Acórdão n.º 10/2011, de 10 de Março de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1742/2010)

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ACÓRDÃO Nº 10 /2011 - 10. MAR-1ª S/SS

Processo nº 1742/2010

I - OS FACTOS

1. A Câmara Municipal de Fafe (doravante designada por CMF ou por CM) remeteu, para efeitos de  fiscalização prévia, a documentação do procedimento relativo à empreitada de "Substituição de Redes de Abastecimento de Água  - Concelho de Fafe", adjudicada à empresa "SINOP - António Moreira dos Santos, S.A.", em 26.10.2010, pelo valor de 415.360,81 €, ao qual acresce o correspondente valor em IVA, à taxa legal aplicável.

2. Para além dos factos referidos no número anterior, são dados ainda como assentes e relevantes para a decisão os seguintes que constam do processo:

a) Em 21 de Junho de 2010 (1), a Associação Nacional de Municípios Portugueses, por ofício, alertou a CMF para o regime constante do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, referindo designadamente que o procedimento de concurso público urgente permitia  "uma substancial redução dos prazos envolvidos, desde logo ao nível dos prazos mínimos para apresentação de propostas";
b) Em 23 de Junho de 2010, a CMF recebeu informação de estrutura de gestão de fundos comunitários (2), relativa a operações que podiam beneficiar de taxas de comparticipação de 80% (e não de 70%), em que se dizia  "sobre as condições de admissão e aceitação  [de tais] operações a candidatar até 29 de Outubro de 2010" que, para além das condições regulamentares,  "apenas serão aceites as candidaturas que se encontrem em avançada fase de estabelecimento de vínculo contratual com os respectivos fornecedores". E acrescentava-se que se entendia "como avançada fase de vínculo contratual, no caso de empreitadas, a comunicação da intenção de adjudicar";                                      
c) Em 8 de Setembro de 2010 (3), foi apresentada e despachada de forma concordante uma informação dos serviços da CMF, em que se dá conta da conclusão do projecto de execução da presente empreitada e da necessidade de se elaborar o programa do concurso;
d) Em 24 de Setembro de 2010 (4), foi apresentada e despachada de forma concordante uma informação dos serviços da CMF, em que se dá conta da possibilidade de realização de concurso público urgente para a presente adjudicação, de forma a se poder formalizar candidatura a fundos comunitários até 29 de Outubro de 2010;
e) Em 6 de Outubro de 2010 (5), foi apresentada e despachada de forma concordante uma informação dos serviços da CMF, em que se apresentaram os documentos do procedimento e foi autorizada proposta de realização de concurso público urgente;
f) A adjudicação foi precedida de concurso público urgente, ao abrigo do disposto no artigo 52.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, e dos artigos 155.º e seguintes, do CCP (6);
g) O anúncio de concurso público urgente foi enviado e publicado no D.R. n.º 198, II Série, em 12 de Outubro de 2010;
h) O prazo de execução da obra é de 5 meses;
i) O critério de adjudicação foi o do mais baixo preço;
j) O financiamento comunitário foi aprovado (7);
k) Foi fixado um prazo de apresentação das propostas de  2 dias, a contar do envio do anúncio para publicação, tendo terminado em 14 de Outubro;
l) Quatro concorrentes apresentaram propostas;
m) Em 26 de Outubro de 2010 foi feita a adjudicação;
n) Não foi celebrado contrato escrito;
o) A obra foi consignada em 2 de Dezembro de 2010;
p) Tendo-se questionado a CMF para que justificasse qual o fundamento da urgência para a adopção da modalidade de concurso público urgente, com dispensa de redução do contrato escrito, veio (8) aquela entidade adjudicante informar o seguinte:

 "Por se tratar de uma obra co-financiada, inserida no contrato de Delegação de Competências com Subvenção Global, celebrado com a Autoridade de Gestão do Programa Operacional Regional do Norte 2007-2013 (CCDR-N) e a Associação Nacional de Municípios do Ave, que cedeu a sua posição contratual para a CIM do Ave - Comunidade Intermunicipal e de acordo com o critério de reafectação de verbas por Município, foi apresentada a candidatura à tipologia Ciclo Urbano da Água, designada "Substituição e Ampliação da Rede de Distribuição de Água Norte-03-0354-FEDER-00086."
Tendo em conta que as candidaturas apresentadas até 29/10/2010, beneficiariam de uma taxa de comparticipação de 80%, em detrimento dos 70% contratualizados, se as operações candidatas se encontrassem numa fase avançada de vínculo contratual com os respectivos fornecedores, ou seja, comunicação da intenção de adjudicação (...).Face ao atrás referido e tendo em conta o artigo 52.º do Dec-Lei n.º 72-A/2010, o Município avançou face à urgência, à modalidade de concurso público urgente, de forma a demonstrar a fase avançada do procedimento concursal.
Anexa-se, Decisão de Aprovação da candidatura supra identificada, comunicada pela comissão directiva do ON.2  em 28/12/2010, que comprova o co-financiamento da obra em causa.
Tendo em conta a alínea b) do n.º 2, do artigo 95.º do CCP, foi dispensado pelo órgão competente a redução do contrato a escrito".

II - FUNDAMENTAÇÃO

3. Estabelecia o nº 2 do artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho:

"Pode adoptar-se o procedimento do concurso público urgente, previsto nos artigos 155.º e seguintes do Código dos Contratos Públicos (CCP), na celebração de contratos de empreitada, desde que:
a)Se trate de um projecto co-financiado por fundos comunitários;
b)O valor do contrato seja inferior ao referido na alínea b) do artigo 19.º do CCP; e
c)O critério de adjudicação seja o do mais baixo preço."

4. Como se sabe, nos artigos 155.º e seguintes do CCP, estabelece-se um procedimento de concurso público urgente para, em caso de urgência, se proceder à celebração de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis ou de serviços de uso corrente.
Entendeu o legislador alargar a possibilidade de se recorrer ao mesmo procedimento, para a celebração de contratos de empreitada, durante a vigência do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, desde que se verificassem os pressupostos fixados nas alíneas a) a c) do nº 2 do seu artigo 52º, agora transcrito.
O recurso a esta possibilidade pressupõe, naturalmente, face ao disposto no artigo 155º do CCP, que se esteja em caso de urgência.

5. Tenha-se ainda presente que o artigo 157º do CCP estabelece que o anúncio do concurso público urgente deve seguir modelo a aprovar por portaria e que o programa do concurso e o caderno de encargos devem constar do anúncio.
Relembre-se ainda que o artigo 158º do mesmo código dispõe que o prazo mínimo para apresentação de propostas é de 24 horas.
Estes dois aspectos do regime aplicável ao concurso público urgente, que agora se relevam, permitem sublinhar a prudência com que aquele regime deve ser usado no caso de formação de contratos de empreitadas de obras públicas ou de adjudicação, sem formalização escrita, como sucede no caso sub judicio.
Nestas situações, a integração do programa do concurso e do caderno de encargos no anúncio é uma solução impensável. E a definição do prazo para apresentação de propostas deve ser particularmente acautelada, tendo presente que, no concurso público, o prazo mínimo admitido por lei é o de nove dias para os casos de patente simplicidade dos trabalhos a executar. Isto é: tendo a lei admitido a aplicação deste procedimento à formação de contratos de empreitadas de obras públicas, tal aplicação deve ser feita com as adaptações e a prudência necessárias, com respeito do regime legal e dos princípios fundamentais que o enformam.

6. Analisado o processo, pode concluir-se que os pressupostos fixados nas alíneas a) a c) do nº 2 do citado e transcrito artigo 52º se encontram verificados: trata-se de um projecto co-financiado por fundos comunitários, o seu valor é inferior ao limiar que releva no caso, e o critério de adjudicação foi o do mais baixo preço.

7. Verificados os pressupostos do citado artigo 52º, impõe-se saber se se está perante  um caso de urgência. Para esse efeito, releva o que acima consta da matéria de facto, acima indicada no nº 2: tornava-se urgente proceder à adjudicação da obra,  para se obter um financiamento comunitário, comparticipado em 80% e não em 70%.
As questões do financiamento comunitário surgem assim, no presente processo, invocadas na verificação de dois pressupostos. No da alínea a) do nº 2 do artigo 52º (é um projecto co-financiado por fundos comunitários) e no do artigo 155º do CCP (o risco de se perderem os financiamentos comunitários,  à taxa mais favorável,  tornava o procedimento relativo a esta empreitada um caso de urgência).

8. Foi fixado um prazo de dois dias para apresentação de propostas.
Relembre-se que se trata de um concurso para adjudicação de  uma empreitada cujo valor é aproximadamente de 400 mil euros. Tenha-se em conta que o prazo de execução da obra é de 5 meses.
Não pode deixar de perguntar-se: é aceitável que para a formação de um contrato ou decisão de adjudicação, com estas características, se estabeleça um prazo de dois dias para apresentação de propostas?
Propostas para uma empreitada, que têm de corresponder a um determinado programa, a um projecto de execução, lista de todas as espécies de trabalhos e mapa de quantidades? E refira-se que, no caso, estas lista e mapa apresentam alguma complexidade, com desenvolvida pormenorização dos elementos de execução da obra.
Dir-se-á: a lei admite que o prazo mínimo nos concursos urgentes seja de 24 horas.
É verdade que a lei estabeleceu aquele prazo. Contudo, a lei estabeleceu tal prazo como mínimo. Isto é: aos responsáveis administrativos compete estabelecer o concreto prazo respeitando tal mínimo, mas também as necessárias condições de observância de outras disposições legais e dos princípios básicos da contratação pública. Designadamente, os princípios da igualdade e da concorrência, fixados no nº 4 do artigo 1º do CCP, mas igualmente na Constituição (9).
Parece ser evidente que no caso de empreitadas de obras públicas, é impossível num prazo de dois dias para apresentação de propostas estarem asseguradas condições de igualdade e de leal concorrência entre os potenciais interessados em apresentar propostas.
Mais: parece ser evidente que para uma correcta apresentação de propostas, com o rigor necessário à salvaguarda dos interesses públicos e para que não surjam sobressaltos na fase de execução, aquele prazo é manifestamente insuficiente.
Aliás, da cronologia do procedimento que acima se destacou no nº 2resulta que entre a decisão para abertura do procedimento (6 de Outubro) e a decisão de adjudicação (26 de Outubro), só dois dias foram destinados à publicitação do procedimento e à apresentação de propostas. É desequilibrado! E tal desequilíbrio torna-se manifesto se atendermos a outras datas relativas a trabalhos preparatórios de lançamento da empreitada, que se iniciaram em Junho do mesmo ano.
A fixação de um prazo de dois dias, para apresentação de propostas, neste concreto procedimento, viola pois os princípios da igualdade e da concorrência, fixados no nº 4 do artigo 1º do CCP.
A fixação de prazos tão reduzidos, em casos de empreitadas de obras públicas, põe igualmente em causa o princípio da transparência a que se deve subordinar toda a actividade administrativa, também expressamente consagrado nesta disposição legal.

9. Como acima se registou no nº 2, no presente procedimento não se procedeu à elaboração de contrato escrito. E questionada a CMF sobre o assunto veio referir simplesmente que "[t]endo em conta a alínea b) do n.º 2, do artigo 95.º do CCP, foi dispensado pelo órgão competente a redução do contrato a escrito".
Ora, o artigo 95º do CCP dispensa a redução a escrito de contrato nos casos previstos no seu nº 1. E de entre estes destaque-se o caso consagrado na alínea d): "(...) contrato de empreitada de obras públicas de complexidade muito reduzida e cujo preço contratual não exceda (euro) 15000".
E, no nº 2 do mesmo artigo, na invocada alínea b) dispensa-se a redução a escrito de contratos, na sequência de concurso público urgente, desde que nesse sentido seja tomada decisão fundamentada.
Isto é: quando a situação se integra nas previsões do nº1, pode ser tomada decisão de dispensa, por remissão para a disposição legal permissiva.
Quando se integra nas situações do nº 2, para além  de tal remissão, é necessária a explicitação dos fundamentos da decisão.
Ora, no presente procedimento a entidade adjudicante limitou-se a explicitar a disposição legal em que se baseou, mas ignorou que tal disposição lhe exigia fundamentação da decisão.
Assim, para além de haver violação do nº 2 do artigo 95º e do princípio geral da fundamentação que deve imperar na acção administrativa, a não redução a escrito, sem fundamentação, neste caso também prefigura a violação do já referido princípio da transparência.

10.As violações de lei identificadas ofendem pois  os princípios da concorrência, da transparência e  o  da igualdade de oportunidades dos operadores económicos. Princípios cuja observância permitem também obter as melhores propostas para melhor prossecução dos interesses públicos.
Tal violação,  podendo ter restringido o universo de potenciais interessados e concorrentes,  é igualmente susceptível de ter alterado o resultado financeiro do procedimento. Enquadra-se, pois, tal violação no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da LOPTC (10), quando aí se prevê "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro."
Refira-se, a propósito, que quando se diz  "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração dos resultados financeiros.                                          

III - DECISÃO 

11.Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao acto de adjudicação acima identificado.

12. São devidos emolumentos nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio, e respectivas alterações.

Lisboa, 10 de Março de 2011

Os Juízes Conselheiros, - (João Figueiredo - Relator) - (Alberto Fernandes Brás) -(Helena Abreu Lopes)

Fui presente

(Procurador Geral Adjunto) - (António Cluny)

 


(1) Vide fl. 87 do processo.
(2) Vide email a fls. 18 e 95 do processo.
(3) Vide fls. 11 e ss. do processo.
(4) Vide fls. 14 e ss. e 83 e ss. do processo.
(5) Vide fl. 21 do processo.
(6) Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março e alterado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, pelos Decretos-Lei nºs 223/2008, de 11 de Setembro, 278/2009, de 2 de Outubro, e pela Lei nº 3/2010, de 27 de Abril, e pelo Decreto-Lei nº 131/2010, de 14 de Dezembro.
(7) Vide fl. 114 do processo.
(8) Vide fls. 72 e ss. do processo.
(9) Vide nº 2 do artigo 266º e a alínea f) do artigo 81º da CRP.
(10) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, 35/2007, de 13 de Agosto, e 3-B/2010, de 28 de Abril.