Assim, ainda que seja defensável que os trabalhos de arquitectura possam ser considerados no "domínio artístico", a lei ao consagrar expressamente os trabalhos de arquitectura, que envolvam concepção, como sendo objecto de concursos de concepção, está claramente a dispor que,  em princípio, é por essa via que se deve desenrolar o processo de formação de contratos que tenham tal objecto e não por ajuste directo.
Mais: dado que na mesma disposição legal - o artigo 219º - o legislador trata igualmente de  "domínio artístico" e da  "arquitectura", está a dar uma clara orientação de que cada um daqueles conceitos se refere a uma realidade específica.
Ainda que na ordem social  "arquitectura" possa ser considerado um "domínio artístico", no Código dos Contratos Públicos são realidades diferentes. No caso, não colhe pois a argumentação de que a arquitectura também é uma "arte". É que sendo-o, o legislador, para efeitos de contratação pública, deu-lhe um tratamento diferente.
Assim, a alínea e) do nº 1 do artigo 24º do CCP quando prevê "motivos artísticos" não abrange os serviços prestados no domínio da arquitectura. Todas as disposições normativas relevantes militam,  em princípio, a favor da adopção do concurso de concepção como modalidade de procedimento para a celebração de contratos de concepção no domínio da arquitectura: como já se viu, o artigo 219º, a alínea g) do nº 1 do artigo 27º (na medida em que permite o ajuste directo só na sequência de tal concurso), a interpretação conjugada da alínea b) do nº 1 e do nº 4 do mesmo artigo 27º, em que de novo se exclui, mesmo nas situações da alínea b), a possibilidade de recurso ao ajuste directo "quando o serviço a adquirir consista na elaboração de um plano, de um projecto ou de uma qualquer criação conceptual [no domínio] da arquitectura" (21).                                           

23.Sublinhe-se pois que,  em princípio, há uma opção legalmente fundada pelo concurso de concepção. Mas dissemos e repetimos que tal conclusão é retirada como  princípio, face aos termos em que todas estas questões foram suscitadas a  este Tribunal no presente processo. Porque há uma outra dimensão que logo deve ser tida em conta: a do valor do contrato.
De facto, face ao concreto valor da adjudicação pretendida pode ser possível a adjudicação por ajuste directo: desde que tal valor esteja dentro dos limiares legalmente consagrados para o ajuste directo. Mas, nesta via de escolha do procedimento, estamos no âmbito de tal escolha em função do valor do contrato (artigo 17º e seguintes) e não em função de critérios materiais (artigo 23º e seguintes).

24.Ora, nem nesta dimensão o contrato em apreciação e o respectivo procedimento de formação poderiam ser considerados em conformidade com a lei. De facto, dispõe o nº 4 do artigo 20º do CCP:
"No caso de se tratar de contratos de aquisição de planos, de projectos ou de criações conceptuais [no domínio] da arquitectura (...) a escolha do ajuste directo só permite a celebração pelas entidades adjudicantes referidas no nº 1 do artigo 2º, de contratos de valor inferior a (euro) 25 000." 
E com esta determinação  - consagrando um valor muito inferior ao admitido noutros casos para o ajuste directo - se confirma uma vez mais uma opção do legislador para soluções concorrenciais no domínio da aquisição de serviços de arquitectura.
E o valor do contrato efectivamente celebrado tem um valor muito superior ao permitido por lei para o ajuste directo.

25.E, em aparte se diga: na linha do que se defendeu, se porventura se quiser adquirir um outro determinado serviço, que envolva concepção e que se insira em outro  "domínio artístico" - conceito de conteúdo indeterminado - a opção entre o concurso de concepção e o ajuste directo - permitido em alternativa pelos artigos 24º, nº 1, alínea e) e 219º, como um poder discricionário atribuído à Administração - há-de ser feita, com fundamentação expressa e adequada, de forma a melhor se respeitarem os princípios da concorrência, da igualdade e da transparência a que se subordina a contratação pública. E se, no exercício daquele poder discricionário, ficar demonstrado que é o ajuste directo a solução adequada, há-de ficar claro na sua fundamentação que  "a prestação objecto do contrato só pode ser confiada a uma entidade determinada".

26.Em conclusão: no presente caso, não poderia ter sido feita a adjudicação por ajuste directo (22). Tendo em conta o valor do contrato, e face às demais circunstâncias do caso, deveria ter sido seguido o procedimento de concurso de concepção (artigo 219º e seguintes), pela modalidade de concurso público ou de concurso limitado com prévia qualificação (artigo 220 nºs 1 e 2). E face ao valor do contrato, o respectivo anúncio deveria ser publicado no Jornal Oficial da União Europeia, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 20º do CCP.
No processo fica igualmente demonstrado que não se observaram os princípios da concorrência, da igualdade e da transparência.
A falta de concurso público ou de concurso limitado com prévia qualificação, sendo legalmente exigidos no caso, torna nula a adjudicação e o contrato a que deu origem  - o relativo à  "Elaboração do Projecto  -Centro de Artes e Espectáculos de Viseu"  - por preterição de uma formalidade essencial,  nos termos do artigo 133º, nº1 do Código do Procedimento Administrativo e do nº 2 do artigo 284º do CCP.
A nulidade, constitui fundamento de recusa de visto, nos termos do artigo 44º, nº3, al. a) da LOPTC (23).                                           

27. Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea a) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.

28. São  devidos  emolumentos nos  termos do  artigo  5.º,  n.º  3,  do  Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio, e respectivas alterações.

Lisboa, 9 de Março de 2010

Os Juízes Conselheiros, - (João Figueiredo - Relator) - (António Santos Soares)- (Helena Abreu Lopes)

Fui presente - (Procurador Geral Adjunto) - (Jorge Leal)


(1) A fls. 11 ss. dos autos.
(2) A fls. 16 e ss. dos autos. Documento junto ao processo pelo ofício da CMV com data de registo de 22.12.2009.
(3) Vide ofício da CMV com data de registo de 22.12.2009.
(4) Documento junto ao processo pelo ofício da CMV com data de registo de 22.12.2009.
(5) Vide referência a esta data feita na acta da reunião da CMV de 5 de Março de 2009 e no ofício da CMV com  a data de registo de 12.02.2010.
(6) Vide o nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o CCP.
(7) A alínea d) do nº 11 do artigo 1º da Directiva estabelece que  "Procedimentos por negociação são procedimentos em que as entidades adjudicantes  consultam os operadores económicos da sua escolha e negoceiam as condições do contrato com um ou mais de entre eles".
(8) Na Directiva 92/50/CEE do Conselho de 18 de Junho de 1992 também inseria norma análoga na alínea b) do nº3 do artigo 11º.
(9) Karl Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, FCG, 1972, p.173
(10) In Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2003, p. 80.
(11) Acórdão tomado no Plenário da 1ª Secção no Recurso Ordinário nº 23/2007. Mas vejam-se igualmente os acórdãos nº 101/03, de 14 de Outubro-1ªS/SS e o nº 170/09, de 4 de Dezembro-1ªS/SS.
(12) Colectânea de Jurisprudência 2003, página I-03609.
(13) Vide acima nota de rodapé nº 8.
(14) Vide acima a alínea c) do nº 2.  
(15) Deve ainda ter-se em conta o valor dos limiares, como aliás também refere o nº2 do citado artigo 67º.
(16) In Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, "Concursos e outros procedimentos de adjudicação administrativa", p.101, Almedina, 1998.
(17) Vide anotação de Manuel Afonso Vaz ao artigo 81º da CRP, in "Constituição Portuguesa Anotada", de Jorge de Miranda e Rui Medeiros, Coimbra Editora, 2006.
(18) Veja-se o trecho do Acórdão do TJCE acima transcrito no nº 11.
(19) In Mário Esteves de Oliveira, op. cit. p. 116.
(20) Veja-se o trecho do Acórdão do TJCE acima transcrito no nº 11.
(21) Contrariamente ao que foi alegado no presente processo, como acima se viu na subalínea ii da alínea i) do nº2.
(22) Donde, o argumento que foi produzido de que no contrato consta cláusula de não admissão de cessão da posição contratual, perde qualquer relevância.
(23) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, e 35/2007, de 13 de Agosto.