Acórdão n.º 7/2011, de 22 de Fevereiro de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1809/2010)

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ACÓRDÃO Nº 7 /2011 - 22.FEV.-1ª S/SS

Processo nº 1809/2010

 

I. RELATÓRIO

O Hospital Garcia de Orta, E.P.E. remeteu a este Tribunal, para fiscalização prévia, o contrato de empreitada de "Construção das novas instalações dos Serviços Farmacêuticos e do Serviço de Aprovisionamento do Hospital Garcia de Orta, EPE", celebrado, em 9 de Dezembro de 2010, entre aquela entidade e a sociedade Rui Ribeiro, Construções, S.A., pelo preço de €1.166.981,96, acrescido de IVA.
 

II. DOS FACTOS 
 

Para além do referido no número anterior e nos pontos subsequentes, são dados como assentes e relevantes para a decisão os seguintes factos:
a) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital de 14 de Outubro de 2009 foi autorizada a abertura de um procedimento de Consulta ao Mercado com vista à celebração do contrato para a execução da empreitada em causa;
b) Como fundamento para a escolha do referido procedimento invocou-se tão só o disposto no artigo 25.º, n.º 3, alínea c), do Regulamento de Aquisição de Bens, Serviços e Empreitadas do Hospital Garcia de Orta;
c) Em 15 de Dezembro de 2009 foram enviados convites para a apresentação de propostas a 5 empresas: Cobeng, PMJ, Rui Ribeiro, Matias & Ávilas e Stap;
d) Nos termos do artigo 10.º do Programa da Consulta ao Mercado, o prazo para apresentação de propostas era de 30 dias úteis a contar da data do convite;
e) Foram apresentadas propostas pelas 5 empresas convidadas;
f) O artigo 14.º do Programa da Consulta ao Mercado estabeleceu requisitos de qualificação económica e técnica dos candidatos, determinando que só seriam seleccionados concorrentes que cumprissem determinadas condições mínimas relativamente a cada um dos critérios de selecção;
g) As condições mínimas de qualificação económica foram definidas em termos de:

a) Autonomia financeira do candidato;

b) Situação líquida do candidato;

c) Volume de negócios do candidato;

h) No que concerne à autonomia financeira do candidato (capitais próprios/activos líquidos), estabeleceu-se que o mesmo deveria ter uma autonomia financeira igual ou superior a 15% no último exercício, ou no mínimo de 5% no mesmo exercício. Neste último caso, o candidato deveria, em caso de adjudicação, apresentar até à data da assinatura do contrato uma garantia bancária à primeira solicitação, irrevogável e incondicional, de valor igual à diferença entre a autonomia exigida e a detida;
i) No que respeita à situação líquida, o candidato deveria ter capitais próprios positivos no último exercício e respeitar o disposto no artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais;
j) No que respeita ao volume de negócios, o candidato deveria apresentar, relativamente ao último exercício, um valor igual ou superior a €10.000.000,00 e um volume de negócios anual igual ou superior a 40% daquele montante;
k) No artigo 19.º do Programa da Consulta estabeleceu-se que, no prazo de 10 dias após a notificação da adjudicação, o adjudicatário deveria apresentar os documentos de habilitação previstos no artigo 81.º do Código dos Contratos Públicos, designadamente os alvarás ou os títulos de registo emitidos pelo Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P., contendo as habilitações adequadas e necessárias à execução da obra a realizar;
l) Na qualificação dos 5 candidatos, o júri concluiu que 3 deles deveriam ser excluídos (Cobeng, PMJ e Matias & Ávilas) por apresentarem um volume de negócios inferior a €10.000.000,00 no último exercício (2008), muito embora apresentassem um rácio de autonomia financeira superior ao exigido (1);
m) Mais concluiu que o concorrente Stap, embora cumprindo os requisitos de qualificação, também deveria ser excluído, por não apresentar documentos comprovativos de ter a situação perante o Fisco e a Segurança Social regularizada (2);
n) Quanto ao candidato restante (Rui Ribeiro, Construções, S.A.), o júri concluiu que apresentava um rácio de autonomia financeira de 11,5%, inferior, portanto, ao exigido, mas que lhe poderia ser solicitada uma declaração bancária com vista à apresentação de uma garantia bancária de valor igual à diferença entre a autonomia detida e a exigida (3);
o) Em alternativa, o júri propôs a anulação da consulta e a reavaliação das exigências feitas, eventualmente reduzindo o valor exigido quanto ao volume de negócios dos candidatos no último exercício para €2.000.000, "indo de encontro à actual conjuntura económica" (4);
p) Em 28 de Abril de 2010, o Conselho de Administração deliberou a continuidade do procedimento com o concorrente Rui Ribeiro, nos termos referidos na alínea n) supra (5);
q) Em 13 de Maio de 2010 e em datas subsequentes, o concorrente Rui Ribeiro alegou repetidamente junto do júri, entre outros aspectos, o seguinte (6):
"(...) 3)Autonomia Financeira
Enviamos para conhecimento cópia da Portaria n.º 971/2009 do MOPTC onde, devido à grave crise económica, os rácios mínimos de autonomia financeira exigidos passaram a ser de 10%.
Assim, solicitamos que na vossa análise seja considerado como valor mínimo de autonomia financeira, o em vigor no corrente ano (10%)"
r) Na acta do júri n.º 2 (7) refere-se a este respeito:
" (...) Com base na correspondência trocada entre o Júri e o concorrente Rui Ribeiro e as duas reuniões entre ambos, o Júri concluiu que o concorrente Rui Ribeiro está interessado em executar a obra, em caso de adjudicação por parte do Hospital, nas seguintes condições:
- Aceitação por parte do Hospital do teor da portaria n.º 971/2009 sobre as alterações dos índices de autonomia financeira exigidos, dispensando como tal a apresentação da correspondente garantia bancária prevista no programa da consulta.
- (...)"
s) Questionado por este Tribunal sobre a alteração dos parâmetros de qualificação económica, o Hospital ofereceu a seguinte resposta (8):
"(...) Os requisitos de qualificação financeira não foram alterados (...). Na acta n.º 1 do júri da Consulta ao Mercado, figura um quadro comparativo dos requisitos financeiros de todos os concorrentes, onde se refere que nenhum dos concorrentes preenche os requisitos na totalidade. No entanto, refere igualmente que, de acordo com a alínea a) do n.º 3 do art. 14.º do Programa da Consulta, será possível a apresentação de uma garantia bancária por parte do concorrente Rui Ribeiro, Construções, S.A. O Conselho de Administração despacha favoravelmente na Informação n.º 0527/SIE/10 (...). Na acta n.º 2 do júri é referida a apresentação por parte do concorrente Rui Ribeiro de argumentação legal para a não apresentação desta garantia, com o envio da Portaria n.º 971/2009, de 27 de Agosto, que cria um regime transitório de excepção relativamente ao fixado na Portaria n.º 994/2004, de 5 de Agosto (...), o que é aceite pelo júri, ficando portanto qualificado um único concorrente na Consulta ao Mercado. (...)"
t) As actas do júri n.ºs 2 e 3 e a correspondência trocada entre o júri e o concorrente Rui Ribeiro, Construções S.A (9). evidenciam que ocorreram negociações entre o júri e o concorrente quanto ao conteúdo da proposta e ao âmbito e condições de execução da empreitada:
- Foi negociado o preço proposto, tendo sido apresentada um preço final de €1.166.981,96. A proposta inicialmente apresentada pelo concorrente era de €1.217.888,74;
- Esse preço final só foi atingido após acordo quanto à retirada da empreitada do fornecimento de alguns materiais, que passariam a ser adquiridos directamente pelo Hospital no mercado, sendo a sua montagem assegurada pelo adjudicatário;
- Após disputas sobre o prazo de execução, esse prazo foi contratualmente fixado em 180 dias.

O artigo 24.º do Programa da Consulta estabelecia um prazo de execução de 12 meses (10) e o artigo 5.º do Caderno de Encargos um prazo de 180 dias (11). Durante o período de apresentação de candidaturas foi suscitado o esclarecimento dessa contradição, tendo o Hospital esclarecido os concorrentes de que o prazo era de 365 dias corridos (12). A proposta do concorrente adjudicatário foi apresentada com um prazo de execução de 365 dias (13). Quando lhe foi solicitado um preço mais baixo, o concorrente pretendeu que o prazo de execução era de 6 meses, tendo aceite, a insistência do Hospital, que fosse de 12 meses, mas propondo-se concluir a empreitada em 8 meses, desde que os pagamentos lhe fossem feitos de acordo com a execução efectiva.
Como se referiu, o contrato acabou por consagrar um prazo de 6 meses;
u) Questionado por este Tribunal sobre a possibilidade de terem sido efectuadas negociações, quando as mesmas não estavam previstas no programa do procedimento, o Hospital alegou o seguinte (14):
"Efectivamente não foi prevista a possibilidade de negociação nas cláusulas do Programa do Procedimento. No entanto, consta do parecer jurídico do Gabinete de Assessoria Jurídica e Contenciosa, relativamente à aprovação das peças do procedimento, informação n.º 148/GAJC/2009, a referência às competências do júri do procedimento, incluindo a possibilidade de negociação de propostas. Esta informação obteve parecer favorável por parte do Conselho de Administração (...)
Por outro lado, e no decorrer do processo, existe um despacho do vogal do Conselho de Administração, solicitando uma nova negociação do montante global da empreitada, por parte do júri, quando é apresentada a Acta n.º 2 do júri (...). Neste despacho são invocadas as dificuldades financeiras do Hospital e a necessidade de redução de despesa exigida por novas directivas governamentais.
A negociação foi efectuada com o único concorrente qualificado de acordo com os requisitos financeiros exigidos, relativamente ao preço final e prazo de execução da empreitada, não tendo sido apresentada qualquer reclamação por parte dos restantes concorrentes, quando tomaram conhecimento da notificação de adjudicação. (...)"
v) Na informação n.º 148/GAJC/2009 do Gabinete de Assessoria Jurídica e Contencioso do Hospital (15), refere-se sobre as funções do júri:
"(...) Os procedimentos para a formação de contratos são conduzidos por um júri, a designar pelo Conselho de Administração. Esse júri é composto em número ímpar por um mínimo de 3 membros efectivos: um presidirá e dois suplentes (artigo 34.º do Regulamento).
O júri do procedimento inicia o exercício das suas funções no dia útil subsequente ao do envio do convite ou envio para publicação (n.º 1, artigo 35.º do Regulamento).
Compete, designadamente, ao júri:
a)Fundamentar em acta as suas deliberações, sendo as mesmas aprovadas por maioria de votos;
b)Realizar todas as operações de consulta, podendo para o efeito solicitar apoio a outros serviços do HGO;
c)Solicitar por escrito, aos candidatos esclarecimentos sobre aspectos das propostas que suscitem dúvidas, fixando o prazo de 3 dias para a obtenção, por escrito, da respectiva proposta;
d)Promover sessões de negociação com os titulares das propostas consideradas mais vantajosas, com vista à eventual obtenção de melhores condições contratuais."
w) Questionado sobre a possibilidade de modificação do objecto da empreitada e das condições de execução da mesma, o Hospital referiu (16):
"Relativamente à alteração do objecto do contrato, considera-se que este permaneceu sempre o mesmo: Empreitada para novas instalações dos Serviços Farmacêuticos e do Serviço de Aprovisionamento. O facto de se ter retirado alguns dos materiais incluídos na obra (louças sanitárias, dispensadores, etc.) não essenciais para a obra, deveu-se à necessidade de redução de despesa (...), não se consubstanciando, em nosso entender, numa alteração do objecto do contrato. De qualquer modo, relembramos que esta questão foi acordada com o único concorrente qualificado em termos financeiros, de acordo com os critérios estabelecidos no caderno de encargos, não podendo portanto ser negociada com qualquer dos restantes concorrentes. Foi igualmente alterado o prazo de execução que foi assumido pelo Hospital como sendo de 180 dias (e não de 12 meses), prazo esse que consta na cláusula décima terceira do contrato celebrado. Esta alteração foi considerada como uma mais valia para o Hospital pelo júri (...)";
x) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital, de 21 de Outubro de 2010, a obra foi adjudicada à proposta apresentada pela Rui Ribeiro, Construções S.A., no valor indicado em I, pelo qual veio a ser celebrado o contrato.

III. FUNDAMENTAÇÃO 
 

1. Do procedimento de formação do contrato.

A primeira questão que importa resolver é a de saber se o contrato em apreciação podia ter ser adjudicado através do procedimento adoptado de "Consulta ao Mercado".

1.1. Do princípio da concorrência

O princípio da concorrência é, de há muito, um dos princípios axilares da contratação pública, tanto no âmbito nacional como no comunitário.
Tal sucede, aliás, na generalidade dos Estados de Direito, como não podia deixar de ser, já que se apresenta como imprescindível à protecção do princípio fundamental da igualdade, que lhes é inerente, e, simultaneamente, como a melhor forma de proteger os interesses financeiros públicos.
Na ordem jurídica portuguesa, e, tal como tem sido expresso na doutrina e na jurisprudência, estão constitucionalmente estabelecidos os princípios da igualdade e da concorrência e a obrigação de a Administração Pública os respeitar na sua actuação (17), seja em que circunstâncias for, em nome simultaneamente dos valores fundamentais, da ordem económica e da prossecução do interesse público.
Estes princípios constitucionais aplicam-se a qualquer actuação da Administração Pública, mesmo que de gestão privada (18) e têm uma especial incidência em matéria de Contratação Pública.
Nessa linha, o Código dos Contratos Públicos (19) estabelece, no n.º 4 do seu artigo 1.º, que à contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência.
Estes princípios estão também claramente estabelecidos na ordem jurídica comunitária a que nos encontramos vinculados.
Os tratados europeus afirmam um objectivo de integração económica, a realizar através do respeito pelas «liberdades fundamentais» (livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais), de onde deriva a obrigatoriedade de os Estados Membros da União Europeia legislarem e agirem de modo a assegurarem a mais ampla concorrência possível e a prevenirem quaisquer favorecimentos.
Como se referiu, entre outros, nos processos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) n.ºs C-458/03, Parking Brixen, e C-324/98, Telaustria, quando uma autoridade pública confia o exercício de uma actividade económica a terceiros, aplica-se o princípio da igualdade de tratamento e as suas expressões específicas, nomeadamente o princípio da não-discriminação, bem como os artigos 43.º e 49.º do Tratado CE (20), sobre a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços. O TJCE afirma ainda que estes princípios implicam uma obrigação de transparência, que consiste em assegurar a todos os potenciais concorrentes um grau de publicidade adequado, que permita abrir o mercado de bens e serviços à concorrência.
Ainda que as directivas emitidas para a coordenação dos procedimentos nacionais de adjudicação de contratos públicos excluam do seu âmbito algumas áreas da contratação bem como contratos que não atinjam determinados montantes, o TJCE tem sido claro e afirmativo no sentido de que os princípios referidos se aplicam mesmo que não sejam aplicáveis as directivas relativas aos contratos públicos, uma vez que derivam directamente dos Tratados (21).
Os princípios da igualdade e da concorrência impõem-se, pois, à actividade contratual pública, tanto por via constitucional como por via comunitária.
Ora, o respeito pelos princípios em causa, e, em particular, pelo princípio da concorrência, implica que se garanta aos interessados em contratar o mais amplo acesso aos procedimentos, através da transparência e da publicidade adequada.
É também esse o modo de garantir a melhor protecção dos interesses financeiros públicos, já que é em concorrência que se formam as propostas competitivas e que a entidade adjudicante pode escolher aquela que melhor e mais eficientemente satisfaça o fim pretendido.
As teorias dos jogos e dos leilões demonstram matematicamente que assim é, sendo que, nos termos do artigo 42.º, n.º 6, da Lei de Enquadramento Orçamental (22), nenhuma despesa pode ser autorizada ou paga sem que satisfaça os princípios da economia e da eficiência.
Em suma, o respeito pelo princípio da concorrência e seus corolários subjaz a qualquer actividade de contratação pública, por força de imperativos comunitários, por directa decorrência de normas constitucionais, por previsão da lei aplicável à contratação e por imposição da legislação financeira e dos deveres de prossecução do interesse público e de boa gestão.
Donde resulta que para a formação de contratos públicos devem ser usados procedimentos que promovam o mais amplo acesso à contratação dos operadores económicos nela interessados.

1.2. Dos procedimentos de contratação pública

As Directivas europeias de contratação pública (em especial a Directiva n.º 2004/18/CE) e, no plano nacional, o Código dos Contratos Públicos, estabelecem um conjunto de procedimentos a seguir, consoante as situações, para a formação de contratos públicos.
Em ambos os casos são estabelecidos como regra procedimentos concorrenciais abertos.
No entanto, ambos os diplomas estabelecem também excepções à utilização desses procedimentos concorrenciais abertos, admitindo que há situações em que não se justifica ou não é possível desenvolvê-los.
A este respeito importa ter presentes dois aspectos bem clarificados na jurisprudência do TJCE, os quais são também plenamente transponíveis e aplicáveis no plano exclusivamente nacional.
Em primeiro lugar, as directivas comunitárias de contratação pública (tal como a Parte II do Código dos Contratos Públicos), procedendo à definição de procedimentos a utilizar na adjudicação de contratos públicos, têm de ser vistos como meros instrumentos de realização dos princípios e objectivos mais amplos referidos no ponto anterior. Donde resulta que, mesmo quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
Por outro lado, sempre que a lei estabeleça excepções aos procedimentos concorrenciais mais abertos deve ser-se muito rigoroso e exigente na interpretação e na aplicação dessas excepções, procurando sempre a salvaguarda máxima do princípio da concorrência e admitindo a realização de procedimentos fechados apenas quando não haja alternativa concorrencial possível.

1.3. Do regime legal de pré-contratação aplicável no âmbito dos Hospitais E.P.E.

O Hospital Garcia de Orta foi transformado em Entidade Pública Empresarial (E.P.E.) por força do Decreto-Lei n.º 93/2005, de 7 de Junho, conjugado com o Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, que aprovou os respectivos Estatutos.
De acordo com o artigo 13.º deste último diploma, a aquisição de bens e serviços por ele efectuada reger-se-ia pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação do regime do direito comunitário relativo à contratação pública. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, os regulamentos internos dos hospitais E.P.E. deviam garantir aquela prescrição, "bem como, em qualquer caso, o cumprimento dos princípios gerais da livre concorrência, transparência e boa gestão, designadamente a fundamentação das decisões tomadas".
O referido artigo 13.º foi revogado pelo artigo 14.º, n.º 1, alínea o), do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos.
Um Hospital E.P.E. é uma pessoa colectiva que foi criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral, que, não obstante a sua designação, não tem uma natureza empresarial, no sentido em que não tem carácter industrial ou comercial, e tem um modelo de financiamento e controlo de gestão que preenche os critérios referidos na alínea c) do n.º 9 do artigo 1.º da Directiva 2004/18/CE e na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos.
Deve, assim, ser considerado um organismo de direito público e uma entidade adjudicante para efeitos da aplicação daquela Directiva e daquele Código.
Ora, nos termos do artigo 19.º do Código dos Contratos Públicos, a adjudicação de contratos de empreitada de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 pelas entidades adjudicantes referidas no n.º 2 do artigo 2.º tem de ser precedida da realização de concursos públicos ou concursos limitados por prévia qualificação.
No entanto, o artigo 5.º, n.º 3, do mesmo Código determina que a parte II do Código, relativa aos procedimentos pré-contratuais, não se aplica à formação dos contratos a celebrar pelos hospitais E.P.E de valor inferior aos montantes estabelecidos nos termos das alíneas b) e c) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE (como é o caso (23)).
O n.º 6 do mesmo artigo estabelece que à formação destes contratos se aplicam os princípios gerais da actividade administrativa, as normas que concretizem preceitos constitucionais constantes do Código do Procedimento Administrativo e, eventualmente, as normas desse Código.
Ou seja, determina-se expressamente que os princípios referidos nos pontos III.1.1.e III.1.2. deste Acórdão se aplicam aos contratos celebrados pelos Hospitais E.P.E., mesmo nos casos dos contratos cujos valores estejam abaixo dos limiares fixados para aplicação da directiva comunitária e aos quais não se apliquem as regras pré-contratuais estabelecidas no Código dos Contratos Públicos.
O Hospital Garcia da Orta juntou ao presente processo um "Regulamento de Aquisição de Bens, Serviços e Empreitadas do Hospital Garcia da Orta", datado de 10 de Fevereiro de 2009, que se encontra a fls. 258 e seguintes dos autos.
Do referido Regulamento extraem-se as seguintes normas, com relevância para o presente caso: 

Artigo 2.º:
"Procedimentos
1. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a contratação obedecerá aos seguintes tipos de procedimentos em função do valor do contrato a celebrar:
a. As aquisições de bens e serviços de valor igual ou superior ao limite comunitário (...) reger-se-ão pelo disposto no Código de Contratos Públicos (...);
b. As contratações relativas a empreitadas de obras públicas de valor igual ou superior ao limite comunitário (...) deverão reger-se pelo disposto no Código de Contratos Públicos (...);
c. No que se refere ao regime substantivo da contratação de bens, serviços e empreitadas do Hospital Garcia de Orta, E.P.E., é aplicável o disposto na Parte III do Código dos Contratos Públicos (...);
d. Às aquisições de bens, serviços e empreitadas de valores inferiores aos limiares comunitários, aplica-se o disposto no Capítulo II do presente Regulamento.
(...)"

Artigo 3.º:
"Princípios gerais
O HGO, E.P.E., obriga-se a, nos procedimentos objectos do presente regulamento, a seguir os seguintes princípios gerais da actividade administrativa, com as necessárias adaptações, a que se referem os artigos 5.º, 6.º e 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo:
a. Princípios da igualdade e da proporcionalidade;
b. Princípios da justiça e imparcialidade
c. Princípios da boa fé."

 

Artigo 4.º:
"Auto vinculação
Na formação e execução dos contratos, o HOSPITAL GARCIA DA ORTA, E.P.E. (HGO, E.P.E.) deve observar as regras e princípios previstos no presente regulamento"

 

Artigo 25.º:
Procedimentos para contratação de empreitadas
1.Os procedimentos a adoptar na contratação para a aquisição de bens e serviços serão a Consulta ao Mercado ou o Ajuste Directo.
2.O início do procedimento deve ser autorizado pelo Conselho de Administração do HGO, E.P.E., podendo esta autorização ser delegada no Director do Serviço de Aprovisionamento.
3. A Consulta ao Mercado poderá ser precedida de publicitação pela forma considerada mais adequada face ao objecto do procedimento. No caso de se optar pelo convite às empresas, será obrigatória a consulta, salvo caso de manifesta impossibilidade, a pelo menos:
a. 2 (duas) empresas, quando o valor do contrato se situe até €100.000;
b. 3 (três) empresas, quando o valor do contrato se situe entre os €100.001 e os €150.000;
c. 4 (quatro) ou mais empresas, quando o valor do contrato se situe entre os €150.001 e os € 5.150.00;
4. O convite para apresentação de propostas deve ser formulado por qualquer meio escrito, e-mail confirmado ou qualquer outro meio electrónico, carta registada com aviso de recepção ou fax confirmado, e enviado simultaneamente às empresas fornecedoras;
5. No convite devem ser indicados, designadamente, os seguintes elementos:
a. Objecto do fornecimento;
b. (...)
c. Os requisitos necessários à admissão dos concorrentes quando exigidos;
d. (...)
(...)
f. A possibilidade do procedimento ser objecto de negociação;
(...)
6. (...)
7. O Ajuste Directo dispensa a existência de mais de uma proposta e é utilizado quando as aquisições de bens e serviços tenham valor inferior a €25.000, ou quando, independentemente do valor, o Conselho de Administração do HGO, E.P.E. assim o determine.
8. (...)"

 

Artigo 28.º:
"Programa do Procedimento
O programa do procedimento é o regulamento que define os termos a que obedece a fase da formação do contrato até à sua celebração."

 

Artigo 37.º:
"Negociação
1. Nos procedimentos que seja prevista a negociação, o júri poderá promover a sessão de negociação com os titulares das propostas consideradas mais vantajosas, com vista à eventual obtenção de melhores condições contratuais.
2. Os concorrentes devem ser simultaneamente notificados, com uma antecedência mínima de 2 dias, da data, hora e local da sessão de negociação.
3. As condições apresentadas nas propostas são livremente negociáveis, não podendo resultar das negociações condições globalmente menos favoráveis para o HGO, E.P.E. do que as inicialmente apresentadas.
4. Na sessão deve ser lavrada acta, na qual deve constar, designadamente, a identificação dos concorrentes presentes ou representados, e o resultado final das negociações.
5. A acta deve ser assinada pelos membros do júri e pelos concorrentes que tenham alterado as suas propostas.
6. As propostas que não sejam alteradas na sessão de negociação, bem como as entregues pelos concorrentes que não compareçam à sessão, são consideradas, para efeitos de apreciação, nos termos em que inicialmente foram apresentadas."

 

Como acima referimos, à formação dos contratos em causa aplicam-se os princípios constitucionais e legais da actividade administrativa e contratual, tanto nacionais como comunitários.
As normas do Regulamento de Aquisição de Bens, Serviços e Empreitadas do Hospital Garcia da Orta são de natureza regulamentar e não legal, e, portanto, enquanto expressão da vontade administrativa da entidade adjudicante, a que ela se autovinculou, são, no entanto, integralmente condicionadas, na sua validade, pelo respeito dos referidos princípios.

1.4. Do procedimento por Consulta ao Mercado

Nos termos do Regulamento acima referido, o procedimento por Consulta ao Mercado pode efectuar-se através:

§ Da publicitação considerada adequada;

§ Ou do convite a 2, 3 ou 4 ou mais empresas, consoante o valor do contrato, salvo caso de manifesta impossibilidade.

Independentemente do valor, e quando o Conselho de Administração assim o determine, pode mesmo ser utilizado o Ajuste Directo, o qual dispensa a existência de mais de uma proposta.
Conforme decorre das várias alíneas do probatório, neste caso concreto o Hospital solicitou directamente propostas a 5 fornecedores da sua escolha.
Tendo excluído 4 na fase de qualificação, admitiu apenas 1 à análise de propostas, o qual veio a ser o adjudicatário.
O procedimento foi, pois, fechado, por limitado às entidades convidadas e, em virtude das exclusões efectuadas, a concorrência de propostas acabou por ser inexistente.
A obra representa uma despesa superior a 1.000.000,00 €.
Para esta ordem de valores o Código dos Contratos Públicos exige a realização de concursos que garantam a mais ampla concorrência.
Ora vimos acima que, mesmo quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está autorizada a adoptar procedimentos mais flexíveis mas está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
No que concerne a contratos não abrangidos pelas directivas de contratação pública, o TJCE, no acórdão tirado no processo T-258/06, refere-se à admissibilidade de não realização de um concurso público formal, de a entidade adjudicante apreciar as especificidades de um contrato na perspectiva da sua adequação às possíveis modalidades de recurso à concorrência e à flexibilidade dos meios de publicidade admitidos. Mas é inequívoco na afirmação reiterada de que os princípios impõem uma publicitação prévia antes da adjudicação do contrato público, por forma a que os eventuais interessados em concorrer possam manifestar o seu interesse em aceder à contratação.
A decisão de que um determinado contrato deve ser excepcionalmente subtraído às regras da concorrência tem de ser efectuada em função das circunstâncias concretas de cada caso e fundamentada numa justificação clara e aceitável à luz desses princípios.
Ora, no caso, aplicaram-se normas regulamentares que permitem à entidade adjudicante escolher quase livremente se publicita a consulta, se a dirige a um número limitado de empresas ou se convida apenas uma empresa a apresentar proposta.
No fundo, essas normas permitem que só haja lugar à abertura a uma verdadeira concorrência quando o Hospital, através do seu Conselho de Administração, opte nesse sentido. E se a opção for outra, a de afastar um procedimento de abertura ao mercado, não se exige a esse Conselho de Administração qualquer fundamentação para o justificar.
Ora, na realidade, a consulta a 2, 3 ou 4 empresas, ou mesmo 5, directamente escolhidas pela entidade adjudicante, não consubstancia uma Consulta ao Mercado, mas sim uma consulta a essas empresas. No regime de contratação pública, e tendo em conta a flexibilidade das formalidades seguidas, esse procedimento corresponde à figura do Ajuste Directo precedido de consultas.
As normas regulamentares do Hospital não são, assim, adequadas nem conformes aos princípios da igualdade, concorrência e transparência, que, já vimos, deveriam respeitar e aplicar. Essas normas não evidenciam qualquer razão de ser para o relevante desvio que admitem relativamente ao princípio vinculante da concorrência nem prevêem ou exigem que a entidade adjudicante o faça em concreto.
Também no que se refere ao caso concreto, constata-se que não foi fornecida qualquer justificação para a não publicitação da Consulta ao Mercado. Foi tão só invocado o disposto no artigo 25.º, n.º 3, alínea c), do Regulamento (acima transcrito) e decidido proceder ao convite a 5 empresas escolhidas (24).
Mais, como 4 dessas empresas acabaram por ser afastadas logo de início, por questões de não cumprimento dos requisitos económicos e de não comprovação da situação perante o Fisco e a Segurança Social, o procedimento acabou por redundar num ajuste directo a um dos convidados.
Como acima estabelecemos, a opção por um procedimento de adjudicação directa ou de consulta restrita só seria legítimo face aos princípios aplicáveis se se demonstrasse que não era possível adoptar qualquer outra solução procedimental que melhor acautele a concorrência, ou seja, se se demonstrasse que um procedimento aberto era inviável ou injustificado.
Ora, nem as normas regulamentares invocadas nem as circunstâncias concretas do caso fornecem uma justificação razoável nesse sentido ou demonstram que o recurso a uma solução verdadeiramente concorrencial não era possível.

2. Do procedimento de qualificação dos concorrentes.

Mesmo que se admitisse que a modalidade utilizada para a formação do contrato era, em si, compatível com os princípios acima referidos, o que já vimos que não sucede, os procedimentos concretamente desenvolvidos suscitariam outras reservas.
Tal como resulta da legislação aplicável e do disposto no artigo 3.º do Regulamento utilizado pelo Hospital Garcia de Orta, em quaisquer procedimentos de contratação pública que ele desenvolva devem ser observados os princípios gerais da actividade administrativa, em especial os da igualdade, transparência e boa fé.
Isso significa, além do mais, que, existindo um programa do procedimento, ele assume uma natureza regulamentar, definindo os termos a que obedece a fase de formação do contrato até à sua celebração e, por isso, deve ser estritamente observado (como se estabelece no artigo 28.º do Regulamento e é afirmado por toda a doutrina e jurisprudência).
O respeito por esse programa significa o respeito pelas regras do jogo tal como foram inicialmente estabelecidas, o que é essencial à observância dos princípios da igualdade e da boa fé.
Ora, o que se verificou no caso, na fase de qualificação dos concorrentes, foi que relativamente a 4 das empresas os requisitos de qualificação estabelecidos no programa da consulta foram aplicados de forma rigorosa, conduzindo à sua exclusão do procedimento, enquanto à empresa Rui Ribeiro, Construções, S.A. foram aplicados de forma menos estrita, conduzindo à sua confirmação como adjudicatária.
Vejamos.
Foi opção da entidade adjudicante fixar requisitos de qualificação técnica e económica.
Estes requisitos (25) não se confundem com os requisitos necessários para a obtenção de alvarás de empreiteiro de obras públicas, pois, se assim fosse, a entidade teria exigido apenas esse alvará, o qual já pressupunha a verificação desses requisitos.
Ora, como se conclui das alíneas f) a k) do probatório, foram exigidos requisitos de qualificação e também a apresentação do alvará.
Ao definir-se os requisitos de qualificação económica fez-se uma descrição das condições mínimas de qualificação, sem nenhuma indexação ao regime constante de qualquer diploma ou portaria aplicável (26).
E bem. Porque é prerrogativa do dono da obra estabelecer requisitos mínimos de qualificação, quando isso seja adequado, devendo fazê-lo de forma concreta e ajustada aos interesses que pretende acautelar. Ora, a normação aplicável aos pedidos de alvarás não é adequada, uma vez que esses requisitos já são condição de atribuição dos alvarás, que sempre são exigidos nos procedimentos de formação dos contratos de empreitada.
Por isso mesmo, o artigo 165.º, n.º 4, do Código dos Contratos Públicos estabelece que "quando, no caso de empreitadas ou de concessões de obras públicas, os requisitos mínimos de capacidade técnica e de capacidade financeira exigidos no programa do concurso se basearem em elementos de facto já tidos em consideração para efeitos da concessão do alvará ou título de registo contendo as habilitações adequadas e necessárias à execução da obra a realizar, tais requisitos devem ser mais exigentes que os legalmente previstos para aquela concessão."
As Portarias n.ºs 994/2004, de 5 de Agosto, e 971/2009, de 27 de Agosto, definem os valores de referência dos indicadores financeiros utilizados para avaliação da capacidade económica e financeira das empresas, com vista especificamente à concessão e manutenção dos alvarás regulados pelo Decreto-Lei n.º 12/2004.
Por isso, não tinha qualquer aplicação no procedimento a invocação pela Rui Ribeiro, Construções, S.A. de que a Portaria n.º 971/2009 baixou, para os anos de 2008 e 2009, o índice de autonomia financeira para 10%, devido à crise económica e financeira e que, nessa medida, o requisito mínimo de 15% para esse requisito fixado no programa do procedimento também deveria ser considerado como alterado de 15% para 10% (27).
É que, de facto, a definição desse requisito mínimo não tinha sido feita, nem devia ter sido feita, por referência a essas Portarias.
Deveria, pois, a entidade adjudicante ter respeitado os requisitos mínimos que fixou no programa do procedimento, exigindo à adjudicatária a garantia bancária que definiu como necessária no artigo 14.º, n.º 3, alínea a), do Programa da Consulta, e desqualificando-a em caso de não apresentação dessa garantia.
O que não sucedeu.
A adjudicatária não tinha o rácio exigido nem prestou a garantia (28).
Ainda assim, foi contratada.
Poder-se-á dizer que a entidade adjudicante foi sensível às dificuldades financeiras resultantes da crise económica, que igualmente motivaram a baixa transitória dos níveis de exigência para a concessão dos alvarás, operada pelas referidas Portarias.
Mas o que sucede é que não usou de idêntica sensibilidade para os outros requisitos e para os outros concorrentes, que foram inelutavelmente excluídos, dado o seu volume de negócios ser inferior ao exigido, apesar de apresentarem rácios de autonomia financeira muito superiores ao do adjudicatário.
Rejeitou, aliás, uma proposta do júri do procedimento para reavaliar os requisitos fixados e repetir o procedimento (29).
Deve, assim, concluir-se que o procedimento de qualificação dos concorrentes violou os princípios da igualdade e da boa-fé.
 

3. Das negociações realizadas.

Conforme ressalta das alíneas t) e w) do ponto II, o júri do procedimento realizou negociações com o concorrente, que redundaram em modificações na proposta adjudicada, quer relativamente à sua versão inicial quer relativamente ao que constava do Programa da Consulta e do Caderno de Encargos.
Não se questionam as vantagens que os processos negociais podem trazer aos processos de contratação pública nem as mais-valias que, concretamente, podem ter sido obtidas.
No entanto, as eventuais negociações a empreender e concluir devem sempre respeitar as regras do jogo instituídas, para que estejam em consonância com os princípios da igualdade, transparência e boa fé.
Como se apontou no ponto III.1.3., o artigo 25.º, n.º 5, do Regulamento de Aquisição de Bens, Serviços e Empreitadas do Hospital estabelece que o convite para apresentação de propostas deve indicar a possibilidade de o procedimento incluir negociações e o artigo 37.º, n.º 1, do mesmo Regulamento é claro no sentido de que essas negociações só têm lugar nos procedimentos em que sejam previstas.
Como o próprio Hospital reconheceu (30), no Programa da Consulta não foi prevista a possibilidade de realizar negociações.
Nesses termos, a sua realização violou as regras regulamentares estabelecidas.
A alegação de que o parecer do Gabinete de Assessoria Jurídica e Contencioso, confirmado pelo Conselho de Administração, referia essa possibilidade e de que o Conselho de Administração o solicitou no decurso do processo (31) é completamente irrelevante, porque o Programa da Consulta, podendo fazê-lo, não o consagrou e, não tendo sido prevista, a negociação não podia, de acordo com as normas regulamentares, ter lugar.
As negociações efectuadas vieram a consagrar um prazo de execução diverso do indicado aos candidatos e a subtracção à empreitada de uma parcela de fornecimentos nela incluídos na definição constante do Caderno de Encargos (32).
Desta forma, não foram apenas negociadas condições apresentadas na proposta, como prevê o artigo 37.º do Regulamento, mas também aspectos que não haviam sido submetidos à concorrência. Ou seja, foi alterado o próprio objecto da empreitada e as condições da sua execução.
Não tendo essa possibilidade sido consagrada expressamente no Programa da Consulta, verifica-se violação dos princípios da igualdade, transparência e boa fé. E não se invoque que os restantes candidatos não estavam já a concurso e que não apresentaram reclamação, porque os princípios da transparência e boa fé têm um valor intrínseco no âmbito dos procedimentos administrativos, mesmo que não concorrenciais.
Ora, se o programa do procedimento não previu a possibilidade de se introduzirem alterações à obra descrita, e essas alterações foram introduzidas, isso significa que a obra adjudicada não corresponde à obra objecto da consulta e que, por isso, deve ter-se por não precedida de procedimento de escolha.
Por outro lado, o artigo 37.º do Regulamento prevê que, em caso de ocorrerem negociações, elas devem ter lugar em sessões de negociação, das quais devem ser lavradas actas assinadas pelos membros do júri e pelos concorrentes que tenham alterado as suas propostas.
Essas sessões e essas actas não foram realizadas, encontrando-se os registos dispersos por trocas de correspondência e actas do próprio júri, apresentando-se a acta final sem homologação, e a questão do prazo de execução não esclarecida a não ser nas cláusulas do contrato celebrado.
Este procedimento violou regras regulamentares bem como o princípio da transparência.

4. Outras deficiências.

Refira-se ainda que o Programa da Consulta estabelecia a necessidade de o adjudicatário apresentar os alvarás contendo as habilitações adequadas e necessárias à execução da obra a realizar (33), o que está em consonância com o disposto no artigo 31.º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro.
Efectivamente, nos termos desses preceitos, "Os donos de obras públicas (...) devem assegurar que as obras sejam executadas por detentores de alvará ou título de registo contendo as habilitações correspondentes à natureza e valor dos trabalhos a realizar (...)", e "A comprovação das habilitações é feita pela exibição do original do alvará ou do título de registo, sem prejuízo de outras exigências legalmente previstas (...)"
No entanto, e tendo em atenção o disposto nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, bem como os princípios da transparência e igualdade, impõe-se que os programas dos procedimentos identifiquem quais são, em concreto, as habilitações adequadas e necessárias para cada obra.
No caso, essa identificação não foi feita. 

5. Da relevância das ilegalidades verificadas

Conforme decorre do exposto, na contratação em causa verificaram-se as seguintes ilegalidades:
- Contratação da obra por um procedimento não concorrencial de convites, não tendo sido justificado por que razão um procedimento aberto era inviável ou inadequado, o que constituiu violação dos princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas e dos artigos 1.º, n.º 4, e 5.º, n.º 6, do Código dos Contratos Públicos;
- Violação das regras estabelecidas no Regulamento de Aquisição de Bens, Serviços e Empreitadas do Hospital e/ou no Programa da Consulta, no que concerne à qualificação técnica dos concorrentes e à realização de negociações, com violação dos princípios da igualdade, transparência e boa fé, resultantes da legislação já referida e dos artigos 5.º e 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo;
- Adjudicação de uma obra diversa da que foi objecto do procedimento de consulta, o que se traduz em falta de procedimento prévio, com violação dos princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas e dos artigos 1.º, n.º 4, e 5.º, n.º 6, do Código dos Contratos Públicos;
- Falta de explicitação sobre quais as habilitações técnicas exigidas, com violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, e dos princípios da igualdade, transparência e boa fé. 
As ilegalidades verificadas implicam a susceptibilidade de alteração do resultado financeiro do procedimento.
Isto é, se não tivessem ocorrido as violações de lei referidas, é possível que tivessem sido obtidos resultados diferentes, com melhor protecção dos interesses financeiros públicos.
Enquadram-se, pois, tais violações no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (LOPTC) (34), quando aí se prevê, como fundamento para a recusa de visto, "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro."
Sublinhe-se que, para efeitos desta norma, quando aí se diz "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro.
Para além disso, a realização de procedimentos concorrenciais e não discriminatórios protege ainda o interesse financeiro de escolha das propostas que melhor e mais económica e eficientemente se ajustam às necessidades públicas, dessa forma acautelando a adequada utilização da despesa pública envolvida e sendo instrumento da realização do disposto nos artigos 42.º, n.º 6, e 47.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental.
A não observância de procedimentos que acautelem a concorrência e a não discriminação implica, assim, também a violação das normas financeiras acabadas de referir, o que se enquadra na alínea b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC.
Acresce que, como tem sido entendimento deste Tribunal, a ausência de procedimento concorrencial implica a falta de um elemento essencial da adjudicação, o que determina a respectiva nulidade, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
Esta nulidade, que pode ser declarada a todo o tempo, origina a nulidade do contrato, nos termos do estabelecido no artigo 283.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos.
A nulidade é fundamento de recusa de visto, como estabelece a alínea a) do n.º 3 do artigo 44º da LOPTC.
 

IV. DECISÃO

Pelos fundamentos indicados, e nos termos do disposto nas alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 44.º da Lei nº 98/97, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
São devidos emolumentos nos termos do artigo 5º, n.º 3, do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas (35).
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2011 

Os Juízes Conselheiros, - (Helena Abreu Lopes - Relatora) - (António Santos Soares) - (João Figueiredo)

Fui presente

(Procurador Geral Adjunto) - (Jorge Leal)


(1) Cfr. acta do júri de 22 de Abril de 2010, a fls. 59 e seguintes do processo.
(2) Idem.
(3) Idem. Cfr. também alínea h) do probatório.
(4) Cfr. acta do júri de 22 de Abril de 2010, a fls. 59 e seguintes do processo.
(5) Idem
(6) Cfr. fls. 64 e seguintes dos autos.
(7) Cfr. fls 67 e seguintes do processo.
(8) Cfr. ofício n.º 2106, de 3 de Fevereiro de 2011, a fls. 279 e seguintes.
(9) Cfr. fls. 62 a 81 e 284 a 292 do processo.
(10) Cfr. fls. 160.
(11) Cfr. fls. 174.
(12) Cfr. fls. 70.
(13) Vide II volume do processo.
(14) Cfr. ofício n.º 2106, de 3 de Fevereiro de 2011, a fls. 279 e seguintes.
(15) Cfr. fls. 296 e seguintes.
(16) Cfr. ofício n.º 2106, de 3 de Fevereiro de 2011, a fls. 279 e seguintes.
(17) Cfr. artigos 81.º, alínea f), 99.º, alínea a), e 266.º da Constituição.
(18) Cfr. artigo 2.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo.
(19) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março, e alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 223/2009, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de Outubro, pela Lei n.º 3/2010, de 27 de Abril, e pelo Decreto-Lei n.º 131/2010, de 14 de Dezembro.
(20) Hoje artigos 49.º e 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
(21) O recente acórdão de 20 de Maio de 2010, tirado no processo T-258/06, é bastante esclarecedor nessa matéria.
(22) Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 23/2003, de 2 de Julho, pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 48/2010, de 19 de Outubro.
(23) Esse valor era para os contratos de empreitada, em 2009, de € 5.150.000,00, nos termos definidos no Regulamento (CE) n.º 1422/2007 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2007, publicado no JOUE, L 317/34, de 5 de Dezembro de 2007. A partir de 1 de Janeiro de 2010, o montante referido passou a ser de € 4.845.000,00, por força do Regulamento (CE) n.º 1177/2009 da Comissão, de 30 de Novembro de 2009, publicado no JOUE, L 314/64, de 1 de Dezembro de 2009.
(24) Cfr. alínea b) do ponto II.
(25) Que, hoje, no regime do Código dos Contratos Públicos, nem sequer se aplicam nos concursos públicos.
(26) Cfr. alíneas g) a j) da matéria de facto.
(27) Cfr. alíneas q) e r) do ponto II.
(28) Cfr. alínea s) do ponto II.
(29) Cfr. alínea o) do ponto II.
(30) Cfr. alíneas u) e v) da matéria de facto.
(31) Idem.
(32) Cfr. alíneas t) e w) do ponto II.
(33) Cfr. alínea k) do ponto II.
(34) Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, 35/2007, de 13 de Agosto, e 3-B/2010, de 28 de Abril.
(35) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/96, de 31 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 139/99, de 28 de Agosto, e pela Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril.