Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15 de Abril de 2010 (proc. 6048/10)

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Sumário:

I - Não enferma da nulidade da al. b) do nº 1 do art. 668º. do C.P. Civil, a sentença que, depois de referir que a fundamentação do relatório preliminar era imposta pelo art. 146º, nº 1, do C.C.P. e que esta, de acordo com os arts. 268º, nº 3, da CRP e 125º, do CPA, deveria ser expressa, traduzindo-se em enunciados claros, sucintos e lógicos, entendeu que não se encontrava nesse relatório qualquer justificação para cada concreta pontuação atribuída a cada um dos factores.
II - Não configura a nulidade prevista na al c) do mesmo art. 668º, nº 1 que pressupõe um vício lógico no raciocínio do julgador , mas um possível erro de julgamento por a sentença não ser conforme com o direito substantivo aplicável, a alegação que perante os factos dados como provados se deveria ter considerado fundamentado o relatório preliminar.
III - O relatório preliminar, onde o júri aplica o critério de adjudicação constante do programa do concurso e propõe a ordenação das propostas, tem de ser fundamentado, de modo a permitir que os concorrentes estejam habilitados a pronunciarem-se sobre ele e a efectuarem as observações que terão de ser ponderadas no relatório final.
IV - Padece de falta de fundamentação, o relatório preliminar onde a pontuação das propostas segundo cada critério ou factor de adjudicação não é acompanhada de qualquer juízo qualitativo, seja em termos de mérito relativo, seja em termos de mérito absoluto.

 

Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª. SECÇÃO, 2º. JUÍZO, DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1. O Município ..............., inconformado com a sentença do TAF de Leiria, que julgou procedente a acção de contencioso pré-contratual contra ele intentada pela "E.......... Empresa ........, SA", dela recorreu para este Tribunal, formulando, na respectiva alegação, as seguintes conclusões:
"1ª. A decisão proferida padece de vícios que a enfermam de nulidade, para além de reflectir flagrante erro de julgamento;
2ª. A sentença é nula quando não especifique os fundamentos de direito que a justificam;
3ª. Da leitura da sentença proferida verifica-se que a parte vencida desconhece, por falta de fundamentação de direito, a razão pela qual a decisão lhe foi desfavorável;
4ª. Ou seja, a sentença em crise não enuncia a fundamentação de direito que faça o enquadramento dos factos que considera provados;
5ª. A decisão proferida é, pois, nula por falta de fundamentação de direito que permita ao recorrente apreender a razão pela qual a decisão lhe é desfavorável;
6ª. Esta nulidade deve ser declarada, o que se requer;
7ª. A sentença proferida enferma também de vício por manifestar uma clara oposição entre os fundamentos de facto e a decisão tomada;
8ª. Este vício fere a decisão de nulidade, de acordo com o disposto no art. 668º., nº 1, al. c), do CPC;
9ª. A fundamentação dos actos administrativos terá que conter todos os elementos factuais e jurídicos que permitam ao seu destinatário a um destinatário normal , e face ao itinerário cogniscitivo e valorativo constante do acto em causa, ficar em condições de saber o motivo porque se decidiu num sentido e não noutro;
10ª. Da análise das actas que contêm as decisões do júri (Relatório Preliminar e acta de 22/5/2009, de resposta às pronúncias dos concorrentes), verifica-se que estas se encontram suficientemente fundamentadas na medida em que permitiram a todos os concorrentes conhecer e entender as razões que levaram à classificação final dos concorrentes;
11ª. A fundamentação constante da Acta de 22/5/2009 foi considerada como facto assente pela sentença proferida;
12ª. Ou seja, o Sr. juiz "a quo", ao considerar provada a factualidade decorrente da Acta de 22/5/2009 e ao ignorar, na decisão que tomou, a fundamentação produzida pelo júri em tal acta, que íntegra o Relatório Preliminar e fundamenta o acto de adjudicação, feriu a sentença proferida de nulidade por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão;
13ª. Deve a invocada nulidade ser declarada, o que se requer;
14ª. Para além dos vícios enunciados, verifica-se que a decisão em crise padece de erro de julgamento, nos termos do disposto no art. 669º., nº 2, al. b), do C.P.C., nomeadamente na qualificação jurídica dos factos;
15ª. O acto impugnado pela recorrida é a deliberação de 1/6/2009, exarada pela respectiva Câmara Municipal, que determinou a adjudicação da empreitada;
16ª. Este acto encontra-se fundamentado nos termos dados como assentes pela decisão ora em crise, ou seja, no teor do Relatório Preliminar, na Acta, datada de 22/5/2009 (e seus anexos), que se pronunciou sobre as peças apresentadas pelos concorrentes em sede de audiência prévia e no teor do Relatório Final;
17ª. Porém, a sentença proferida somente considerou a fundamentação constante do Relatório Preliminar, ignorando as restantes peças;
18ª. Do Relatório Final que sustenta o acto impugnado fazem parte integrante, como no mesmo se refere, o Relatório Preliminar, a Acta de 22/5/2009 e seus anexos;
19ª. Ao contrário do que consta da decisão em crise, a fundamentação do acto camarário não é somente o teor do Relatório Preliminar;
20ª. Pelo que, baseando-se o acto colocado em crise, não no Relatório Preliminar, mas também no Relatório Final, constata-se que mal andou a decisão recorrida que não considerou a fundamentação do acto recorrido, definitivo, mas sim de um acto preparatório (o Relatório Preliminar);
21ª. O acto impugnado pela recorrida está devidamente fundamentado;
22ª. Sem prejuízo das requeridas declarações de nulidade, a sentença em crise deverá ser revogada e substituída por outra que considere o acto de adjudicação proferido pela Câmara Municipal............. em 1/6/2009, devidamente fundamentado, absolvendo o Município R. do pedido; 23ª. Ainda que a decisão proferida não padecesse de nenhum dos vícios anteriormente invocados (sem nunca conceder), sempre se traduziria numa sequência de actos inúteis;
24ª. Não é possível ao recorrente adjudicar o procedimento concursal à recorrida, em virtude da proposta desta prever a existência de uma "torre intermédia" que a recorrida classificou como "indispensável";
25ª. O art. 46º. do Regulamento do PDM da........ proíbe a construção da "torre intermédia", em virtude naquele local ser vedada a realização de qualquer edificação bem como a destruição de solo vivo e do coberto vegetal e o derrube de quaisquer árvores, por ser classificado como "Zona verde de protecção integral";
26ª. Por esse motivo, é possível concluír, com segurança, que do prosseguimento do presente procedimento concursal, após expurgado o vício que a sentença identifica, resultaria necessariamente que o procedimento seria adjudicado ao mesmo concorrente
27ª. Assim sendo, deveria a decisão proferida ter atribuído eficácia não invalidante ao vício decretado, sendo por isso de aplicar o princípio do aproveitamento do acto administrativo, o que, à cautela, também se requer".

A recorrida, "E..........", contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

O digno Magistrado do M.P. emitiu parecer, onde concluíu que o recurso não merecia provimento.

Sem vistos, foi o processo submetido à Conferência para julgamento.

2.1. A matéria de facto pertinente é a que foi considerada provada na sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos do nº. 6 do art. 713º. do C.P. Civil.

2.2. Na acção administrativa de contencioso pré-contratual que intentou no TAF, a ora recorrida pediu a anulação da deliberação, de 1/6/2009, da Câmara Municipal ............, que adjudicara à "L.......... - Tecnologia ............, Lda." a empreitada de "Concepção e Construção de um Transporte Rápido de Passageiros (Teleférico) que ligue a ......... e a P..........".
A sentença recorrida, julgando essa acção procedente, anulou a referida deliberação, bem como o contrato de empreitada que entretanto fora celebrado, com o fundamento que o Relatório Preliminar não se encontrava fundamentado.
A recorrente, no presente recurso jurisdicional, imputa à sentença as nulidades de falta de fundamentação de direito e de contradição entre os fundamentos de facto e a decisão, bem como um erro de julgamento resultante de a deliberação impugnada estar fundamentada e de a falta de fundamentação não ter no caso eficácia invalidante por a adjudicação sempre dever ser conferida ao mesmo concorrente.
Vejamos se lhe assiste razão.
Como é entendimento uniforme da jurisprudência, a nulidade da al. b) do nº 1 do art. 668º. do C.P. Civil só se verifica quando haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão, excluindo-se, deste modo, da sua previsão todos os casos em que a justificação é apenas deficiente ou insuficiente (cfr., entre muitos, os Acs. do STJ de 15/3/74 in BMJ 235º.-152, de 15/11/85 in A.D. 293º.-640 e de 1/3/90 in A.J. 6º.-11 e Acs. do STA de 25/9/97 Rec. nº. 39659 e de 27/5/98 Rec. nº. 37068).
Por sua vez a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 668º. do C.P. Civil (fundamentos em oposição com a decisão) consiste num vício lógico na construção da decisão de modo que os fundamentos invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a resultado oposto ao expresso na sentença (cfr. Acs. do STJ de 21/10/88 in BMJ 380º-444 e de 29/11/89 in A.J. 3º.-20 e Ac. do STA de 18/2/99 Rec. nº. 44290).
No caso em apreço, a sentença recorrida, depois de referir que a fundamentação do relatório preliminar era imposta pelo nº 1 do art. 146º. do CCP e que, de acordo com o arts. 268º., nº 3, da CRP e 125º., do C.P.A., ela deveria ser expressa e acessível a qualquer potencial destinatário, traduzindo-se em enunciados claros, sucintos e lógicos, entendeu que não se encontrava nesse relatório "qualquer justificação para cada concreta pontuação (expressa em percentagem) atribuída a cada factor".
Perante esta fundamentação, onde se indicam claramente os preceitos legais aplicados, afigura-se-nos evidente que a sentença não padece da total omissão dos fundamentos de direito que é exigida para a procedência da nulidade vertida na al. b) do citado art. 668º. nº 1.
Quanto à nulidade prevista na al. c) do mesmo preceito, o recorrente invoca-a com o fundamento que em face dos factos que foram dados por provados nas als. H), S) e T) a sentença deveria ter considerado fundamentado o Relatório Preliminar.
Mas essa situação configura um possível erro de julgamento por a sentença não ser conforme com o direito substantivo aplicável que é questão de mérito e não de nulidade que pressupõe um vício lógico no raciocínio do julgador.
Assim sendo, improcedem as arguidas nulidades.
Quanto ao invocado erro de julgamento, importa começar por referir que não existem quaisquer dúvidas que o relatório preliminar, onde o júri aplica o critério de adjudicação constante do programa do concurso e propõe a ordenação das propostas, tem de ser fundamentado (cfr. nº 1 do art. 146º. do Código dos Contratos Públicos aprovado pelo D.L. nº. 18/2008, de 29/1), de modo a permitir que os concorrentes estejam habilitados a pronunciar-se sobre ele (cfr. art. 147º. do mesmo diploma) e a efectuar as observações que considerem pertinentes para serem ponderadas no relatório final (cfr. art. 148º., nº 1).
No caso em apreço, o relatório preliminar, depois de referir que a apreciação das propostas seria feita com base em determinados sub-critérios ("Preço do Contrato de empreitada para concepção e execução do teleférico", valorado com 40%, "Qualidade da solução técnica e da solução urbanística da proposta", valorado com 20%; "Qualidade e características técnicas do equipamento (teleférico)", valorado em 20%; "Plano de manutenção do equipamento de teleférico e o prazo de garantia", valorado em 10% e "Prazos inferiores aos máximos estipulados, designadamente os de concepção, aprovação e execução da empreitada", valorado em 10%) passou a classificá-las, estabelecendo para cada uma delas a pontuação que era dada a cada um dos referidos sub-critérios.
Porém, essa pontuação aritmética não é acompanhada de qualquer juízo qualitativo das propostas, seja em termos de mérito relativo seja em termos de mérito absoluto, o que impossibilita os concorrentes de saberem os motivos que levaram à atribuição de uma e não de outra pontuação.
Ora, "a pontuação das propostas, segundo cada critério ou factor de adjudicação, tem de ser fundamentada, tem de assentar nos juizos concretos de maior ou menor valor que sobre elas se fazem nesse relatório em função de cada um desses critérios ou factores. Não se trata, note-se, de uma formalidade técnica ou metodológica da discriocionaridade do júri, mas de uma garantia dos particulares (e da própria entidade adjudicante), para poderem saber que às apreciações (des) favoráveis, ou seja, que a pontuação e a classificação ou ordenação das propostas (ou concorrentes) é coerente, congruente e lógica. Sob pena de invalidade do acto de adjudicação que assenta em tais apreciações" (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in "Concursos e outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa", 1998, pág. 506).
Assim, não existindo no relatório preliminar a alusão a quaisquer elementos tidos em conta para a pontuação atribuída, tem de se entender que ele padece de falta de fundamentação (cfr. nos 1 e 2 do art. 125º. do CPA).
Alega o recorrente que a deliberação impugnada não se baseou apenas no relatório preliminar, mas também na Acta de 22/5/2009 e seus anexos e no teor do relatório final, pelo que, por referência a estes elementos, ela se deve considerar fundamentada.
Porém, admitindo que a falta de fundamentação do relatório preliminar pudesse vir a ser posteriormente suprida, tal só se poderia considerar verificado se a aludida acta e seus anexos ou o relatório final contivessem os elementos que foram julgados em falta para a fundamentação daquele.
Ora, isso não sucede no caso em apreço, visto não resultar da referida acta (e seus anexos), nem do relatório final, os motivos que levaram à atribuição de uma determinada pontuação a cada um dos sub-critérios.
Quanto à aplicação do princípio da conservação ou do aproveitamento do acto administrativo, deve referir-se que ela só se pode colocar em relação a actos praticados no exercício de poderes vinculados e quando o juiz disponha de elementos que lhe permitam concluír, sem margem para qualquer dúvida, que o acto em causa não podia ter outro conteúdo decisório (cfr. Ac. do STA de 25/2/99 Rec. nº. 41848).
No caso em apreço, e considerando a matéria fáctica provada, este Tribunal não pode concluír, sem margem para dúvidas, que a empreitada em causa não poderia deixar de ser adjudicada à "L........", pois, além de se estar perante um acto que não é inteiramente vinculado, do facto de a adjudicação não poder ser efectuada à recorrida não se pode inferir que ela tivesse ser efectuada à recorrente, atento a que existiam mais concorrentes e que também se poderia verificar uma causa de não adjudicação (cfr. art. 79º do C.C.P.).
Portanto, improcedem todas as conclusões da alegação do recorrente, devendo, em consequência, negar-se provimento ao recurso.

3. Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 15 de Abril de 2010
as. ) José Francisco Fonseca da Paz (Relator)
Rui Fernando Belfo Pereira
António de Almeida Coelho da Cunha