Acórdão n.º 58/2011, de 14 de Julho de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 611/2011)

Imprimir

ACÓRDÃO Nº 58/2011 - 14/07/2011 - 1ª SECÇÃO/SS

PROCESSO Nº 611/2011 - 1ª SECÇÃO

 I. RELATÓRIO  

A Câmara Municipal de Gondomar remeteu ao Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia, o contrato de empreitada para "Construção do Parque Tecnológico e de Negócios de Ourivesaria de Gondomar - Edifício Central e Arranjos Exteriores" celebrado entre aquele Município e a Sociedade "Alexandre Barbosa Borges, S.A.", em 29.03.2011, no valor de € 4 584 297,20 [s/IVA].

II. DOS FACTOS

Para além da materialidade referida em I., consideram-se assentes, com relevância, os seguintes factos:

1.
Por deliberação da Câmara Municipal de Gondomar, de 30.12.2010, foi autorizada abertura de um Concurso Público Urgente para a realização da empreitada relativa à "Construção do Parque Tecnológico e de Negócios de Ourivesaria de Gondomar - Edifício Central e Arranjos Exteriores", fazendo-o ao abrigo do art.º 52.º,n.º 2, do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18.06;

1.1.
O respectivo Anúncio de Abertura foi publicado no Diário da República n.º 252, II Série, de 30.12.2010;

1.2.
No ponto 9, do Anúncio de Abertura do Concurso, estabeleceu-se que o prazo para a apresentação das propostas era de 8 dias, a contar da data do envio do Anúncio, que, como se documenta, ocorreu em 30.12.2010;

1.3.
O preço-base estabelecido foi de € 4 825 575,99;

1.4.
O critério de adjudicação foi o do mais baixo preço;

1.5.
Ao concurso em causa apresentaram-se onze concorrentes, tendo todas as propostas apresentadas sido objecto de exclusão;
Concretizando, as propostas dos concorrentes n.os 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e10 foram excluídas por violação dos parâmetros-base fixados no Caderno de Encargos (1), sendo que as apresentadas pelos concorrentes n.os 8, 9 e 11 foram objecto de exclusão em razão dos respectivos valores serem inferiores em 5% relativamente ao preço-base [considerada proposta anormalmente baixa, face ao fixado no art.º 14.º, do Programa do Concurso];

2.
A Câmara Municipal de Gondomar, estribando-se na circunstância de em anterior concurso público todas as propostas terem sido excluídas e não ocorrer alteração substancial ao Caderno de Encargos relativamente ao procedimento reportado em II. 1., deliberou, em 10.02.2011, aprovar o procedimento, traduzido em ajuste directo sem consulta (2);
Decorrentemente, foi remetido convite à empresa "Alexandre Barbosa Borges, S.A.", em 25.02.2011, [coincidentemente, concorrente n.º 1, daquele primeiro procedimento - concurso público urgente], para apresentação da respectiva proposta, em 3 dias;

2.1.
No âmbito deste procedimento, o preço-base foi alterado para € 4 584 297,20, sendo que o prazo de execução da obra é de 18 meses;

2.2.
A empreitada foi adjudicada à empresa "Alexandre Barbosa Borges, S.A.", e mediante deliberação da Câmara Municipal de Gondomar tomada em 10.03.2011;

2.3.
A obra foi consignada em 02.05.2011;

3.
No âmbito do procedimento reportado em II.1. [concurso público urgente], o concorrente [n.º 8] "FDO- Construções, S.A.", aí excluído, apresentou uma proposta no valor de € 4 497 708,93;

4.
Questionada a Câmara Municipal de Gondomar sobre a [ilegalidade da alteração do preço-base (3), a mesma aduziu, com relevância, o seguinte:
"(...)
A redução do preço base previsto no caderno de encargos pautou-se, essencialmente, por critérios de boa gestão dos dinheiros públicos, um dos princípios subjacente à contratação pública sustentada, também, no Código dos Contratos Públicos.
Por outro lado, não constituindo impedimento, à entidade adjudicante, o envio de convite para apresentar proposta a quem haja participado no procedimento, vide nesse sentido, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in Concurso e Outros Procedimentos de Contratação Pública, Almedina 2011, fls. 752, mal se andaria se aquele fosse convidado a apresentar proposta por um preço superior ao que anteriormente já tinha efectuado, ai sim, com uma efectiva lesão do princípio.
Resulta do nº 8 do artigo 24º o CCP "(...) que o caderno de encargos e os requisitos mínimos de capacidade técnica e financeira são substancialmente alterados quando as alterações sejam susceptíveis de impedir a verificação das situações previstas nessas alíneas, nomeadamente quando sejam alterados os parâmetros base fixados no caderno de encargos".
Assim, entendemos que existe alteração substancial quando esta seja susceptível de impedir a exclusão dos concorrentes em anterior procedimento concursal, tal como previsto na al. b) do nº 1 do mesmo artigo.
Ora, através da análise efectuada pelo Júri do procedimento, em 28 de Janeiro de 2011, a qual faz parte integrante da deliberação da Câmara Municipal de 10 de Fevereiro, no âmbito do concurso público urgente, conjugada com a informação agora prestada, em 20 de Junho de 2011, verificamos que a redução do preço base, igual ao que foi apresentado pelo concorrente no âmbito do concurso público urgente, em nada conflitua com a norma atrás citada, porque com a alteração operada os concorrentes excluídos, de acordo com a respectiva fundamentação, nunca poderiam ser admitidos.".  

III. O DIREITO

A materialidade junta ao processo, no confronto com a legislação aplicável, obriga, «in casu», a que ergamos, para apreciação e centralmente, as seguintes questões:

- Fundamento [ou não] legal da adopção do ajuste directo enquanto procedimento pré-contratual;
- Eventual nulidade.
- Das ilegalidades e o Visto.

Passaremos à necessária análise.

A. [I]Legalidade do recurso ao ajuste directo.

1. Enquadramento normativo.
Breve análise.

Como é sabido, a escolha do procedimento em função de critérios materiais mostra-se regulada no Capítulo III, Parte II, do Código dos Contratos Públicos.
Aí, e sob o art.º 24.º, n.º 1, al. b), do Código dos Contratos Públicos, dispõe-se o seguinte:

"Art.º 24.º [Escolha do ajuste directo para a formação de quaisquer contratos].
1.- Qualquer que seja o objecto do contrato a celebrar, pode adoptar-se o ajuste directo quando:
a)...
b) Em anterior concurso público, concurso limitado por prévia qualificação ou diálogo concorrencial, todas as propostas apresentadas tenham sido excluídas, e desde que o Caderno de Encargos não seja substancialmente alterado em relação ao daquele procedimento.
c)...
...
8. Para efeitos do disposto nas alíneas a)e b), do n.º 1, considera-se que o Caderno de Encargos e os requisitos de capacidade técnica e financeira são substancialmente alterados quando as alterações sejam susceptíveis de impedir a verificação das situações previstas nessas alíneas, nomeadamente quando sejam modificados os parâmetros-base fixados no Caderno de Encargos.

Por sua vez, o art.º 47.º, n.º 1, al. a), do C.C.P., dispõe:

"Art.º 47.º [Preço-base].
1.- Quando o contrato a celebrar implique o pagamento de um preço, o preço- -base é o preço máximo que a entidade adjudicante se dispõe a pagar pela execução de todas as prestações que constituem o seu objecto, correspondendo ao mais baixo dos seguintes valores:
a) O valor fixado no Caderno de Encargos como parâmetro base do preço contratual;
b) ...;
...

Da leitura da normação invocada, e, ainda, na peugada da doutrina mais representativa (4), impõe-se concluir o seguinte:
- O apelo ao ajuste directo, nas circunstâncias previstas no art.º 24.º, n.º 1, al. b), do C.C.P., pressupõe, de um lado, a frustração da finalidade do procedimento concorrencial, objectivada, eventualmente, pela exclusão de todas as propostas e, do outro, a manutenção do Caderno de Encargos e dos requisitos mínimos de capacidade técnica e financeira [em boa verdade, só se nos depara a adjudicação do mesmo contrato se este não sofrer alteração substancial, e, nomeadamente, no plano das cláusulas que constituem os parâmetros base do Caderno de Encargos (parâmetros que criam obrigações técnicas, financeiras ou jurídicas inerentes à execução do contrato) - vd. art.º 42.º, do C.C.P.];
- Por outro lado, e acentue-se, a expressão "substancialmente" empregada no n.º 8, do art.º 24.º, do C.C.P., visa impôr um limite qualitativo [e não quantitativo] à alteração; ou seja, e exemplificando, se o Caderno de Encargos é alterado na sua componente essencial, depara-se-nos um novo contrato;
A norma «sub judice» visa, afinal, impedir as alterações de relevância considerável, i.e., as que alterem o conteúdo obrigacional ínsito ao Caderno de Encargos já patenteado.
Eis, pois, o complexo normativo que permitirá o encontro de uma solução para a questão- [I]legalidade do ajuste directo enquanto procedimento pré-contratual - acima equacionada.

2. O caso em apreço.
Atenta a materialidade tida por provada, indagar-se-á, agora, se, no caso em apreço, ocorrem ou não os pressupostos vertidos no art.º 24.º, n.os 1, al. b) e n.º 8, do Código dos Contratos Público e que legitimam o recurso ao ajuste directo.

2.1.
Conforme referimos em II.2.1., deste acórdão, e também resulta do processo, o preço-base do procedimento foi alterado de € 4 825 575,99 [valor fixado no âmbito do concurso público urgente] para € 4 584 297,20 [valor fixado no domínio do presente procedimento- ajuste directo].
Logo, face ao valor do preço-base resultante da alteração efectuada, a proposta apresentada pela empresa "FDO - Construções, S.A." [no valor de €4 497 708,93], não seria excluída, pois situar-se-ia abaixo deste mesmo preço na mera percentagem de 1,89% [no âmbito do concurso público urgente, a exclusão ocorreria, caso os valores das propostas fossem inferiores em 5% ou mais relativamente ao preço-base].
É indubitável que o preço-base constitui um parâmetro do Caderno de Encargos, traduzindo, até, o valor máximo que a entidade adjudicante se dispõe a pagar pela execução de todas as prestações que constituem o objecto do contrato [vd. art.º 47.º, n.º 1,do C.C.P.]. E, seguramente, que o mesmo [preço-base] figura como um elemento essencial do Caderno de Encargos.
Daí que a alteração efectuada, [alteração do preço-base],porque constitui uma modificação substancial e essencial do Caderno de Encargos, conduza, inevitavelmente, à inverificação do pressuposto inscrito no art.º 24.º, n.º 1, al. b), do C.C.P., e, consequentemente, retire, ainda, suporte legal à adopção do ajuste directo enquanto procedimento pré-contratual.
Neste contexto, impunha-se, isso sim, o apelo ao concurso enquanto tipo de procedimento.

2.2.
A final, e enfrentando a posição sustentada em fase instrutória do processo [vd. resposta transcrita sob II.4., deste acórdão], é de concluir que as razões adiantadas pela recorrente - vantagem financeira do contrato celebrado na sequência de ajuste directo e inevitabilidade da exclusão - não suscitam o menor acolhimento.
Na verdade, para além de não ser certo e de não se fundamentar que a opção pelo ajuste directo traduza uma via financeiramente mais vantajosa [de resto, considerando, a título de exemplo, o valor da proposta - € 4 497 708,93 - apresentada pela empresa "FDO - Construções, S.A.", em sede de concurso público urgente, e confrontando-o com o montante contratualizado após ajuste directo, é de admitir que a via concursal garantisse propostas mais vantajosas financeiramente], a entidade adjudicante em apreço persiste em conferir às normas contidas nos art.os 24.º, n.os 1, al. b) e n.º 8, e 47.º, ambos do C.C.P., um sentido que não tem na literalidade destas o menor eco.
E, na demonstração deste último juízo, acorrem as razões ínsitas à letra da lei invocada, as considerações de natureza doutrinária contidas em III.A.1., deste acórdão e, também, a reflexão que segue:

- Tal como já sublinhámos, por razões de natureza procedimental, o art.º 24.º, n.º 1, alínea b), do C.C.P., prevê o apelo o ajuste directo, desde que, por um lado, em anterior concurso ou diálogo concorrencial tenham sido excluídas todas as propostas, e, por outro, o Caderno de Encargos não seja substancialmente alterado, em relação ao procedimento anterior [o que sucederá se as alterações impedissem a exclusão de todas as propostas];

Lembramos, ainda, que este último requisito, para além de dever ser interpretado à luz do art.º 24.º, n.º 8, do C.C.P., pretende, ainda, evitar que seja implementado um procedimento meramente direccionado para a exclusão de todas as propostas, para, após, e mediante ajuste directo, ser seleccionada aquela que se entenda por conveniente, mas já desonerada dos condicionalismos que geraram a exclusão [este requisito mostra-se, também, justificado no art.º 31.º, n.º 1,al. a), da Directiva2004/18/CE].
Ademais, e sublinhe-se, embora enalteçamos os esforços tendentes à boa gestão dos dinheiros públicos, importa sublinhar que tal preocupação deverá harmonizar- -se com o cumprimento da lei aplicável, sob pena de perigarem os esteios que suportam o estado de direito. 

IV. DAS ILEGALIDADES.

Do Visto.

1. Das ilegalidades.

Conforme deixámos dito em III.1. e 2.,cujo teor aqui se dá por reproduzido, a tramitação procedimental revela a violação do disposto no art.º 24.º, n.os1, alínea b) e 8, do Código dos Contratos Públicos, com referência ao art.º 47.º, do mesmo diploma legal.
Na verdade, e na substanciação da inobservância legal citada, a tramitação procedimental seguida permitiu, indevidamente, que se recorresse ao ajuste directo, quando, afinal, o Caderno de Encargos tinha sido substancialmente alterado em relação ao do procedimento [1.º] traduzido em concurso público urgente.
A violação de tal norma induz, sem equívoco, a constatação de que, afinal, nos deparamos com a ausência de concurso enquanto tipo de procedimento, que, no caso, se mostra obrigatório. E a ausência de concurso, nestas circunstâncias, porque implica a falta de um elemento essencial da adjudicação, para além de gerar a respectiva nulidade [vd. art.º 133.º, n.º 1, do C.P.A.], transmissível ao contrato celebrado e ora sob fiscalização prévia [vd. art.º 283.º, n.º 1, do C.C.P.], não observa, ainda e, obviamente, o princípio da concorrência consagrado no art.º 1.º, n.º 4, do Código dos Contratos Públicos.

2. Do Visto.

Segundo o art.º 44.º, n.º 3, da Lei n.º 98/97, de 26.08, constitui fundamento da recusa do Visto a desconformidade dos actos, contratos e demais instrumentos referidos com as leis em vigor e que impliquem:
- Nulidade;
- Encargos sem cabimento em verba orçamental própria ou violação directa de normas financeiras;
- Ilegalidade que altere ou possa alterar o respectivo resultado financeiro.

Não se perfilam encargos sem cabimentação orçamental própria, nem, por outro lado, se vislumbra a violação de alguma norma financeira.
Porém, as ilegalidades acima evidenciadas, para além de gerarem a nulidade da adjudicação e do contrato subsequente, são ainda susceptíveis de alterar o resultado financeiro visado com o procedimento.
Acresce que, segundo jurisprudência firmada neste Tribunal de Contas, a densificação da expressão "Ilegalidade que possa alterar o respectivo resultado financeiro" basta-se com o simples risco de que, da ilegalidade cometida, possa resultar a alteração do correspondente resultado financeiro.

Ocorre, pois, fundamento para a recusa do Visto.  

V. DECISÃO.

Com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, em Subsecção, em recusar o Visto ao presente contrato.
Emolumentos legais [art.º 5.º, n.º 3, do Regime dos Emolumentos do Tribunal de Contas, anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31.05].
Lisboa, 14 de Julho de 2011   

Os Juízes Conselheiros,
(Alberto Fernandes Brás - Relator)
(Helena Maria Abreu Lopes)
(António Manuel dos Santos Soares)

Fui presente,
(Procurador-Geral Adjunto)
(Jorge Leal) 


(1) Vd. art.º 70.º,n.º 1, al.b) e art.º 146.º, al. o), do C.C.P. . 
(2) Vd. art.os 23.º e 24.º, n.º 1, al. b), do C.C.P. 
(3) Vd. art.os 24.º, n.º 1, al. b), n.º 8, e 47.º., n.º 1, al. a), do C.C.P. . 
(4) Vd. Jorge Andrade da Silva, in C.C.P. Comentado.