Acórdão n.º 65/2011, de 17 de Outubro de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 926/2011)

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ACÓRDÃO Nº 65/2011 - 17/10/2011 - 1ª SECÇÃO/SS

PROCESSO Nº 926/2011 - 1ª SECÇÃO

 I. RELATÓRIO

A Câmara Municipal de Faro remeteu a este Tribunal, e para efeitos de fiscalização prévia, um contrato reportado à gestão de espaços verdes celebrado em 13.05.2011, entre aquele município e a empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", e no valor global de € 2 567 952,00 [valor mensal atinge € 106 998,00].
A celebração deste contrato foi autorizada por deliberações da Câmara Municipal de Faro e da correspondente Assembleia Municipal, tomadas em 20 e 27.04.2011, respectivamente. 

II. DOS FACTOS

Para além da factualidade contida em I., considera-se assente, e também relevante, a seguinte:

1.
A empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", é uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, constituída em 19.09.2005 e mediante escritura pública, sendo que o capital social se encontra detido na percentagem de 51% pelo Município de Faro, 32,83% pela "AGS - Administração e Gestão de Sistemas de Salubridade, S.A.", e 16,17% pela empresa "HIDURBE - Gestão de Resíduos, S.A.";

1.1.
A empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", tem, agora, por objecto a exploração das actividades de interesse geral de construção de redes de águas e de esgotos, de gestão, exploração, manutenção e conservação dos sistemas públicos de distribuição de água para consumo público, a recolha e rejeição de águas residuais domésticas e pluviais, a recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos e de higiene e limpeza pública, a manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes, e, bem assim, a prestação de serviços conexos com essas actividades;

1.2.
O objecto social da empresa, referenciado em II. 1.1. e ora vigente, decorre da alteração dos Estatutos aprovada em 20.02.2010 e 10.02.2010 por deliberação da Assembleia Municipal de Faro e da Assembleia Geral da "FAGAR", respectivamente, as quais estenderam o referido objecto social à manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes;

1.3.
O contrato de sociedade, constitutivo da empresa municipal em causa, foi precedido de concurso público internacional destinado à selecção "de parceiro privado para, em parceria, participar no capital de empresa municipal de capitais maioritariamente públicos", constando do correspondente Anúncio e Caderno de Encargos [vd. ponto 2.] que a tal empresa municipal competiria a gestão e exploração de todo o sistema municipal de água e esgotos em baixa e, bem assim, explorar o sistema municipal de recolhas e transporte de resíduos sólidos urbanos, higiene e limpeza urbana;
E, em conformidade, o objecto social da empresa "FAGAR" compreendia, originariamente, "a construção de redes de águas e de esgotos, a gestão, exploração, manutenção e conservação dos sistemas públicos de distribuição de água para consumo público, recolha e rejeição de águas residuais domésticas e pluviais, recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos e higiene e limpeza públicas, cobrança de taxas, tarifas e coimas, outras prestações de serviços conexos com a respectiva actividade e atendimento comercial aos utentes dos respectivos serviços na área do município de Faro;

2.
Questionado o município de Faro a propósito da [in] conformação legal do alargamento do objecto social da empresa à manutenção, requalificação e gestão dos espaços verdes e do subsequente contrato de gestão ora submetido a fiscalização prévia junto deste Tribunal, aquele deduziu resposta, que, com relevância, se expressa no seguinte:
"(...)
O contrato de sociedade desta empresa municipal foi conforme legalmente se impunha, precedido de «concurso público internacional para a selecção de parceiro privado para participar na constituição de uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos», lançado pelo Município de Faro, conforme peças do procedimento que se junta como Anexo I.
De acordo com o artigo 3.º, n.ºs 1 e 3, dos respectivos Estatutos, na sua versão originária, a Fagar tem como objecto social principal a construção de redes de águas e de esgotos, a gestão, exploração, manutenção e conservação dos sistemas públicos de distribuição de água para consumo público, recolha e rejeição de águas residuais domésticas e pluviais, recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos e higiene e limpeza pública, o desenvolvimento de outras prestações de serviços conexos com a respectiva actividade, podendo ainda exercer actividades acessórias ou complementares relacionadas com o seu objecto principal, entendendo-se, como tal, designadamente as referentes à promoção da qualidade ambiental."
Em cumprimento do estabelecido na Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro (RJSEL) os estatutos da Fagar foram entretanto ajustados, estabelecendo actualmente, de forma clara, que a mesma:
a) É constituída sob a forma de sociedade anónima, nos termos do artigo 273º, n.º 2, do Código das sociedades Comerciais e do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro; e,
b) Está encarregada da gestão de serviços de interesse geral.
Fruto da última alteração aos Estatutos, a Fagar passou a ter incluído no objecto social principal, a «manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes».
Ora, enquanto empresa municipal, a Fagar rege-se pelo disposto na Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro, que aprova o Regime Jurídico do Sector Empresarial Local, pelos seus estatutos e, subsidiariamente, pelo regime do sector empresarial do Estado e pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais [cf. Artigo 34.º, do Código das Sociedades Comerciais em articulação com artigo 6.º do RJSEL].
O regime jurídico do sector empresarial local estabelece limitações ao objecto social das empresas municipais, o qual só pode incidir sobre determinado tipo de actividades.
O n.º 1 do artigo 5.º do RJSEL, afirma que as empresas municipais têm obrigatoriamente como objecto a exploração de actividades de interesse geral, a promoção do desenvolvimento local e regional e a gestão de concessões, sendo proibida a criação de empresas para o desenvolvimento de actividades de natureza exclusivamente administrativa ou de intuito predominantemente mercantil."
"(...)"
"O artigo 19.º da Lei n.º 53-F/2006, estabelece que as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse geral devem prosseguir as missões que lhe sejam confiadas de acordo com um conjunto fixado de princípios orientadores, em que se inclui o cumprimento de obrigações específicas, claramente definidas e susceptiveis de controlo [cfr. alínea f) do referido artigo].
Ora, do disposto no artigo 20.º do mesmo diploma resulta que a prestação de serviços de interesse geral pelas empresas municipais depende da celebração de contratos de gestão com as entidades participantes, onde se defina pormenorizadamente, o fundamento da necessidade do estabelecimento da relação contratual, a finalidade da mesma relação, a eficácia e eficiência que se pretende atingir com a mesma, através de indicadores ou referenciais que permitam medir a realização dos objectivos sectoriais; os termos que regulam as transferências financeiras necessárias ao financiamento anual da actividade de interesse geral.
No mesmo sentido estipula o artigo 27.º dos Estatutos da Fagar, que estabelece que a «Empresa celebrará com o Município de Faro um contrato de gestão que defina pormenorizadamente o objecto e missão da Empresa», e que do mesmo constará, obrigatoriamente, o montante dos subsídios e das indemnizações compensatórias que a Empresa terá direito a receber como contrapartida das obrigações assumidas.
Por força do enquadramento legal atrás expendido, não existe um outro fim susceptível de delimitar a capacidade jurídica das empresas municipais que não o respectivo objecto social.
A capacidade jurídica da Fagar está, pois, limitada aos direitos e obrigações necessários à prossecução do seu objecto social, admitindo-se, desde a data da sua constituição, também o desenvolvimento de outras prestações de serviços conexos com a respectiva actividade, e bem assim, actividades acessórias ou complementares relacionadas, com o seu objecto principal, entendendo-se, como tal, designadamente as referentes à promoção da qualidade ambiental.
Ora, como claramente resulta do objecto social - cfr. versão originária dos Estatutos - a Fagar deve ou pode exercer actividades conexas, acessórias e complementares ao seu objecto principal, desde que no âmbito dos domínios da sua actividade principal, ou seja em matéria saneamento, higiene, limpeza pública e ambiente.
Temos pois para nós que, o objecto do Contrato de Gestão dos Espaços Verdes, que se submeteu a visto prévio junto do Tribunal de Contas, se subsume ao objecto estatutário da Fagar [tendo por referência os Estatutos na sua versão originária] porque se inclui naquilo que são as actividades acessórias ou complementares do objecto principal da empresa, de acordo com o objecto social previsto no artigo 3.º dos respectivos Estatutos.
No entanto, e não obstante o entendimento pugnado, os Estatutos foram alterados, por forma a constar expressamente no objecto principal da empresa o objecto do contrato de gestão celebrado, ou seja, a «(...) manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes ...)».
O problema que se pode defrontar - caso se entenda que ocorreu uma ampliação do objecto social da empresa municipal e isto sem conceder - prende-se com a questão de saber se a alteração dos Estatutos se apresenta viável, considerando o direito da contratação pública, em especial as regras do procedimento de adjudicação.
Importa pois saber se as partes do contrato de sociedade (os sócios da Fagar), podem, por acordo, modificar os termos do contrato inicial, celebrado na sequência de um procedimento aberto à concorrência.
Ora, conforme é consabido o Município de Faro e a Fagar são pessoas jurídicas distintas, e como refere Pedro Gonçalves «apesar de participadas e sob a influência dominante de municípios, as empresas municipais não se confundem com eles: mesmo quando assumam carácter unipessoal, são entidades juridicamente distintas, pelo menos num plano formal».
E uma vez constituída a Fagar, não se pode olvidar que a alteração dos estatutos é produzida por um órgão da pessoa jurídica (in casu a Assembleia Geral cfr. artigo 9.º dos Estatutos) e se impõe aos sócios como vontade dessa pessoa jurídica.
Não obstante o referido, ou seja a capacidade jurídica da Fagar proceder à alteração dos respectivos Estatutos, o certo é que o projecto de Estatutos foi aprovado por deliberação da Assembleia Municipal de Faro (cfr. artigo 4.º, n.º 3, da Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto), pelo que se entendeu, por força de um princípio de paralelismo de competências, que o órgão deliberativo também deveria pronunciar-se sobre o projecto de alteração dos Estatutos - sob proposta da Câmara Municipal - tal como in casu ocorreu nas duas alterações estatutárias.
Retomando agora à questão que se suscita na matéria, diremos que, em geral na contratação pública, o poder de modificação dos contratos encontra-se limitada pelo objecto do contrato, bem como a exigência de não discriminação da concorrência.
Quanto ao poder de modificação do contrato, atente o previsto no artigo 313.º, n.º 1 do Código dos Contratos Públicos, entendemos que a alteração do artigo 4.º dos Estatutos da Fagar circunscrita à actividade de «(...) manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes ...)», não conduz à alteração das prestações principais abrangidas pelo objecto do contrato, na medida em que estas se mantêm inalteradas.
Asserção esta que se retira, do princípio da intangibilidade do objecto do contrato, segundo o qual o contraente público, no exercício do jus variandi, pode mudar o contrato, mas não pode mudar de contrato; pode alterar o objecto das prestações contratuais, o que não pode é alterar, o objecto do contrato.
Assim sendo, entendendo-se que a última alteração estatutária não produziu uma alteração ao objecto social principal da Fagar, mas antes concretizou uma actividade que já era permitida pelo objecto social constante dos Estatutos iniciais, afigura-se-nos que a mesma não atenta contra o princípio da intangibilidade do objecto do contrato.
Não pondo a última alteração dos Estatutos manifestamente em causa o objecto do contrato de sociedade [o objecto social principal da empresa], a questão cinge-se a saber, se há, nela, algum elemento de desrespeito ou de discriminação da concorrência.
Ora, o tempo decorrido desde o concurso para a selecção do parceiro privado e da adjudicação, confortam a firme convicção de que não existe espaço para a existência de qualquer pretensão legítima contrária à última alteração dos Estatutos da Fagar.
Ademais, caso o caderno de encargos tivesse contemplado essa modificação, a questão da alteração ou não, da ordenação das propostas avaliadas no procedimento de formação do contrato, nunca aqui se colocaria, na medida em que a única proposta apresentada a concurso foi a do Agrupamento adjudicatário, conforme Anexo II.
Acresce ainda um outro factor que reforça as nossas conclusões, referimo-nos ao carácter particular da relação de colaboração público-privada num contexto institucionalizado. Na verdade, há neste caso a partilha de um "destino comum", o qual justifica desvios maiores em relação às regras gerais aplicáveis a outros tipos de colaboração. É isso que explica, por exemplo, o admitir-se que a escolha do parceiro privado (na formação dos contratos de sociedade) possa fazer-se por ajuste directo "quando razões de relevante interesse público o justifiquem" (cfr. artigo 31.º, n.º 3 do Código dos Contratos Públicos).
Embora tal não se afigure necessário, sempre diremos que, em caso de dúvida, a legitimidade da alteração dos Estatutos da Fagar teria, em qualquer caso, de se aferir em função da especificidade da relação de colaboração em causa.
Temos pois por demonstrada a conformação legal da última alteração aos Estatutos da Fagar com os princípios gerais da contratação pública, e não violação do princípio da concorrência, consagrado no artigo 1.º, n.º 4 do Código dos Contratos Públicos.  

III. O DIREITO

A materialidade junta ao processo, no confronto com a legislação, jurisprudência e orientações da Comissão Europeia aplicáveis, obriga, «in casu», a que ergamos, para apreciação as seguintes questões:
- Natureza e caracterização jurídicas do contrato de sociedade reportado à constituição da "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M."
- [I]legalidade da alteração/alargamento do objecto social da empresa "FAGAR", e respectiva repercussão no contrato ora submetido a fiscalização prévia;

Subsunção ou não do objecto do contrato [gestão de espaços verdes] a conceitos não directamente determináveis contidos na componente estatutária da empresa "FAGAR";
- [In] verificação dos pressupostos constitutivos do conceito relação «in house»;
- Das ilegalidades e o Visto.

Procederemos, pois, à necessária análise.

A. Da natureza jurídica do contrato de sociedade referente à constituição da "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.".

Respectiva caracterização.

1.
Como decorre do processo em apreço, a "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", é uma empresa de capitais maioritariamente públicos sendo que o contrato de sociedade que lhe subjaz e a formaliza foi precedido de concurso público internacional para a selecção de direito privado, o qual, ainda de acordo com o respectivo Anúncio e Caderno de Encargos, participaria, em parceria, na constituição da referida empresa municipal e a quem caberia gerir e explorar todo o sistema municipal de água e esgotos em baixa, bem como explorar o sistema municipal de recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos, higiene e limpeza urbana.
Decorrida a necessária e legal tramitação procedimental, e encontrados os parceiros privados, celebrou-se o correspondente contrato de sociedade [vd. II.1.], no qual, e com relevância, se fixou a composição do capital social, cabendo 51%ao Município de Faro, 32,83% à empresa "AGS", 8,085% à empresa "Hidurbe", e, ainda, 8,085% à empresa "Ecoambiente" [o capital detido por esta última veio, posteriormente, a ser adquirido pela empresa "Hidurbe, Gestão de Resíduos, S.A."].
De acordo com os Estatutos da empresa municipal em causa e constantes de documento complementar à escritura de constituição daquela [vd. art.º 25.º], os sócios de direito privado obrigam-se a efectuar prestações acessórias a favor da empresa até ao montante aí fixado [€ 18 115,032] e segundo calendarização prevista em "Acordo financeiro" alcançado previamente, sendo, também, remunerados, anualmente, segundo a fórmula aí [art.º 25.º, n.os 3 a 5, dos Estatutos] prevista.

2.
Atento o modo de constituição da referida empresa municipal, as razões [vd. o teor do Preâmbulo do Caderno de Encargos] que conduziram à sua criação, os fins por si prosseguidos e o sistema remuneratório das entidades privadas que nela participam, é indubitável que a mesma se abriga, conceptual e facticamente, ao conceito de parceria público-privada institucionalizada, ou, segundo outras definições, "joint ventures" e sociedades de capitais mistos.
Integra-se, ainda, no "conceito amplo" de parcerias público-privadas, que se ajusta a todos os modos de associação duradoura entre o sector público e o sector privado, em ordem ao desenvolvimento de uma actividade ou à construção e exploração de um bem público, e abrange, quer as relações de base contratual [parcerias público-privadas de base contratual], quer as relações de base associativa [parcerias público-privadas de base associativa] (1).

2.1.
A constituição da parceria público-privada em apreço, de natureza institucional, para além de potenciada pela necessidade de elevar a qualidade do serviço público a prestar mediante recurso à experiência de colaboradores privados em matéria de gestão e exploração de actividades que compõem o objecto social da empresa "FAGAR" [neste sentido, vd. as exigências apresentadas aos concorrentes aquando da abertura do citado concurso público internacional para a selecção do parceiro privado e constantes do respectivo Programa] define-se, assim, pela associação de entes privados a um parceiro público com vista a assegurar a implementação de uma actividade direccionada à satisfação de uma necessidade colectiva.
Uma definição que, em boa verdade, não se ancora, em toda a sua extensão, no Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26.04 (2), e no Código dos Contratos Públicos [vd. art.º 37.º, 45.º e 339º a 342º], consolidando-se, assim, o entendimento de que o legislador optou por não erguer as parcerias público-privadas à condição de um novo tipo contratual, mas configurando-as como um modelo de contratação susceptível de recondução a diversos tipos contratuais (3) [regulados no Código dos Contratos Públicos ou inominados].

3.
Assim, e concluindo, a empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", para além de conferir substância a uma parceria público-privada de natureza institucional, sobrevém a um modo de constituição que, inequivocamente, observa os princípios [da concorrência, transparência e da igualdade] ínsitos à contratação pública e a demais legislação aplicável, de natureza interna e comunitária.
De igual modo, não suscita reparo o objecto social que aquele ente colectivo visa realizar, atenta a respectiva conformação legal.
Também o contrato de sociedade então celebrado foi remetido a este Tribunal para efeitos de fiscalização prévia, tendo a respectiva minuta sido visada mediante decisão datada de 11.08.2005.

B. Do objecto social [inicial] da Empresa Municipal "FAGAR" e [i]legalidade da respectiva alteração.

Decorre do processo em apreço e, também, da factualidade fixada em II., deste Acórdão, que a constituição da "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", foi precedida de concurso público internacional para a selecção de parceiro privado e que à mesma, por força dos Estatutos que a regem, foi atribuído um objecto social, depois, alargado à manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes.
Cumpre, assim, aferir da legalidade de tal alteração estatutária e inerente modificação do objecto social da referida Empresa Municipal.

1.
Conforme assinalámos em II., deste Acórdão, e decorre de documentação junta ao processo em apreço, o objecto social da empresa "FAGAR", delineado aquando da constituição desta, consistia na construção de redes de águas e de esgotos, gestão de exploração, manutenção e conservação dos sistemas públicos de distribuição de água para consumo público, recolha e rejeição de águas residuais domésticas e pluviais, recolha e transporte de resíduos sólidos urbanos e higiene e limpeza públicas, cobrança de taxas, tarifas e coimas, outras prestações de serviços conexos (4) com a respectiva actividade e atendimento comercial aos utentes dos respectivos serviços na área do município de Faro.
Posteriormente, ocorreu uma alteração aos Estatutos da referida empresa "FAGAR", aprovada por deliberações da Assembleia Municipal de Faro [de 20.02.2010] e da Assembleia Geral [de 10.02.2010] daquela entidade empresarial, a qual, em substância, se traduziu na extensão do objecto social à manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes.
Esta alteração foi objecto de inscrição comercial em 23.03.2010 [vd. insc. 6].
Aqui chegados, impõe-se, desde já, aquilatar da bondade [legalidade] da alteração estatutária operada, exercício que, necessariamente, convocará o apelo aos princípios que presidem à contratação pública e, mais particularmente, à normação disciplinadora da contratação pública, regulamentação e jurisprudência comunitárias.

1.1.
A alteração estatutária acima referenciada e descrita altera [alargando e modificando], inquestionavelmente, o objecto social da empresa municipal "FAGAR" e, inerentemente, modifica o contrato de sociedade, que, de resto, se confunde com o acto da sua constituição. Um contrato que, sublinhe-se, assume natureza pública, atenta a condição de um dos seus outorgantes [Município de Faro] e do objecto que persegue.
Configurada a constituição daquela empresa - "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M." - como parceria público-privada institucionalizada e sendo certo que o contrato de sociedade que a formalizou se reveste de natureza pública, questiona-se:

- Aquela alteração estatutária exibe conformação legal?
- Era admissível, em tais circunstâncias, a modificação do objecto social da empresa municipal "FAGAR"?

A resposta conter-se-á em análise que desenvolveremos, de seguida.

2.
Previamente, e contrariando entendimento vertido em resposta deduzida pelo Município de Faro no âmbito da prestação de esclarecimentos em fase administrativa do presente processo, entendemos que a manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes não se contém, ainda que implícitamente, no objecto social da empresa "FAGAR", melhor explicitado nos correspondentes Estatutos, que, afinal, integram o contrato de sociedade onde radica a sua constituição.
Na verdade, a manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes não evidencia conexão material essencial com as demais actividades perseguidas pela referida empresa e vertidas na respectiva componente estatutária original.
Dito de outro modo, a manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes configuram actividades ou tarefas autónomas e autonomizáveis, não sendo exercitáveis, necessariamente, em razão de uma outra actividade integradora do objecto social [original] daquela empresa, nem se posicionando, de modo acessório ou complementar, em relação a esta última.
E, discordando de certa argumentação deduzida pelo Município de Faro, adiantaremos que os sistemas de rega dos espaços verdes "entroncam" na rede de distribuição de água, mas, convenhamos, tal circunstância não determina uma relação de indissociabilidade entre a manutenção e gestão de espaços verdes e a construção e gestão dos sistemas públicos de distribuição de água.
De igual modo, a manutenção dos espaços verdes, com a consequente limpeza dos resíduos, não é relacionável com o transporte dos denominados resíduos sólidos urbanos e de higiene e limpeza pública inscrito no objecto social original da empresa "FAGAR". Trata-se, obviamente, de domínios de actividade bem diferenciados em razão do objecto a prosseguir.
Por último, embora admitamos que a promoção das boas práticas ambientais constitui uma tarefa transversal a todas as actividades que constituem o objecto social da empresa, tal não é conduzível ao estabelecimento de uma conexão e interligação essenciais entre estas e a manutenção e gestão dos espaços verdes.

2.1.
E, na demonstração do afirmado, bastará apelar ao teor das funções inscritas na cláusula 2.ª, do contrato sob apreciação, as quais, e resumidamente, se espraiam:

- Pela conservação e manutenção das zonas de vegetação,
- Pela realização dos trabalhos necessários à boa manutenção dos espaços verdes regas, cortes de relva, podas, plantações e tratamentos fitossanitários,
- Pela gestão do viveiro municipal,
- Pelas vistorias técnicas a loteamentos e urbanizações onde se encontrem jardins,
- Pelo apoio a associações de moradores encarregados da gestão de espaços verdes e, nesta parte, conhecer das reclamações apresentadas pelos munícipes.

Ou seja, e repetindo-nos, para além de tal actividade envolver capacidade técnica e meios específicos, a mesma, porque detentora de identidade e valia próprias, não exibe acessoriedade ou conexão essencial com as demais actividades integradoras do objecto social, que, originariamente, foi cometido à citada empresa "FAGAR".

2.2.
O alargamento do objecto social da empresa "FAGAR" à manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes traduz, assim, uma alteração estatutária e, consequentemente, uma modificação do contrato de sociedade que formaliza a constituição da empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M." e que, repete-se, se reveste de natureza pública.
E, atenta a dimensão [ambiental, económica e social] da actividade em que se materializa tal modificação estatutária, esta assume relevância e importância incontestáveis.
De resto, e no reforço do expendido, diremos que a decisão tendente ao alargamento do objecto social à manutenção, requalificação e gestão dos espaços verdes já subentende, afinal, o reconhecimento de que, originariamente, os Estatutos da empresa "FAGAR" não incluíam aquela área de actividade.

3.
Conforme decorre do mencionado contrato de sociedade [que institui a empresa "FAGAR"], a empresa "FAGAR" rege-se pelos Estatutos constantes de documento que lhe é complementar.
Daí o acerto da identificação da alteração do objecto social acima referenciado com a modificação do contrato de sociedade.
Prosseguiremos, pois, na aferição da [i]legalidade de tal modificação.

3.1.
A propósito da aplicação do direito comunitário em matéria de contratos públicos e de concessões às parcerias público-privadas institucionalizadas, inscreve-se [com relevância] na Comunicação Interpretativa n.º 2008/C91/02, da Comissão, o seguinte:
"Atendendo a que as P.P.I. são habitualmente criadas para prestação de um serviço durante um período bastante longo, devem ser garantidas as condições para se adaptarem a certas mudanças verificadas no ambiente económico, jurídico ou técnico. As disposições comunitárias relativas aos contratos públicos e às concessões não impedem de ter em conta estas evoluções, desde que sejam respeitados os princípios da igualdade de tratamento e da transparência. Assim, se a entidade adjudicante pretender ajustar certas condições de adjudicação após a selecção do contratante, essa possibilidade deve estar expressamente prevista, bem como as suas normas de execução, no anúncio do concurso ou nos cadernos de encargos, e deve ser definido o quadro em que se desenvolverá o processo... ."
E, noutro passo da referida Comunicação interpretativa, dispõe-se, ainda, o seguinte:
"...Significa que as Parcerias Público-Privadas institucionalizadas conservam o seu âmbito de actividade inicial e não podem, em princípio, obter novos contratos públicos ou concessões sem passar por um procedimento concorrencial em conformidade com o disposto em direito comunitário aplicável aos contratos públicos e às concessões..."
Também a jurisprudência do T.J.C.E (5). baliza, de modo claro, as limitações a eventuais modificações dos contratos públicos [onde se inscreve o contrato de sociedade formalizador da constituição da "FAGAR"], e por forma que passaremos a sintetizar:

- O direito comunitário não proíbe modificação dos contratos, mas condiciona- -a à observância dos princípios da concorrência, da igualdade e da transparência;
- É possível a alteração aos contratos, mas tal possibilidade deverá prever-se, expressamente, no contrato inicial ou nas peças do procedimento de adjudicação, incluindo as condições e circunstâncias que devem envolver tal modificação;
- Ainda que não expressamente autorizadas, em caso algum, se deve proceder a alterações substanciais ao contrato inicial;
- Não é possível o alargamento do contrato, em matéria relevante, a serviços não previstos inicialmente;
- Admite-se a possibilidade de modificações, desde que economicamente inócuas; ou seja, eventuais modificações não poderão beneficiar interesses económicos do co-contratante privado;
- As modificações nunca serão possíveis, se violadoras dos interesses daqueles que, no procedimento inicial, podiam apresentar propostas direccionadas ao objecto da alteração contratual;
- Fora destes parâmetros, as alterações correspondem a uma nova adjudicação, devendo o contratante público, em tais circunstâncias, promover "a concorrência para o mercado".

Internamente, também a normação reguladora da constituição das parcerias público-privadas, da respectiva actividade e evolução estatutária, exibe limitações e especiais cautelas, sempre como intuito de salvaguadar a observância dos princípios ínsitos à contratação pública [concorrência, igualdade e transparência].
Na materialização deste intuito regulador, surge o art.º 10.º, da Lei n.º 53- -F/2006, de 29.12 [aprova o regime jurídico do sector empresarial local], que, expressamente, subordina a actividade do empresariado local às regras gerais da concorrência, nacionais e comunitárias, o art.º 313.º, do Código dos Contratos Públicos, o qual, com clareza, estipula que a modificação contratual não pode configurar uma forma de impedimento, restrição ou de falseamento da concorrência [o art.º 313.º, do C.C.P:, é aqui aplicável, subsidiariamente, em razão das normas contidas nos art.os 12.º e 14.º, da mencionada Lei n.º 53-F/2006, de 29.12] e, por último, o art.º 1.º, n.º 4, do C.C.P., que guinda a transparência, a igualdade e a concorrência à condição de princípios estruturantes de toda a contratação pública.
No reforço da normação e jurisprudência invocadas, também a doutrina convocada ao esclarecimento da matéria sob análise vem sustentando que só razões de interesse genuinamente público legitimam a modificação de contratos de natureza também pública [independentemente do meio técnico a utilizar], sendo que esta só poderá estender-se a âmbito despido de qualquer essencialidade ou nuclearidade.
E, explicitando, refere, ainda, que a modificabilidade dos contratos públicos, na pendência da respectiva vigência, não depende apenas de razões atinentes ao interesse público, da observância do correspondente objecto e do equilíbrio financeiro correspondente. Subordinar-se-á, mui particularmente e também, aos princípios constitucionais e legais da concorrência, da igualdade e da transparência e, ainda, ao imperativo da não alteração dos pressupostos que basearam o procedimento concorrencial tendente à escolha da proposta adjudicada. Segmentação que, afinal, se ergue como limitação razoável à livre modificação do objecto contratual.
Afinal, e como se vinca em "Introdução" à Comunicação Interpretativa nº 2008/C91/02, embora as autoridades publicas sejam livres de confiar a entidades de capital misto [o caso vertente], criadas no âmbito de uma parceria publico-privada, uma determinada actividade económica, devem, no entanto, respeitar as disposições do direito comunitário e nacional aplicáveis a tal matéria.

3.2.
Face à jurisprudência e orientações legais comunitárias citadas, e, atento o direito e doutrina de âmbito interno, já se intui que a alteração do objecto social do contrato de sociedade que ditou a constituição da empresa "FAGAR" conflitua com tal enquadramento [legal e jurisprudencial].

3.2.1.
Com efeito, e como se mostra documentado no processo, do contrato de sociedade constitutivo da empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", e sobrevindo à realização de concurso público internacional para a selecção de parceiro privado, não decorre a possibilidade de alteração, modificação do respectivo clausulado por forma a incluir a actividade direccionada à manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes [previsibilidade que, também, não constava do correspondente caderno de encargos].
Por outro lado, e como desenvolvemos acima [vd. III. 3.1.2.], a manutenção, requalificação e gestão de espaços verdes não se abrigam aos conceitos de "serviços conexos com a respectiva actividade" e de "actividades acessórias ou complementares relacionadas com o seu objecto principal", constante do art.º 3.º, n.º 1 e 3, dos Estatutos da mencionada empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.". De resto, um segmento de actividade tão relevante [vd., ilustrando, o valor do contrato sob fiscalização] e específico jamais se ajustaria à condição de complementar ou acessório das demais actividades integradoras, originariamente, do objecto social da empresa "FAGAR".
Depara-se-nos, assim, uma alteração substancial do contrato de sociedade inicial, não prevista estatutariamente, com ausência de qualquer procedimento cumpridor dos mencionados princípios [concorrência e transparência] ínsitos à contratação pública e, ainda, violadora da jurisprudência e orientações comunitárias [vd. Comunicação Interpretativa n.º 2008/C91/02]. Alteração esta que, sublinhe-se, para além de afrontar a regra da imodificabilidade/inalterabilidade da essência dos contratos reportados à constituição das parcerias público-privadas, se posicionou, ainda, como âncora e fundamento do contrato sob fiscalização. Dito de outro modo, a atribuição da actividade consubstanciadora do objecto do contrato sob fiscalização à empresa "FAGAR" funda-se, afinal, na alteração da finalidade antes cometida, estatutariamente, a tal entidade e que se traduziu na extensão do respectivo objecto social à gestão, manutenção e requalificação dos espaços verdes.

3.2.2.
O afirmado não é, ainda, contrariado ou colocado em causa pela inquestionável capacidade jurídica das empresas municipais, aliás, devidamente positivada na citada Lei n.º 53-F/2006.
Na verdade, embora reconheçamos que os Estatutos [versão originária] da empresa "FAGAR" cometem à respectiva Assembleia-Geral [vd. art.13.º, n.º 1, al. e)] o poder de deliberar sobre propostas de alteração aos mesmos, tal não significa que o exercício de tal competência não seja limitado pela necessária observância da lei e dos princípios estruturantes da contratação pública acima invocados. Ou seja, e pese embora o citado poder estatutário, o exercício deste não poderia materializar-se em alterações essenciais ou substanciais [como ocorreu no caso vertente] do contrato de sociedade constitutivo da empresa "FAGAR".
Circunstância que, obviamente, é de fácil percepção e inevitável acolhimento.
Com efeito, e admitindo a bondade da modificação estatutária operada, estaria encontrada a via para a co-contratação com total postergação das regras e princípios ínsitos à contratação pública. Bastaria, para tanto, e exemplificativamente, promover a constituição de uma empresa de capitais maioritariamente públicos, configuradora de uma parceria público-privada institucionalizada [com inteira observância das regras da contratação pública], e, posteriormente, mediante alterações sucessivas do objecto social, atribuir-lhe o desempenho de actividades não previstas no contrato inicial [de sociedade] ou enunciados no Caderno de Encargos correspondente.
Deparar-se-nos-ia uma solução marcada pela agilidade, mas, naturalmente, sem o menor controlo ou acautelamento da vertente financeira do contrato, e, enfatize-se, violadora dos princípios da transparência e da concorrência [afinal, a não inclusão em Caderno de Encargos da actividade relacionada com a gestão de espaços verdes sempre impediria que potenciais concorrentes com sólida capacidade técnica e funcional neste domínio apresentassem as suas propostas].
Ademais, importará anotar que a empresa "FAGAR" é uma empresa de capitais maioritariamente públicos, mas participados, na percentagem de 49% do capital, por entidades privadas. Logo, o eventual acolhimento da solução contratual encontrada [ora sob fiscalização] conferiria, ainda, a estas últimas [entidades privadas] uma vantagem inaceitável no confronto com outras empresas existentes no mercado e, potencialmente, concorrentes no desempenho da actividade ora atribuída à "FAGAR". Circunstância que também concorre para o desvirtuamento dos princípios enunciados no art.º 1.º, n.º 4, do C.C.P. .

3.2.3
Importa acrescentar, ainda, que a alteração/modificação do objecto social [original] da empresa "Fagar", com o consequente alargamento da actividade desta à manutenção, requalificação e gestão dos espaços verdes, e promovida pela Câmara Municipal de Faro e Assembleia-geral da "Fagar", ocorre ao arrepio de qualquer procedimento assegurador dos princípios da concorrência e da transparência e, também, dos próprios Estatutos [que não prevêem, de modo expresso, tal alteração].
Logo, o contrato ora submetido a fiscalização, porque ancorado naquela alteração estatutária indevida, repercute, necessariamente, a ilegalidade imanente à referida modificação do objecto social, reputando-se de ilegal a tramitação procedimental [ajuste directo] que conduziu à sua celebração.
Decorrentemente, a adjudicação sob fiscalização prévia, porque insusceptivel de, validamente, se estribar na referida alteração estatutária e por não ser precedida de procedimento com cariz concursal, obrigatório no caso, enferma de nulidade que, por sua vez, se transmite ao contrato sob fiscalização [Vd. artº. 185º.,nº. 1, do C.P. Administrativos.  

C. Da Contratação "In house".
Sujeição do Contrato em apreço ao Regime da Contratação Pública.

A atribuição da gestão e manutenção dos espaços verdes à empresa "FAGAR", sem precedência de qualquer procedimento concursal e mediante adjudicação sobrevinda a deliberação camarária autorizativa, sugere, ainda, a abordagem do conceito "contratação in house", para aferirmos da aplicabilidade ou não da parte II., do Código dos Contratos Públicos, ao contrato ora sob fiscalização, e, mais específicamente, para aí centrarmos a eventual [i]legalidade do contrato ora sob fiscalização prévia.

Análise a que procederemos.

1.
Sob a epígrafe "Contratação excluída", o art.º 5.º, do C.C.P., dispõe:
"(...)
2. A parte II do presente Código também não é aplicável à formação dos contratos, independentemente do seu objecto, a celebrar pelas entidades adjudicantes com uma outra entidade, desde que:
a) A entidade adjudicante exerça sobre a actividade desta, isoladamente ou em conjunto com outras entidades adjudicantes, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços;
e
b) Esta entidade desenvolva o essencial da sua actividade em benefício de uma ou de várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela o controlo análogo referido na alínea anterior.(...)".

Ou seja, e indo ao encontro da normação contida no transcrito preceito, a verificação, necessariamente, cumulativa dos pressupostos ali [als. a) e b)] enunciados dispensa a entidade adjudicante da submissão às regras da Contratação Pública, a que se reporta a Parte II, do C.C.P., e que constam do art.º 16.º e seguintes, deste mesmo diploma legal.
Como é sabido, e a melhor doutrina (6) também o assinala, a questão das relações "in house", sob o impulso das instâncias comunitárias [entre outras, o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, abreviadamente, T.J.C.E.], tem vindo a erguer-se como temática de abundante e intensa análise, a que não será alheia "a tensão latente entre a liberdade de auto-organização administrativa e a liberdade de mercado", inerente às relações "in house". Na explicitação do afirmado, diremos que, em regra, a Administração, sempre que necessite de bens ou serviços deverá dirigir-se ao mercado, cumprindo, assim, as normas - art.os 12.º, 43.º, 49.º e 86.º - do Tratado C.E. e atinentes à salvaguarda de uma dinâmica concorrencial de mercado e, decorrentemente, dos princípios da igualdade e transparência.
Daí que, e abreviadamente, afirmemos que a disciplina contida no citado art.º 5.º, n.º 2, do C.C.P., traduz uma clara excepção ao ordenamento geral aplicável. Donde decorre, ainda, uma maior exigência de análise da questão em causa.

2. Requisitos da relação "in house".

Segundo jurisprudência do T.J.C.E. [vd. o denominado processo "TECKAL" , com o n.º C-107/98] verifica-se a relação "in house", legitimadora do não apelo ao procedimento pré-contratual de natureza concursal para fornecimento de bens ou serviços, por parte da entidade adjudicante, sempre que a entidade adjudicatária, embora distinta daquela no plano formal, não seja da mesma autónoma no âmbito decisório.
Por outro lado, e ainda de acordo com o referido Tribunal de Justiça, a verificação da relação "in house" subordina-se à ocorrência, de modo cumulativo e permanente, dos seguintes requisitos:

- Exercício, pela entidade adjudicante e sobre a adjudicatária, de um controlo análogo ao exercido por aquela sobre os seus próprios serviços;
e que
- A entidade adjudicatária realize o essencial da sua actividade para a entidade adjudicante que a controla.

Tais pressupostos [da relação "in house"] constam também do mencionado art.º 5.º, n.º 2, als. a) e b), do Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29.01, normação essa que, como já sublinhámos, constitui uma derrogação excepcional das regras da contratação pública e, naturalmente, devem ser objecto de interpretação restritiva (7), em preservação do princípio da concorrência.
O Código de Contratos Públicos não densifica o conteúdo daqueles requisitos, o que obriga a um esforço de interpretação casuístico, em que concorrerão a factualidade pertinente e, ainda, a legislação e jurisprudência comunitárias ajustáveis.

3. Do Controlo Análogo.

Tal como refere Bernardo Azevedo (8), a existência de uma posição de sujeição ou de subordinação da entidade adjudicatária em relação à entidade adjudicante, retirando àquela autonomia decisória e submetendo-a à orientação desta última, já denuncia a substanciação do conceito "controlo análogo" constante do art.º 5.º, n.º 2, do C.C.P.
No entanto, e ainda na peugada daquele autor, a relação de "controlo análogo", estabelecida entre a entidade adjudicante e uma outra dela distinta formalmente, exige o designado poder de "indirizzo" [expressão de R. Perin/D.Casalini] ou um adstringente poder de direcção [vd. R. Ursi] sobre a entidade submetida ao seu poder de controlo, um poder que, ainda nas palavras de Bernardo Azevedo, viabilize o exercício de uma influência determinante no âmbito da estratégia e decisão da organização "in house". Só, deste modo, é sustentável que a entidade controlada [e também adjudicatária] se assuma como uma estrutura interna da entidade adjudicante, erguendo-se, afinal, e na expressão de S. Columbari, como uma simples relação de "delegação inter-orgânica". Ou seja, e convocando aqui o juízo formulado no aresto recorrido, "a entidade adjudicatária comportar-se-á como mero instrumento de concretização da vontade do adjudicante, não tendo autonomia real, nem vontade negocial própria.
E, a propósito, adianta, também, Pedro Gonçalves (9) que na "relação" sob análise, a entidade dominada ou adjudicatária não goza "de uma margem de autonomia decisória sobre aspectos relevantes da sua vida, relacionados, por exemplo, com a estratégia concorrencial a seguir, as actividades a desenvolver, endividamentos a contrair ...", estando a entidade adjudicante, por sua vez, em condições de fixar a orientação geral da empresa, atribuindo-lhe o capital de dotação, assegurando a cobertura de eventuais custos sociais, verificando o resultado da gestão e exercendo supervisão estratégica".
Explicitado o conceito legal de "controlo análogo", importará indagar se, «in casu», entre o Município de Faro e a empresa "FAGAR" ocorre a denominada relação "in house", porventura legitimadora da não aplicação das regras da contratação pública à formação do presente contrato.
Ora, como ressalta do processo e se inscreveu em II., deste Acórdão, o capital social da empresa "FAGAR" encontra-se detido na percentagem de 51% pelo Município de Faro, 32/83% pela empresa "AGS - Administração e Gestão de Sistemas de Salubridade, S.A.", e 16,17% pela empresa "HIDURBE - Gestão de resíduos, S.A.". Ou seja, a empresa "FAGAR" é integrada por entes privados [sócios de direito privado] que detêm 49% do capital social.
E estes últimos integram a Assembleia-Geral [vd. art.º 9.º, dos Estatutos], a quem compete, entre o mais, apreciar e votar os instrumentos de gestão previsional relativos ao ano seguinte e a proposta de aplicação dos resultados, eleger os membros dos órgãos sociais [aí incluindo o Conselho de Administração], autorizar a realização de investimentos de valor superior a 2% do capital social, velar pela adequada gestão económica e financeira da empresa e, por fim, pronunciar-se [recomendando!] sobre assuntos de interesse para a empresa.
Donde, com clareza, se intui que os mencionados sócios de direito privado com poderes que lhes permitem influenciar a actividade da empresa "FAGAR", estratégica e gestionáriamente.
Diremos, mesmo, que o contrato em apreço, mostra-se celebrado entre dois entes colectivos distintos [Município de Faro e "FAGAR"], sendo que a co-contratante "FAGAR" já segue um modelo empresarial que tende a autonomizá-la, formal e decisoriamente.

3.1.
Para além do enquadramento normativo, doutrinário e jurisprudencial [do T.J.C.E.] que definem e melhor explicitam o conceito de "relação in house" e, mais particularmente, do requisito - controlo análogo - que o enforma, importará saber se a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade a que se associa a entidade adjudicante, permitirá, ou não, por parte desta, um controlo análogo ao exercido sobre os seus serviços.
O encontro da resposta não dispensará, obviamente, o apelo à jurisprudência comunitária.
Tal como refere Bernardo Azevedo (10), " não basta, para poder afirmar esta ideia de dependência decisória da organização "in house" por relação à entidade adjudicante, que esta última, no caso de sociedades participadas, ainda que integralmente, por capitais públicos, detenha a maioria do capital social, uma vez que o exercício, em sede de assembleia-geral, dos direitos de accionista, nos termos da Lei Comercial, pode não se afigurar suficiente para garantir um controlo efectivo sobre as escolhas mais relevantes da entidade controlada".
Exige-se, pois, o denominado equilíbrio de "governance" que assegure a efectiva e determinante influência do ente público sobre as opções de gestão da sociedade (11).
Também o Tribunal de Justiça [vd. acórdãos proferidos nos processos C-26/03 [Stadt Halle], c-410/04 (ANAV)] vem sustentando que a participação, embora minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade no qual também participa a entidade adjudicante "exclui, de qualquer forma, que esta última exerça sobre aquela sociedade um controlo análogo ao exercido sobre os seus próprios serviços".

E no desenvolvimento da orientação ali firmada, aí se sustenta, com relevância, o seguinte:

- Uma entidade pública, adjudicante, estabelece uma relação com os seus próprios serviços, que se rege por mecanismos tendentes à prossecução do interesse público; ao invés, a participação de capital privado numa empresa persegue objectivos de natureza diversa, por radicar em interesses diferentes.
- A atribuição, sem concurso, de um contrato público a uma empresa de economia mista colide com o objectivo da livre concorrência, pois permite a uma empresa privada com capital nessa empresa uma vantagem no confronto com eventuais concorrentes.

Assim, na esteira da doutrina e jurisprudência citadas a propósito da melhor dilucidação do conceito "controlo análogo" [vd. art.º 5.º, n.º 2, do C.C.P.], é imperioso concluir que o Município de Faro não exerce sobre a empresa "FAGAR" um controlo análogo ao exercido sobre os seus próprios serviços e, consequentemente, não se nos depara a denominada relação contratual "in house".
Porque à formação do contrato sob fiscalização sempre seria aplicável a parte II, do Código dos Contratos Públicos, a via adoptada [atribuição directa e sem concurso prévio], também por esta razão, não observa o art.º 5.º, n.º 2, do C.C.P. e, bem assim, os princípios consignados no art.º 1.º, n.º 4,do C.C.P., e estruturantes da contratação pública.  

IV. DAS ILEGALIDADES.

O Visto.

1. Das ilegalidades.
Perante o exposto, é adequado afirmar e concluir que a alteração do objecto social [original] da empresa "FAGAR" [parceria publico-privada de natureza institucional] incide sobre matéria essencial e de relevância incontestável e não se mostra legitimada por previsão estatutária, sendo que a tramitação procedimental [ajuste directo] prévia à celebração do contrato em apreço se suporta na aludida modificação.
Para além disso, e conforme se mostra abundantemente referido, quer a citada alteração estatutária, quer o contrato sob fiscalização, não se mostram suportados em algum procedimento de pendor concursal, passível de lhe transmitir conformação legal e adequação aos princípios e orientações comunitárias que os norteiam [Vd., entre o mais, o artº. 1º., nº.4, do CCP. e Comunicação Interpretativa nº 2008/C91/02].
Neste contexto, e com relevância, perfila-se a verificação das ilegalidades seguintes:

- Alteração/modificação de componente objectiva e essencial do contrato de sociedade constitutivo da "FAGAR" [parceria público-privada de natureza institucional], materializada na extensão do objecto social desta à manutenção e gestão de espaços verdes, sem que tal se preveja, expressamente, nos respectivos Estatutos e sem observância dos princípios estruturantes da contratação pública vertidos no art.º 1.º, n.º 4, do C.C.Públicos, na Comunicação Interpretativa n.º 2008/C91/02, da Comissão, e, bem assim, nos art.os 313.º, do C.C.P., 10.º e 14.º, da Lei n.º 53-F/2006, de 29.12;
- Adjudicação directa, pelo Município de Faro, da gestão, manutenção e requalificação dos espaços verdes à empresa "FAGAR - Faro, Gestão de Águas e Resíduos, E.M.", contratualizada sem precedência de qualquer procedimento com pendor concorrencial [contratualização sobrevinda a mera deliberação da Assembleia Municipal de Faro [de 27.04.2011] e decisão da Câmara Municipal [de 20.04.2011], ainda em clara violação do disposto no art.º 1.º, n.º 4, do Código dos Contratos Públicos.

1.1.
E, precisando, a elencagem daquelas ilegalidades não conduz à ampliação [sempre indevida, se perspectivada sob a óptica jurídico-processual] do objecto do processo, que, como é sabido, se confunde com o contrato ora submetido a fiscalização prévia.
Na verdade, e como flui do expendido em III., a aferição da [i]legalidade do contrato sob fiscalização em causa é indissociável do conhecimento do contrato de sociedade constitutivo da empresa "FAGAR" e, bem assim, da tramitação procedimental que aí convergiu. Ou seja, e explicitando, a melhor apreciação da[i]legalidade do contrato sob fiscalização mostra-se, necessariamente, condicionada pela prévia aferição da bondade legal da constituição da empresa "FAGAR" e, mui particularmente, pela dilucidação da legalidade ou ilegalidade da modificação do objecto social operada já "em vida" daquela entidade empresarial.
Tais ilegalidades evidenciam, assim, manifesta interacção e interdependência [a alteração do objecto social da empresa "Fagar", com atribuição a esta de competência no âmbito da gestão dos espaços verdes, permitiu e condicionou a celebração do contrato ora sob fiscalização sem apelo a procedimento concursal prévio], se entendidas em razão do resultado perspectivado e obtido [o contrato sob análise].

1.2.
Conforme já referenciámos, a perpetração daquele "complexo" ilegal induziu, pois, a celebração de um contrato entre o Município de Faro e a empresa "FAGAR" [ora sob fiscalização], sem que, previamente, e mediante a via concursal, se salvaguardassem os princípios da concorrência e da transparência.
Ora, a omissão de concurso, porque obrigatório no caso [vd. valor do contrato], converge na falta de um elemento essencial da adjudicação, o que é determinador da nulidade desta [vd. art.º 133.º, n.º 1, do C.P. Administrativo]. Nulidade que, acrescenta-se, se transmite ao contrato [vd. artº 185º., nº1, do CPA].

2. O Visto.

O art.º 44.º, n.º 3, da Lei n.º 98/97, de 26.08, dispõe que a recusa do Visto se basta com a desconformidade dos actos e contratos com as leis em vigor e que implique:
- Nulidade;
- Encargos sem cabimento em verba orçamental própria ou violação directa de normas financeiras;
- Ilegalidade que altere ou possa alterar o respectivo resultado financeiro.

Consideradas as ilegalidades referenciadas em IV.1., deste Acórdão, é de concluir que não ocorre a assunção de encargos sem a necessária cabimentação.
Contudo, tais ilegalidades, já descritas e ponderadas, são susceptíveis de alterar o resultado financeiro do contrato e enformam a nulidade a que alude o art.º 133.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo.
Acresce que, ainda de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a densificação da expressão "ilegalidade que possa alterar o respectivo resultado financeiro" basta-se com o simples perigo ou risco de que, da ilegalidade cometida, possa resultar a alteração do correspondente resultado financeiro.
Assim, e concluindo, as ilegalidades enunciadas fundam a recusa do Visto [vd. art.º 44.º, n.º 3, als. a) e c), da Lei n.º 98/97, de 26/08].
É certo que o art.º 44.º, n.º 4, da lei n.º 98/97, de 26/08, prevê que, no caso previsto no n.º 3, alínea c), de igual norma, o Tribunal, em decisão fundamentada, pode conceder o Visto e fazer recomendações aos organismos no sentido de suprir ou evitar, no futuro, tal ilegalidade.
Porém, tal opção mostra-se inviabilizada em razão da nulidade tida por verificada [vd. n.º 3 a), do citado art.º 44.º].
E, por outro lado, a inobservância dos princípios estruturantes da contratação pública, com especial destaque para o princípio da concorrência, compromete, de modo grave, a garantia de um adequado funcionamento do mercado, e, inerentemente, a protecção do interesse financeiro público. Facto que, só por si, também impediria a concessão do Visto.  

V. DECISÃO.

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, em Subsecção, recusar o Visto ao presente contrato.
Emolumentos legais [art.º 5.º, n.º 3, do Regime dos Emolumentos do Tribunal de Contas, anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31.05].
Lisboa, 17 de Outubro de 2011   

Os Juízes Conselheiros,
(Alberto Fernandes Brás - Relator)
(Helena Maria Abreu Lopes)
(Manuel Roberto Mota Botelho)

Fui presente,
(Procurador-Geral Adjunto)
(Jorge Leal) 


(1) Vd. neste sentido, P. Siza Vieira, Estudos de Contratação Pública, Vol. I. 
(2) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 141/2006, de 27.07. 
(3) Vd., ainda, P.Siza Vieira, in ab. Cit. 
(4) Sublinhado nosso. 
(5) Vd. Acórdãos "Comissão/CAS Succhi di Frutta e Pressetext. 
(6) Vd. Bernardo Azevedo, Estudo Sobre "Contratação in house: Entre a liberdade de Auto-Organização Administrativa e a Liberdade de Mercado". 
(7) Cf., ainda, Bernardo Azevedo, em "Estudo" já identificado. 
(8) Vd. Estudos da Contratação Pública I, fls.126. 
(9) Vd. Regime Jurídico das Empresas Municipais. 
(10) Estudos da Contratação Pública, I 
(11) Vd. Elisa Scotti.