Acórdão n.º 7/2010, de 2 de Março de 2010, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1383/2009)

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ACÓRDÃO N.º 07/2010 - 02.Mar.2010 - 1ªS/SS

(Processo n.º 1383/2009)

 

DESCRITORES:

Alvará / Habilitação a Concurso / Alteração do Resultado Financeiro por Ilegalidade / Marcas e Patentes / / Recusa de Visto

SUMÁRIO:

1. Os requisitos de habilitação técnica dos concorrentes nos documentos que disciplinam os concursos de obras públicas devem reflectir, de forma clara, as possibilidades a que se referem as disposições do art.º 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, devendo fazer-se constar do programa de concurso a exigência constante do n.º 1 daquele preceito legal ou as duas hipóteses resultantes dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo.

2. É proibida a indicação, no mapa de quantidades de trabalhos, de especificações técnicas que façam referência a marcas comerciais ou industriais, patentes ou modelos, excepto se acompanhadas da menção "ou equivalente", sempre que não seja possível descrever de forma suficientemente precisa e inteligível as prestações objecto do contrato (cfr. art.º 65.º, n.ºs 5 e 6 do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março).

3. As violações de lei mencionadas são susceptíveis de alterar o resultado financeiro do contrato, o que constitui fundamento de recusa do visto nos termos do art.º 44.º, n.º 3, al. c) da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.

Conselheiro Relator: João Figueiredo

ACÓRDÃO Nº 7 /010 - 2.MAR.10-1ª S/SS

Processo nº 1383/09

I - RELATÓRIO

1. A Câmara Municipal do Seixal (doravante designada por CMS) remeteu, para efeitos de fiscalização prévia, o contrato de empreitada relativo à "Ampliação da EB1/JI Quinta de S. João - Arrentela", celebrado entre o Município do Seixal e a empresa "Nogueira & Matias, Lda.", em 25 de Junho de 2009, pelo valor de € 694 772,23 €, acrescido de IVA, à taxa legal aplicável.

2. Para além dos factos referidos no número anterior, são dados ainda como assentes e relevantes para a decisão os seguintes:
a) O contrato acima referido foi precedido de concurso público de âmbito nacional, cujo aviso foi publicado na 2.ª Série do Diário da República n.º 145, de 29 de Julho de 2008 e nos jornais "Correio da Manhã" e "Comércio do Seixal e Sesimbra";
b) A obra apresenta um prazo de execução de 120 dias, tendo ocorrido a consignação no dia 3 de Julho de 2009;
c) No concurso apresentaram propostas cinco empresas, tendo sido excluídos dois concorrentes no acto público do concurso;
d) No nº 6.2 do programa do concurso exigiu-se que o adjudicatário deveria apresentar certificado de habilitação de empreiteiro geral de construção de edifícios em classe correspondente ao valor global da proposta. No aviso publicado consta igual exigência;
e) Questionada a CMS sobre a matéria referida na alínea anterior veio referir (1): "Face à legislação em vigor, Portaria n.º 19/2004, de 10 de Janeiro, para a presente empreitada foi exigida a detenção do Alvará da 1.ª Categoria - Empreiteiro Geral ou Construtor Geral de Edifícios de Construção Tradicional - em classe correspondente ao valor global da proposta. Assim sendo, a mesma enquadra-se no n.º 2 do art. 31º, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, pelo que se considera estar o Município dispensado da exigência a que se refere o n.º 1 do mesmo artigo";
f) O adjudicatário detém alvará de empreiteiro geral na 1ª categoria (edifícios e património construído), para edifícios de construção tradicional (em classe que cobre o valor global da proposta), edifícios com estrutura metálica, edifícios de madeira e para reabilitação e conservação de edifícios (neste caso, também em classe que cobre o valor global da empreitada);
g) Nos artigos 22.1.7, 22.5.3 a 22.5.7, 22.6.7, 22.6.8, 22.7.1, 22.8.5 a 22.8.10, 22.9.1, 23.2.3, 23.2.4, 23.3.1 e 23.3.2, do mapa de quantidades de trabalho posto a concurso, estão feitas referências de teor comercial (marcas comerciais), de forma repetida, sem que as mesmas estejam acompanhadas da menção "do tipo" ou "ou equivalente". De um modo recorrente, fazem-se referência às marcas "Legrand", "Schréder", "JSL", "Suno-Legrand", "Ermax" e "Televés";
h) Questionada a CMS sobre a inclusão de marcas no mapa de quantidades veio referir num primeiro momento: "no presente Mapa não constam quaisquer referências a marcas comerciais sem serem acompanhadas das expressões "do tipo" "ou equivalente" (2). De novo confrontada com a matéria referida na alínea anterior, alegou finalmente (3): "Conforme esclarecimento prestado pelo serviço instrutor, de facto, no capítulo da iluminação, e apenas nesse, existem algumas menções a marcas. Sucede que o presente erro decorre do facto de o Projecto de Especialidade em apreço ter sido elaborado por uma entidade externa, não tendo sido devidamente corrigido pelo serviço instrutor ao compilar os diferentes projectos de especialidade. Todavia, seriam sempre aceites materiais que fossem do "tipo" ou "equivalente" e não exclusivamente das marcas mencionadas, ocorrendo o erro unicamente no referido capítulo";
i) Em matéria de especificações técnicas, a CMS foi no passado destinatária de recomendações formuladas por este Tribunal, no sentido de cumprir o que a lei dispõe nessa matéria, através dos Acórdãos nºs 96/2004, de 15 de Junho, da 1.ªS/SS, e n.º 351/2006, de 15 de Dezembro, da 1.ªS/SS e viu recusado o visto de um contrato, pelo acórdão nº 56/2007, de 27 de Março, da 1.ªS/SS, em que a referida violação de lei também foi identificada.

II - FUNDAMENTAÇÃO 
 

3. O presente processo suscita duas questões que devem ser abordadas para fundamentação da decisão final:

a) A das habilitações exigidas aos concorrentes;

b) A das especificações técnicas estabelecidas em artigos do mapa de quantidades.

4. Como se viu foi exigido que o adjudicatário patenteasse certificado de habilitação de empreiteiro geral de construção de edifícios, em classe correspondente ao valor global da proposta.

5. Diga-se em primeiro lugar que, em rigor, aquela exigência habilitacional não coincide com nenhuma prevista no regulamento aplicável. De facto, o nº 2 da Portaria nº 19/2004, de 10 de Janeiro, prevê a existência de empreiteiro geral ou construtor geral numa das categorias previstas no nº 1º, designadamente, para o que agora interessa, a de edifícios e património construído, sendo que, neste caso, e ao abrigo do referido nº2, o alvará poderá ser concedido para edifícios de construção tradicional, com estrutura metálica, de madeira ou para reabilitação e conservação de edifícios. Esta imprecisão do programa e do aviso pode ter tido impacto na redução do universo de potenciais interessados, na medida em que com aquela formulação pode ter obrigado a uma percepção de que o alvará deveria cobrir todas as modalidades construtivas da 1ª categoria de empreiteiro geral. Veja-se, a propósito, acima na alínea f) do nº2, o alvará exibido pelo adjudicatário. Contudo, a maior gravidade assiste ao facto de ter sido exclusivamente fixada a exigência de empreiteiro geral, sem que do processo conste qualquer fundamentação que a pudesse suportar.

6. De facto, o artigo 31º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 12/04, de 9 de Janeiro, dispõe o seguinte:
"1 - Nos concursos de obras públicas e no licenciamento municipal, deve ser exigida uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra, a qual deve respeitar ao tipo de trabalhos mais expressivo, sem prejuízo da eventual exigência de outras subcategorias relativas aos restantes trabalhos a executar e nas classes correspondentes.
2 - A habilitação de empreiteiro geral ou construtor geral, desde que adequada à obra em causa e em classe que cubra o seu valor global, dispensa a exigência a que se refere o número anterior."

7. Sobre a correcta interpretação e utilização destas normas nos procedimentos concursais para a realização de empreitadas de obras públicas, tem este Tribunal abundante e uniforme jurisprudência.

8. A mencionada jurisprudência afirma que a forma pela qual devem ser descritos os requisitos de habilitação técnica dos concorrentes nos documentos que disciplinam os concursos deve reflectir, de forma clara, as possibilidades a que se referem as citadas disposições do artigo 31.º, devendo fazer-se constar do programa de concurso a exigência constante do n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004 ou as duas hipóteses, em alternativa, resultantes dos nºs 1 e 2 do mesmo artigo. Sublinhe-se que o nº 1 prevê a exigência de uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra, sem prejuízo de se indicarem outras subcategorias.

9. No concurso público que precedeu o contrato em apreciação, ao exigir-se que os concorrentes detivessem as habilitações referidas no n.º 2 do citado artigo 31.º (classificação de empreiteiro geral, em classe correspondente ao valor da proposta), afirmou-se que a solução preconizada no n.º 1 do mesmo artigo não era adequada e impediu-se que aqueles que a detinham pudessem candidatar-se ao concurso.

10. Face ao tipo de obra que constitui o objecto do contrato, não se encontram razões para aplicação do disposto no nº2 do artigo 31º já referido, com exclusão da possibilidade dada no nº 1 do mesmo preceito legal. Nem a CMS apresentou qualquer alegação que a fundamentasse.

11. Mantêm-se pois, para o caso concreto, as orientações constantes acima no nº 10, concluindo-se que, no procedimento, ocorreu violação do disposto no nº 1 do artigo 31º do Decreto-Lei nº 12/04, de 9 de Janeiro.

12. Em conclusão: não se tendo respeitado o disposto no artigo 31º do diploma legal já citado, fizeram-se, assim, exigências de habilitação técnica superiores às estabelecidas na lei, as quais conduziram, real ou potencialmente, a uma redução ilegal do universo de potenciais candidatos. E, por essa via, ocorreu com elevada probabilidade uma alteração do resultado financeiro do procedimento, que poderia ter sido mais favorável aos interesses financeiros públicos, caso aquela violação não tivesse ocorrido.

13. Como se demonstrou, no mapa de quantidades patenteado a concurso, foram feitas exigências relativas a marcas comerciais, em inúmeros artigos necessários à concretização da empreitada, sem que fossem acompanhadas das expressões "do tipo" ou "ou equivalente".

14. Determinam os nºs 5 e 6, do art.º 65.º do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, que, salvo os casos excepcionais justificados pelo objecto da empreitada, não é permitida a introdução no caderno de encargos de especificações técnicas que mencionem produtos de fabrico ou proveniência determinada ou processos que tenham por efeito favorecer ou eliminar determinadas empresas, sendo designadamente, proibida a indicação de marcas comerciais ou industriais, de patentes ou modelos, ou de origem ou produção determinadas, sendo, no entanto, autorizadas tais indicações quando acompanhadas da menção "ou equivalente", sempre que não seja possível formular uma descrição do objecto da empreitada com recurso a especificações "suficientemente precisas e inteligíveis por todos os interessados".

15. Visam estas disposições normativas proibir que, mesmo por via indirecta, se dificulte ou afaste a participação na empreitada de empresas que não preencham determinados requisitos.

16. Refira-se ainda que, como resulta do n.º 7 do artigo 65.º do RJEOP e do Anexo II ao mesmo diploma, a referência ao caderno de encargos aparece precedida do advérbio "nomeadamente", donde resulta que tal referência é meramente exemplificativa (4). Ora, se a lei quis claramente proibir que, com a utilização abusiva de "especificações técnicas", se viole a concorrência, por maioria de razão há-de proibir a indicação de marcas comerciais ou industriais em qualquer peça do concurso. Entende-se, por isso, que a proibição a que se reportam os nºs 5 e 6 do art.º 65.º se deve entender como extensiva a qualquer peça processual (5).

17. Tais disposições normativas estão em consonância com as que resultam das directivas da Comunidade Europeia. Veja-se o disposto no nº 8 do artigo 24º da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março.

18. Conclui-se, assim, que no presente procedimento ocorreu também a violação dos referidos nºs 5 e 6, do art.º 65.º do Decreto-Lei nº 59/99, de 3 de Março.

19. Tais exigências, violadoras dos princípios da livre concorrência e da igualdade de oportunidades dos operadores económicos, são igualmente susceptíveis de alterar o resultado financeiro do contrato.

20. Como se referiu acima na alínea i) do nº 2, a CMS já foi por demais alertada para que nos seus procedimentos observasse o que nesta matéria dispõe a lei. As explicações dadas para justificar esta nova violação revelam, pelo menos, não só desrespeito pela lei - o que é o mais grave - ligeireza e falta de rigor na ultimação dos documentos concursais e, igualmente, desconsideração pelas posições deste Tribunal, tomadas repetidas vezes no passado.

21. Enquadram-se, pois, tais violações no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da LOPTC[6], quando aí se prevê "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro." Refira-se, a propósito, que, para efeitos desta norma, quando aí se diz "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro.

22. As circunstâncias que marcam o procedimento de formação do contrato em apreciação, a existência de duas violações de lei - uma das quais repetindo o que ocorreu em outros procedimentos passados - ambas susceptíveis de terem conduzido a alteração dos resultados financeiros e a fragilidade das justificações apresentadas, não permitem a este Tribunal, fazer uso da faculdade que lhe é dada pelo nº 4 do artigo 44º da LOPTC.

III - DECISÃO


23.
Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
24. São devidos emolumentos nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio, e respectivas alterações.
Lisboa, 2 de Março de 2010

Os Juízes Conselheiros, (João Figueiredo - Relator) - (António Santos Soares) -(Helena Abreu Lopes)

Fui presente

(Procurador Geral Adjunto) - (Daciano Pinto) 


(1) Vide ofício nº 2005 de 15.01.2010.
(2) Vide ofício nº 2005 de 15.01.2010.
(3) Vide ofício nº 7428 de 18.02.2010.
(4) Neste sentido vide Acórdãos do Tribunal de Contas, de 21 de Dezembro de 2006- 1.ªS/PL, in R.O. n.º 36/06, de 12 de Junho de 2007, 1.ª S-PL, in R.O. n.º 9/2007, e de 12 de Junho de 2007, 1.ª/SS, in processo n.º 430/2007.
(5) Vide Acórdãos do Tribunal de Contas, proferido no R.O. n.º 9/07, de 12 de Junho de 2007, e o proferido no processo n.º 430/2007, de 12 de Junho de 2007.
(6) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, e 35/2007, de 13 de Agosto.