Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 12 de Maio de 2011 (proc. 7382/11)

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Sumário:

1. Na medida do critério de adjudicação escolhido pela entidade adjudicante e desde que não se apresentem espaços próprios de discricionariedade administrativa ou de margem de livre apreciação sobre as qualidades da proposta, é admissível, em via de cumulação de pedidos de anulação do acto ambivalente (positivo) e de condenação na sua substituição por outro a favor da parte peticionante, condenar a entidade administrativa no acto de adjudicação devido - cfr. artºs. 4º nº 1 e 2 c) e 47º nº 2 a), 66º e 67º CPTA.
2. No critério de adjudicação do mais baixo preço (artº 74º nº 1 b) CCP) o conteúdo dos aspectos de execução submetidos à concorrência (atributos - artº 56º nº 2) mostra-se reduzido à sua expressão mínima, sendo total a definição dos restantes aspectos não submetidos à concorrência (parâmetros - artº 42º nºs. 3/4/5), pelo que o único aspecto submetido à concorrência para efeitos de avaliação é o preço contratual (artº 97º nº 1) proposto pelos concorrentes.
3. A discriminação dos preços unitários em algarismos e não também por extenso, não permite a exclusão da proposta ao abrigo do artº 70º nº 2 c) CCP caso a omissão do texto por extenso não se traduza na equivocidade ou falta de clareza da proposta, impossibilitando a sua avaliação para efeitos de aplicação do critério de adjudicação, no caso, do mais baixo preço.
4. No procedimento de concurso público cujo critério de adjudicação é o do mais baixo preço (artº 74º nº 1 b) CCP), verificado que o preço contratual da proposta ilegalmente excluída é inferior ao constante da proposta escolhida e não se mostra ultrapassado o limite fixado pela entidade adjudicante, a anulação do acto de exclusão evidencia a ilegalidade do acto de adjudicação por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, atenta a desconformidade com o critério do mais baixo preço (artº 74º nº 2 CCP), sendo passível de anulação.
5. As situações de exclusão previstas no artº 70º nº 2 CCP dizem essencialmente respeito ao conteúdo da proposta e não a razões formais.

 

Texto Integral:

A................., SA, com os sinais nos autos, inconformada com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. A análise da sentença recorrida deve ter presente o interesse público, enquadrado nesta crise orçamental e económico-financeira que nos atormenta e atormentará no futuro, e que muito se deve a atitudes como as em causa nos presentes autos.
2. Como muito bem decidiu o TCA do Sul a 29-04-2010, é do interesse público ter o maior número de concorrentes para conseguir o melhor resultado final possível o que, face aos condicionalismos económico-financeiros vividos actualmente, passa por conseguir propostas com igual ou equivalente qualidade aos preços mais baixos.
3. Ora, a Câmara de ......... esqueceu-se destes desideratos no concurso em apreço, fazendo uma aplicação cega e restrita das peças procedimentais, sem curar de atender aos princípios da contratação pública e à prevalência do interesse público sobre certas formalidades que, no caso concreto e em face desses princípios, não podem ser consideradas essenciais e, como tal, jamais poderão resultar na exclusão dos concorrentes...
4. Sem beliscar a natureza jurídica do Programa do Procedimento (PP) e do Caderno de Encargos (CE), o que está em causa nos autos e foi questionado pela Autora (aqui recorrente) é o valor "absoluto" da formalidade determinada no clausulado 12º e 15º do PP (preços unitários expressos por extenso).
5. Neste particular e, salvo devido respeito, a interpretação do Tribunal a quo deixa muito a desejar, desde logo em termos de princípios da contratação pública: não é por se ter estipulado uma regra nos tais regulamentos concursais, que ela consubstancia uma formalidade essencial: é necessário aquilatar, face à situação de facto ocorrida, se ela era em concreto essencial ou não essencial...
6. E nesse esforço interpretativo, as primeiras "regras" a ter bem presentes são as advindas dos princípios da contratação pública, desde logo os princípios comunitários, que têm como pano de fundo o interesse na maior concorrência possível.
7. Daí que estes princípios sejam um corredor fundamental para a livre e sã concorrência que se pretende (como resultado) e que é instrumento da melhor decisão "pública".
8. Desta forma, importar realçar que a concorrência entre as empresas, em sede de contratação pública, é um resultado que se visa alcançar, a par de outros (como a melhor gestão dos dinheiros públicos), e não a base ou fundamento do regime jurídico.
9. Assim, é por demais evidente que, em sede de contratação pública, o fim visado passa, desde logo, por admitir o maior número de concorrentes, para conseguir o melhor resultado final possível, o que, face aos condicionalismos económico-financeiros vividos actualmente, implica conseguir o maior número de concorrentes e de propostas com igual ou equivalente qualidade aos preços mais baixos, como se refere no ac. do TCA do Sul de 29-4-2010.
10. Por conseguinte, a "interpretação" das regras regulamentares do concurso e a sua aplicação devem ter em devida nota estes princípios, designadamente o princípio da concorrência e da melhor prossecução do interesse público.
11. Ao interpretar as normas das cláusulas 12a e 15a, nº 2 alínea g) do Programa de Procedimento como "absolutas" e as suas formalidades como "essenciais", no caso em apreço e na análise da Proposta da aqui recorrente, tendo presente que o critério de adjudicação definido é o identificado na alínea b) do nº 1 do artigo 74º do CCP (mais baixo preço, conforme cláusula 18a do PP), o Exmo. Sr. Juiz a quo fez "letra morta" destes princípios, pois jamais poderia ter concluído, tout court, que daquelas estipulações decorre a imprescindibilidade da indicação por extenso de todos os preços (cfr. página 9 da sentença).
12. Na verdade, atendendo ao interesse em ter o maior número possível de concorrentes, aquela imprescindibilidade só decorre se houver disparidade de preços na proposta em avaliação, caso em que actuará a regra regulamentar de que os preços por extenso prevalecem sobre os indicados em algarismos.
13. Não havendo discrepâncias entre os preços indicados - a aqui recorrente indicou todos os preços unitários (em algarismos), para além de ter indicado o preço por lotes e o preço global por extenso e por algarismos, sem qualquer divergência - a regra não pode ser entendida como "formalidade essencial", isto é, como imprescindível, pois todos os atributos da proposta estão lá, permitindo ao Júri avaliar e comparar as propostas para, de entre elas, decidir a adjudicação.
14. Assim, a sentença recorrida sufraga um entendimento que viola claramente o princípio da concorrência, em detrimento inclusive do interesse público, pois exclui a melhor proposta por uma mera formalidade não essencial e confirmou uma adjudicação pelo valor global de 14.096,84 € quando a proposta da aqui recorrente era de 11.755,88 €..
15. Na verdade, a Proposta da recorrente continha todos os atributos, pelo que era susceptível de avaliação e de comparação com as demais, pelo que carece de fundamento a sua exclusão ao abrigo do art. 70º, nº 2 alínea c) do CCP.
16. Na verdade, não apresentar os preços unitários indicados por extenso (mas apenas em algarismos) é diferente de não apresentar tout court os preços unitários ou haver contradições entre os preços apresentados (unitários, parciais e preço global), estes sim erros impossibilitadores de avaliação e comparação da proposta.
17. O que se analisa nos presentes autos, é simplesmente o (in)cumprimento de uma mera formalidade que passava por não só apresentar o preço em algarismos (o que a aqui recorrente faz na sua Proposta quanto aos preços unitários), mas também "traduzi-los" por extenso (o que a aqui recorrente fez para os preços por lotes e preço global da proposta)...
18. Daqui resulta que a razão da exclusão da Proposta da aqui recorrente é, ao invés do que decidiu o tribunal a quo (cfr. página 11 da sentença), não a omissão ou erro de qualquer atributo da proposta, mas sim o incumprimento daquela formalidade, preços unitários (e apenas estes) também por extenso.
19. Ora, como se pode constatar na fundamentação jurídica, e tendo em conta o vertido no PP e CE e sobretudo na Proposta da concorrente (que apresenta todos os preços: os unitários em algarismos e os parciais e global em algarismos e também por extenso), não se vislumbra como a entidade adjudicante fica impedida ou impossibilitada de avaliar e comparar a Proposta da concorrente com as demais propostas.
20. Não se vislumbra e a sentença recorrida não explica, nem demonstra.
21. Efectivamente, a Proposta da Concorrente está devidamente instruída, contendo todos os elementos solicitados e, sobretudo, tendo a indicação de todos os preços, unitários, parciais e totais, sem que entre eles haja qualquer divergência, pelo que o Júri conhece todos os atributos da Proposta, inclusive os respectivos preços unitários.
22. Assim, o Júri não só podia, como devia, ter comparado todas as propostas "em jogo", não se compreendendo o entendimento do Tribunal a quo: é verdade que para a entidade adjudicante a mera indicação de preços unitários por algarismos era insuficiente no caso de haver divergências entre preços, tendo estipulado, precisamente, a regra de prevalência dos preços indicados por extenso, mas na Proposta da aqui recorrente, Areal Editores SA, não há qualquer divergência entre os preços.
23. Os preços unitários apresentados, todos somados e tendo em conta a quantidade de cada produto solicitada, condiz com o respectivo "preço parcial" ou do "lote", que por sua vez, todos somados, dão, sem erro, o preço global da proposta, o que significa que, no caso concreto, não havendo divergência, os preços unitários por extenso tornam-se dispensáveis, ou se se quiser, não essenciais.
24. É que conhecendo-se todos os preços, unitários, parciais (ou por lotes) e global, sem que haja qualquer divergência, o Júri conhece os atributos da proposta, podendo compará-la com as demais e decidi-la nos termos do critério de adjudicação definido, mesmo que alguma formalidade (não essencial) tenha sido omitida.
25. Na verdade, a forma como a concorrente apresentou a Proposta, designadamente os respectivos atributos, não tange minimamente com a possibilidade da sua avaliação e comparação com as demais.
26. Assim, ao invés do confirmado na sentença recorrida (ver páginas 10 e 11), não podia a Proposta da Areal Editores ser excluída, no caso sub judice, com base na alínea c) do número 2 do artigo 70º do CCP, o que consubstancia, portanto, errónea fundamentação jurídica (mesmo erro que inquina o acto de adjudicação impugnado).
27. Forçoso é, pois, concluir que a forma de apresentação dos atributos da Proposta da A.......... (preços unitários por algarismos, preços por lotes e global por algarismos e por extenso, sem que haja qualquer divergência) permitia ao Júri conhecer todos os preços, constatar a sua conformidade com os preços por lotes e com o preço global e, portanto, face à inexistência de nenhuma divergência, avaliar a Proposta em causa e compará-la com as demais, decidindo nos termos do critério de adjudicação definido.
28. Ao não decidir desta forma, o Exmo. Sr. Juiz a quo errou, acrescentando, ainda, uma omissão grave, pois não se vislumbra qualquer explicação para o entendimento da "impossibilidade de avaliação" da Proposta e da sua "comparação" com as demais...
29. Não se explica, logo, não se percebe, como é que, tendo todos os preços indicados, sem que haja qualquer divergência, se considera que é impossível avaliar a proposta em causa e compará-la com as demais.
30. Assim, o suporte legal da exclusão da Proposta é manifestamente infundado, o que inquina a sentença (e o acto de adjudicação): a alínea c) do nº 2 do artigo 70º, para a qual se remete por força da alínea o) do art. 146º do CCP, não tem qualquer aplicação ao caso em apreço.
31. Há, portanto, uma errada fundamentação jurídica e uma omissão que inquinam toda a sentença, ferindo-a de nulidade, nos termos do artigo 668º, nº 1 alínea b) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA.
32. Por outro lado, a sentença recorrida manifesta igualmente uma contradição entre a fundamentação e a conclusão, quando afirma (cfr. página 10) que "sendo a designação por extenso a que prevaleceria em caso de divergência (cláusula 12°, nº 1 PP)" para justificar a essencialidade desta formalidade.
33. Da própria frase resulta que ela só é essencial "em caso de divergência", pelo que não havendo discrepância entre os preços apresentados, aquela regra não pode ser considerada essencial, ainda para mais quando este entendimento implicaria admitir mais concorrentes e, sobretudo, adjudicar a preços mais económicos...
34. Desta forma, repete-se, sendo o único atributo o preço, nos termos da cláusula 8.° do PP, e tendo a concorrente apresentado todos os preços unitários por algarismo, os preços por lotes em algarismo e por extenso e o preço global também em algarismo e por extenso, sem qualquer divergência, teremos forçosamente de concluir que aquela formalidade exigida no PP não pode ser considerada essencial quanto aos atributos da proposta da Areal Editores, que estão todos "lá", correcta e completamente identificados e coerentes entre si, ao ponto de possibilitar, sem mais, a sua avaliação e comparação com as demais propostas.
35. Na verdade, não havendo qualquer divergência nos preços da proposta, não tem que actuar a regra da prevalência dos preços por extenso, pelo que torna-se dispensável a sua identificação por extenso.
36. E no caso sub judice, este entendimento da "formalidade não essencial" até defendia melhor o interesse público, pois admitindo mais concorrentes, tinha a possibilidade de adjudicar mais barato, o que não pode ser despiciendo sobretudo em períodos como o que se atravessa, de necessidade de enorme contenção de despesa pública, maior racionalização dos gastos públicos e de controlo do déficit público.
37. De facto, a "omissão" em causa não tem qualquer relevância, pois os preços da Proposta da Areal Editores estão todos correctamente indicados e identificados, sem discrepâncias, pelo que o Júri sabia e conhecia perfeitamente todos os preços, atributo da Proposta em causa, pelo que forçoso é concluir, ao invés do alegado no Relatório Final e decidido na sentença recorrida, que a Proposta da A............. deveria ter sido admitida e, portanto, ser objecto da análise material consequente.
38. O que, para além do mais, era benéfico em termos do interesse público, pois é quase quatro mil euros inferior à Proposta adjudicada, ou seja, um terço inferior à Proposta adjudicada.
39. Ao contrário do decidido no Tribunal a quo, a formalidade é ou não essencial não por estar ínsita nas peças procedimentais: este facto torna-a "apenas" uma regra; esta é que pode ser considerada essencial ou não essencial, o que implica a sua análise no caso concreto e aqui, como se demonstrou, ela aparece claramente como não essencial.
40. Neste sentido se tem pronunciado a Jurisprudência portuguesa e também o Tribunal de Contas, que, sobre a distinção entre as formalidades essenciais e as formalidades não essenciais, explica, no Acórdão nº 1/2010 (Recurso extraordinário nº 2/09 de uniformização de jurisprudência), emitido já na vigência do CCP, que a preterição de uma formalidade na apresentação das propostas não deve determinar a respectiva exclusão, mas apenas um convite para aperfeiçoamento, quando estejam respeitados os princípios da contratação pública.
41. E era isso que devia ter acontecido, pois, ao invés do decidido pelo TAF de Sintra, ao Júri do concurso impunha-se, caso considerasse importante ter os preços por extenso, convidar a concorrente a aperfeiçoar a sua Proposta, para manter o máximo de concorrentes.
42. De facto, atendendo a que os preços unitários constavam já da Proposta (em algarismos), o aperfeiçoamento consistia, apenas, na sua tradução por extenso, o que não punha em causa a imutabilidade da Proposta.
43. E, note-se, que, nesta fase concursal em que ocorreria o convite, não podia colocar-se a eventualidade levantada pelo Juiz a quo, de divergência entre os preços, pois o convite ao aperfeiçoamento teria como efeito apenas a tradução para extenso dos preços apresentados em algarismos, os quais teriam de estar de acordo com os preços parciais, apresentado por lotes, e com o preço global.
44. E é aqui que o Exmo. Sr. Juiz a quo comete um erro de raciocínio, esquecendo-se que a proposta em análise contém já preços por extenso: precisamente os preços parciais e o preço global, pelo que o aperfeiçoamento terá de ter como âmbito e limite apenas os preços unitários em consonância com aqueles, sendo que em caso de divergência entre os preços por extenso colocados a posteriori, teria obviamente de valer as regras do concurso, designadamente o princípio da imutabilidade da proposta, e as regras de interpretação das propostas como declarações negociais, o que, atendendo a todos os circunstancialismos, implicaria seguramente a prevalência dos preços (por extenso) definidos por lote e do preço global, determinados originariamente, em detrimento do "aperfeiçoamento": aliás, nos termos legais, se o aperfeiçoamento implicasse uma "alteração do preço", este não deveria ser considerado, prevalecendo a "proposta original".
45. Na verdade, a regra da prevalência dos preços por extenso está prevista para as divergências originais e não para as eventualmente subsequentes, pelo que o convite ao aperfeiçoamento não poderia nunca ter como efeito a "alteração da proposta", sob pena de ter de considerar-se apenas a "proposta original".
46. Também aqui a Jurisprudência tem entendido, baseada na tal teoria das formalidades não essenciais, que em casos como este deve manter-se o concorrente, convidando-o a aperfeiçoar a sua proposta, relevando precisamente o princípio da prossecução do interesse público, como pode constatar-se no decidido doutamente no Ac. do TCA-Sul de 29-4-2010, a propósito de uma outra irregularidade (in casu, não assinatura da Proposta).
47. Neste sentido, andou mal a sentença recorrida ao considerar que tal convite corresponderia à violação das regras do concurso e consubstanciaria (pelo menos potencialmente) uma alteração da proposta.
Nestes termos, bem como em todos os demais que não deixarão de ser superiormente supridos no presente Recurso, deve este ser considerado procedente, por provado, e em consonância ser proferido Acórdão:
- considerando procedentes os vícios alegados e, portanto, a exclusão da Proposta do Concorrente n.° 1 como ilegal e desprovida de qualquer fundamento;
- revogando a douta sentença recorrida e anulando o acto de adjudicação, Despacho da Sra. Vereadora da Câmara de ............, de 31 de Agosto de 2010, e actos subsequentes;
- e determinando a (re)admissão da Proposta do Concorrente nº 1, A............ ........, SA, com a consequente adjudicação, no valor global de € 11.755,88 (acrescido de IVA), pois é mais baixo que o da Proposta (ilegalmente) adjudicada, da empresa "M........, Lda", que apresentou uma Proposta de € 14.096,84 (acrescido de IVA).

Os Recorridos Município de .......... e Contra-interessadas não apresentaram contra-alegações.

Com dispensa de vistos substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência - art°s. 36° n° 2 CPTA e 707° n° 2 CPC, ex vi art° 140° CPTA.


Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. Por despacho do Presidente da Câmara Municipal de ......., datado de 16.04.2010, foi autorizado o procedimento para a aquisição de material didáctico para os Jardins de Infância da rede pública do Concelho de ......... - cfr. Processo administrativo apenso;
B. O concurso público regeu-se pelo Programa do Procedimento e Caderno de Encargos, ambos materializados no processo administrativo, cujos conteúdos aqui se dão por integralmente reproduzidos;
C. Do Programa do Procedimento consta designadamente, o seguinte:
"Cláusula 8a - A proposta é constituída pelos seguintes documentos:
(...)
b) Declaração contendo os atributos da proposta, de acordo com os quais o concorrente se dispõe a contratar, elaborada em conformidade com o modelo constante do Anexo II ao presente Programa do Procedimento.
(...)
Cláusula 12° - Indicação do Preço
1- Os preços constantes das propostas são indicados em algarismos e também por extenso, não incluindo o IVA, sendo que, em caso de divergência, os indicados por extenso prevalecem, para todos os efeitos, sobre os indicados em algarismos.
2- Sempre que nas propostas sejam indicados vários preços, em caso de qualquer divergência entre eles, prevalecem sempre, para todos os efeitos, os preços parciais, unitários ou não, mais decompostos.
(...)
Análise das propostas e adjudicação
Clausula 15° (Análise das propostas)
1 - As propostas são analisadas em todos os seus atributos representados pelos factores e subfactores que densificam o critério de adjudicação.
2 - São excluídas as propostas cuja análise revele:
(...)
g) Que os preços referidos na cláusula 12° do presente programa de procedimentos não sejam indicados em algarismos e também por extenso:
(...)
Cláusula 18° Critério de Adjudicação
1 - A adjudicação é feita segundo o critério unicamente do mais baixo preço.
2 - (...)
D. Do Anexo II do Caderno de Encargos consta o modelo de declaração a que se refere a alínea b) a Cláusula 8° do PP, diz-se que o concorrente deve indicar os preços unitários em numerário e por extenso - cfr. Processo administrativo apenso;
E. Apresentaram-se a concurso 3 (três concorrentes)
- n° l - A ............., Lda;
- n° 2 - M ............ Lda;
- n° 3 - C. M............. - cfr. processo administrativo apenso;
F. Em 22 de Julho de 2010 o Júri do Concurso elaborou o Relatório Preliminar onde em relação à ora Autora, "Este concorrente não apresenta os preços unitários por extenso, de acordo com a alínea g) da cláusula 15ª do Cap. VI do Caderno de Encargos, sendo que a cláusula 8a do Caderno de Encargos refere quais os documentos que devem constar das propostas de acordo com a alínea b) indicando que deve ser entregue declaração com os atributos da proposta, elaborada em conformidade com o modelo II constante do Programa do Procedimento. Assim, de acordo com a alínea o) do art. 146° do CCP fica excluída esta proposta atendendo a que não se encontra em observância com o constante na alínea c) do nº 2 do art. 70° do CCP. " - cfr. processo administrativo apenso;
G. No mesmo Relatório o Júri propõe a adjudicação ao concorrente M............., único sobrante após exclusão do outro concorrente - cfr. Processo administrativo apenso;
H. O Relatório precedente foi disponibilizado aos concorrentes na plataforma Vortal para audiência prévia - cfr. processo administrativo apenso;
I. A Autora pronunciou-se nos termos constantes do processo administrativo apenso;
J. O Júri do Concurso reuniu para elaborar o Relatório Final, analisando as intervenções em sede de audiência prévia e propondo a adjudicação da prestação de serviço à M............, que consta de fls. 334 a 337 do processo administrativo apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, destacando-se o seguinte:
"//- Análise da reclamação apresentada: O concorrente vem reclamar da exclusão da sua proposta, por falta de indicação por extenso dos preços unitários, alegando que se trata uma mera e irrelevante irregularidade, devendo como tal, a proposta ser admitida e em consequência objecto de análise. (...) Afere-se assim da natureza regulamentar conferida ao Programa de Concurso e Caderno de Encargos, o carácter vinculativo das cláusulas aí vertidas. A entidade adjudicante e os concorrentes estão vinculados à regulamentação estabelecida, cuja consequência última, resulta, na exclusão da proposta, por violação das normas reguladoras do concurso. Desta forma, os requisitos formais da apresentação das propostas fixados no Programa de Concurso, por referência ao Princípio da Legalidade Administrativa, na sua vertente da legalidade do procedimento, tornam-se elementos essenciais da apresentação da proposta.
A falta ou omissão de algum requisito, determina in casu, a impossibilidade da análise da proposta. O júri do concurso, ao admitir o concorrente, e assim revogar a sua decisão proferira em sede de Relatório Preliminar estaria ele próprio, a violar o Programa de Concurso, violando, assim, o dever de legalidade e da imparcialidade da administração, subvertendo o princípio da livre concorrência. O concorrente sabia, antemão, dos requisitos para contratar. Sabia a que regras e formalismos legais, a apresentação da sua proposta estava sujeita. Durante o decurso do período legal, para a apresentação de esclarecimentos ou posteriormente da apresentação da lista de erros e omissões, o concorrente não se socorreu desses instrumentos legais, não lhe merecendo o Programa de Concurso e o Caderno de Encargos, qualquer reparo. Ora, sendo o preço um atributo da proposta, a não apresentação do mesmo, nos termos em que era solicitado no Programa de Concurso, determina uma impossibilidade de análise. O que, nos termos da alínea c) do n° 2 do art. 70°, conjugado com a alínea o) do artigo 146° ambos do Código dos Contratos Públicos, determina a exclusão da proposta.".
K. Por despacho de 31.08.2010 da Vereadora da CM de ......... foi decidido adjudicar como proposto no Relatório precedente - cfr. processo administrativo apenso;

Nos termos do artº 712º nº 1 b) CPC ex vi artº 140º CPTA, adita-se ao probatório a matéria de facto que segue, julgada provada com fundamento nos documentos especificados e constantes do processo administrativo apenso:

L. O preço base fixado no caderno de encargos é de 16.749,83 €. - PA em CD apenso.
M. A proposta do concorrente Areal Editores, Lda. apresenta os preços unitários por algarismos, os preços parciais, relativos aos lotes, em algarismos e por extenso e o preço final relativo ao valor global da proposta, em algarismos e por extenso. - PA em CD apenso.
N. A preços sem IVA, o valor global da proposta adjudicada é de 14.096, 84 € e o da proposta do concorrente Areal Editores, Lda. é de 11.755,88 €. - PA em CD apenso.


DO DIREITO

Nos procedimentos adjudicatórios como é o caso do concurso público, a perspectiva dominante da Administração centra-se, além da escolha do co-contratante, na determinação da melhor oferta que preencha a necessidade pública específica configurada no objecto do contrato, materializado no projecto contratual que a Administração submete à concorrência e substancia no caderno de encargos.
De acordo com o Relatório Final do Júri que fundamenta o despacho de 31.08.2010 da Vereadora da CM de ......... - vd. itens J e K do probatório -, a reclamação apresentada pela ora Recorrente em sede de audiência prévia na sequência do Relatório Preliminar (artº. 147º CCP) teve, em síntese, a seguinte motivação:
"(..) sendo o preço um atributo da proposta, a não apresentação do mesmo, nos termos em que era solicitado no Programa de Concurso, determina uma impossibilidade de análise. O que, nos termos da alínea c) do n° 2 do art. 70°, conjugado com a alínea o) do artigo 146° ambos do Código dos Contratos Públicos, determina a exclusão da proposta.". (..)".

1. critério de adjudicação do mais baixo preço;

O critério de adjudicação do presente concurso público é o do mais baixo preço (artº 74º nº 1 b) CCP) o que significa que nestas circunstâncias a Administração deve apresentar um caderno de encargos que "(..) defina todos os restantes aspectos da execução do contrato a celebrar, submetendo apenas à concorrência o preço a pagar pela entidade adjudicante pela execução de todas as prestações que constituem o objecto daquele." - artº 74º nº 2 CCP.
E, do outro lado da relação jurídica procedimental, significa que os concorrentes não carecem de desenvolver nenhuma actividade concretizadora de aspectos essenciais do caderno de encargos, na exacta medida em que são chamados simplesmente a aderir ao projecto contratual que o respectivo clausulado configura, com a única excepção do factor preço a pagar pela entidade adjudicante na aquisição do material didáctico para os Jardins de Infância da Rede Pública do Concelho de ..........
O mesmo é dizer que tanto o conteúdo dos aspectos de execução submetidos à concorrência - os atributos, artº 56º nº 2 CCP - se mostra reduzido à sua expressão mínima, como é total a definição dos restantes aspectos não submetidos à concorrência - os parâmetros base, artº 42º nºs. 3, 4 e 5 CCP -, dado que o único aspecto submetido à concorrência e, nessa medida, aberto à apresentação de propostas por parte dos concorrentes, é o preço. (1)
De modo que, dos três conceitos de preço que o CCP apresenta - valor do contrato, artº 17º, preço base, artº 47º e preço contratual, artº 97º - nos procedimentos em que o critério de adjudicação é o do mais baixo preço apenas importa o preço contratual, artº 97º nº 1 CCP, "o preço a pagar pela entidade adjudicante, em resultado da proposta adjudicada, pela execução de todas as prestações que constituem o objecto do contrato", que não pode ultrapassar o limite fixado pela entidade adjudicante - no caso, o preço base de 16.749,83 €, artº 47º nº 1 a) CCP - porque, acima deste, o preço contratual proposto será factor de exclusão da proposta, artº 70º nº 1 d) CCP, e se o preço proposto for inferior ao preço base em 50% ou mais, configurar-se-á uma apresentação de preço anormalmente baixo, artº 71º nº 1 b) CCP.
Todavia, nenhuma destas hipóteses se aplica ao preço contratual proposto pela ora Recorrente, de 11.755,88 €.

À economia do presente recurso importa atender ao elenco de requisitos da indicação do preço, único aspecto da execução submetido à concorrência, e que são os seguintes:
a. de acordo com o Anexo II do Caderno de Encargos e modelo de declaração de atributos das propostas a seguir pelos concorrentes conforme cls. 8ª al. b) do Programa do concurso, os preços unitários devem ser indicados em numerário e por extenso.
b. a cls.12º nºs 1 e 2 do Programa do concurso, decalcada do artº 60º nºs. 1, 2 e 3 CCP, determina a prevalência da indicação por extenso sobre a indicação em numeração árabe, como segue:
1. Os preços constantes das propostas são indicados em algarismos e também por extenso, não incluindo o IVA, sendo que, em caso de divergência, os indicados por extenso prevalecem, para todos os efeitos, sobre os indicados em algarismos.
2. Sempre que nas propostas sejam indicados vários preços, em caso de qualquer divergência entre eles, prevalecem sempre, para todos os efeitos, os preços parciais, unitários ou não, mais decompostos.
c. a cls. 15º nº 2 g) do Programa do concurso determina como causa de exclusão a apresentação de proposta cujos "preços referidos na cláusula 12ª do presente programa de procedimentos não sejam indicados em algarismos e também por extenso".


2. princípio da comparabilidade das propostas;

Face às razões do despacho de 31.08.2010 da Vereadora da CM de ........ - vd. itens J e K do probatório - por reporte ao Relatório Final do Júri a exclusão da proposta da ora Recorrente fundamenta-se no regime do artº 70º nº 2 c) CCP ["2 - São excluídas as propostas cuja análise revele: c) A impossibilidade de avaliação das mesmas em virtude da forma de apresentação de algum dos respectivos atributos"], pelo que importa analisar da bondade da imputada violação do princípio da comparabilidade das propostas, atendendo às circunstância de facto concretas que evidenciam o modo como a ora Recorrente apresentou os vários preços, a saber, os unitários, os referentes aos lotes e o preço final.

Como referido, a razão expressa de exclusão da proposta da ora Recorrente fundou-se na impossibilidade de proceder à sua avaliação devido à forma de indicação do preço, o que impõe saber se, pela não observância da indicação por extenso dos preços de cada um dos produtos apresentados na respectiva proposta (preços unitários), foi posta em crise, no caso concreto, a concorrência do mercado administrativo nos exactos termos em que essa mesma concorrência foi suscitada pela Administração no projecto contratual posto a concurso.
Em suma, cumpre saber se a falta de discriminação dos preços unitários por extenso bole com o princípio da concorrência, na vertente da comparabilidade das propostas porque, como é doutrina assente, "(..) sem possibilidade de confronto entre as candidaturas ou entre as propostas (entre si e com o processo patenteado), isto é, sem possibilidade de fazer funcionar a concorrência nos termos em que esta foi suscitada fica prejudicada a própria finalidade ou função do concurso. (..)
Do que se trata, afinal, para que haja uma concorrência real e efectiva é assegurar que todos os concorrentes respondam aos mesmos quesitos e requisitos do concurso (ou a um núcleo básico dele) de modo a possibilitar a plena comparação das propostas, a possibilidade de confrontá-las enquanto propostas contratuais a quesitos idênticos, para saber, objectiva e imparcialmente, a final, qual o melhor concorrente ou a melhor proposta que o mercado ofereceu. (..)
(..) o princípio da comparabilidade comunga, ao contrário do que poderia parecer, tanto de elementos objectivos como elementos subjectivos. Objectivos, porque exige que as propostas base (ou de qualquer outra espécie admitida) respondam clara e precisamente aos requisitos que, nos documentos do concurso, se pedia fossem concretizados ou quantificados pelos concorrentes. Mas também se integram aí elementos subjectivos, pois a determinação daquilo que num concurso é comparável é estabelecido pela entidade adjudicante de acordo com a sua vontade adjudicatória, expressa no programa do concurso e (sobretudo) no caderno de encargos. (..)
Os requisitos, os modelos, os projectos, as especificações (quantitativas e qualitativas) do bem ou utilidades pretendidos pela entidade adjudicante constituem, pois, em princípio, um ponto de referência obrigatória para todos os concorrentes, a fim de tornar comparáveis entre si (e com o padrão do concurso) as respectivas propostas. (..)" (2)
Isto porque "(..) as propostas para serem comparáveis (analisadas, avaliadas e classificadas racionalmente), devem responder a um padrão comum, é dizer, a todas as (e apenas às) especificações solicitadas pelas peças do procedimento e dentro dos limites por elas impostos. (..)"
Há várias manifestações da exigência da comparabilidade das propostas no CCP, nomeadamente, continuando com a doutrina que vem sendo citada, "(..) o CCP estabelece também o dever de exclusão das propostas cuja impossibilidade de avaliação decorra da forma de apresentação de algum dos respectivos atributos [artigo 70º/2, alínea c)], designadamente, por equivocidade ou falta de clareza - admitindo-se que, por regra, essa impossibilidade de avaliação apenas deva ser afirmada depois de o júri solicitar um esclarecimento ao concorrente (e desde que, no caso, a admissibilidade do esclarecimento não contrarie o regime do artº 72º/2 do CCP) (..)". (3)

Não é de acompanhar o entendimento sustentado pelo Tribunal a quo, pois tendo presente que as situações previstas no artº 70º nº 2 CCP dizem essencialmente respeito ao conteúdo da proposta e não a razões formais, daqui deriva que a falta de discriminação por extenso dos preços unitários em algarismos não é passível de subsunção na hipótese normativa do artº 70º nº 2 al. c) CCP em consequência de a realidade dos factos no caso concreto desmentir a impossibilidade de avaliação exigida na referida norma.
Desde logo, a Recorrente discriminou em algarismos e por extenso os preços parciais dos lotes e o preço global da proposta, o que significa, com toda a clareza, a possibilidade de avaliação da proposta para efeitos de aplicação do critério do mais baixo preço, único atributo submetido à concorrência limitado ao máximo do preço base fixado.
Em segundo lugar, a discriminação do preço por extenso é uma formalidade expressamente funcionalizada a dirimir a ocorrência de divergência de valores dos preços expressos em algarismos, ou entre o valor numérico e o correspondente valor por extenso, conforme cláusula 12ª nºs 1 e 2 do Programa do concurso, sendo que em momento algum da fundamentação dos relatórios do júri, preliminar ou final, é dito que exista divergência entre preços, seja nos preços em numerário de cada um dos produtos de material didáctico (preços unitários), nos preços em numerário e por extenso dos lotes do material didáctico (preços parciais), ou no preço final global, em numerário e por extenso, da proposta apresentada pela ora Recorrente.
No tocante às razões de ordem material, reveste carácter taxativo o elenco das situações previstas no artº 70º nº 2 CCP como causas de exclusão das propostas, aplicável a todos os procedimentos e no artº 146º nº 2 CCP específicas do concurso público.
O que, atenta a natureza regulamentar do Programa do concurso e de harmonia com o princípio da conformidade (obrigação de não contradição por preeminência da lei (artº 112º CRP), nos leva a interpretar a cláusula 15ª nº 2 g) do PC no respeito pelo regime do artº 70º nº 2 c) CCP atendendo ao princípio da comparabilidade das propostas na vertente da avaliação, ou seja, no sentido do dever de exclusão da proposta cuja equivocidade ou falta de clareza evidenciada no segmento do texto dos preços indicados revele impossibilidade de apreciação do seu conteúdo - no caso dos autos, os preços unitários, preços parciais por lotes e preço global - em si própria e por comparação com as demais, segundo o critério de adjudicação estabelecido no procedimento.
Equivocidade ou falta de clareza que não existe, o que significa que o fundamento de exclusão da proposta não tem amparo legal na medida em que o concreto circunstancialismo da motivação do despacho de 31.08.2010 não é subsumível no conceito de "impossibilidade de avaliação" definido no artº 70º nº 2 c) CCP, inquinando o despacho de 31.08.2010 da Vereadora da CM de ......... de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, o que implica a sua anulação ex vi artº 135º CPA.


3. acto de adjudicação - acto tendencialmente devido;

Uma vez assente a invalidade do acto de exclusão da proposta da ora Recorrente, importa saber se as circunstâncias concretas permitem a condenação da entidade adjudicante, o Município de ........., a adjudicar o contrato à ora Recorrente, na exacta medida em que foram deduzidos em cumulação o pedido de anulação do acto de adjudicação do contrato à contra-interessada M......... Lda. - acto positivo de conteúdo ambivalente, (4) - com a condenação na sua substituição pelo acto de adjudicação a favor da ora Recorrente, sustentado como acto legalmente devido à luz do critério de adjudicação do mais baixo preço.
Pela conjugação dos artºs. 4º nº 1 e 2 c) e 47º nº 2 a) CPTA, é admissível no âmbito dos processos urgentes do contencioso pré-contratual a cumulação de pedidos de anulação de um acto de conteúdo positivo em favor de terceiro, com a condenação à sua substituição por outro que dê satisfação ao interesse pretensivo da parte na adjudicação. (5)
Ponto é que a situação de facto emergente dos autos seja subsumível no quadro determinado pelos artºs 66º e 67º CPTA do "acto legalmente devido", no sentido de acto "(..) cuja prática é imposta à Administração por lei, por regulamento ou, até, por contrato ou acto administrativo anteriores, imposta, em suma, por um qualquer antecedente jurídico que disponha vinculadamente sobre um acto administrativo a praticar pela Administração - independentemente de ele vir aí total ou só parcialmente conformado -, não dando, nessa medida, margem para avaliações próprias (discricionárias ou similares) suas.
Por outras palavras: a conformação normativa do acto administrativo ilegalmente omitido ou recusado não respeita necessáriamente a todos os seus elementos, nomeadamente ao seu quid (conteúdo), podendo cingir-se, até, apenas ao an ou quando da sua actuação, isto é, ao dever de se pronunciar, de tomar uma qualquer decisão sobre uma situação administrativa - caso em que a condenação judicial à prática do acto devido poderá limitar-se (esquecendo por ora a existência de outros limites da discricionariedade administrativa) à imposição de a Administração decidir expressamente sobre tal situação. Em tudo o mais, a determinação do acto em causa pode depender de juízos de avaliação discricionária próprios (e exclusivos) da Administração, pelo que, nestas circunstâncias, ela só será condenada a observar as vinculações a que está submetida na prática desse acto. (..)" (6)
Deste modo, "(..) será devido o acto que seja exigido por uma previsão normativa, ditando esta o seu carácter vinculado quanto à sua prática/realização (quanto ao "se") e quanto ao momento (quanto ao "quando") da sua verificação - dois elementos essenciais para ser possível a condenação da Administração a agir. A isto acresce que esteja a ser reclamado por quem efectivamente o possa exigir.
Quanto ao conteúdo, o ser um acto vinculado não é imprescindível para ser possível a procedência da acção de condenação, sendo que, nesse caso, a sentença condenatória será proferida com um conteúdo mais limitado. (..)" (7)
Ou seja, na medida do critério de adjudicação escolhido pela entidade adjudicante e desde que não se apresentem espaços próprios de discricionariedade administrativa ou de margem de livre apreciação sobre as qualidades da proposta, é admissível, em via de cumulação de pedidos de anulação do acto ambivalente (positivo) e de condenação na sua substituição por outro a favor da parte peticionante, condenar a entidade administrativa no acto de adjudicação devido.

Na situação dos autos, o critério de apreciação das propostas é o do mais baixo preço, de modo que, pelas razões já referidas supra, tudo indica que estamos perante o que a doutrina designa por "procedimentos de individualização do co-contratante em que a adjudicação assume carácter necessário ou automático" em contraste com os "procedimentos de escolha do co-contratante, em que está presente esta margem de livre decisão administrativa", sendo que do ponto de vista do direito objectivo, o "dever de adjudicação" que constitui a epígrafe do artº 76º CCP não significa a afirmação de "(..) qualquer vinculação incondicional da entidade adjudicante, na sequência da abertura do procedimento público adjudicatório, à adopção do acto de adjudicação do contrato ... do que se trata no artº 76º nº 1 do CCP, é não da consagração da adjudicação como acto estritamente devido, a cuja prática o órgão competente para a decisão de contratar se encontra irredutivelmente vinculado, mas antes da imposição de uma condição à entidade adjudicante tendo por finalidade beneficiar do "compromisso unilateral e irrevogável do proponente particular em manter firme a sua proposta "(Massimo Giavazzi), até ao termo do prazo consignado no artº 65º do CCP. ... Neste contexto, a única disposição legal, constante do CCP que conforta o entendimento de que nos confrontamos com um acto devido é o seu artº 105º nº 2, que estabelece um autêntico dever de "adjudicação subsidiária" [Ramón Parada (n.4), p.299] à proposta ordenada em segundo lugar, no caso de não outorga do contrato por motivo imputável ao adjudicatário. ... Em bom rigor, o que fica comprometido é apenas o poder que era concedido ao abrigo da lei anterior [artº 56º/2 DL197/99] ao órgão competente para a decisão de contratar de recuar na sua originária decisão de adjudicação, e não, própriamente, o poder de não adjudicar por imperativos de interesse público. (..)" (8)
Resta saber se a situação concreta, tal como emerge do probatório, no tocante ao pedido de condenação da entidade administrativa ora Recorrida a adjudicar o contrato à ora Recorrente, se configura como a única solução legalmente exigível, ou seja, saber se as circunstâncias do caso concreto e nos exactos termos trazidos a juízo pelo probatório constituem a entidade Recorrida no dever de adjudicar o contrato à ora Recorrente por o procedimento adjudicatório não lhe conferir liberdade de escolha (margem de livre decisão).
No que respeita à plausibilidade jurídica do pedido condenatório na substituição do acto por outro, evidencia-se como pressuposto relevante a circunstância de a entidade administrativa ora Recorrida se ter determinado em favor da adjudicação do contrato, o que significa que, do ponto da vista da Administração a prossecução do interesse público concreto evidenciado no procedimento passa pela concretização do seu fim, que é a escolha de uma proposta e consequente celebração do contrato para aquisição de material didáctico para os Jardins de Infância da Rede Pública do Concelho de .........

Por outro lado, na medida da invalidade do acto de exclusão da proposta da ora Recorrente, o acto de adjudicação praticado mostra-se desconforme com o critério de adjudicação do procedimento, sabido que no caso em que o critério é o do mais baixo preço, ou seja, o único aspecto submetido à concorrência para efeitos de objecto de avaliação se cinge ao preço contratual proposto pelos concorrentes, como já evidenciado supra, sendo que, a preços antes da aplicação da taxa de IVA, a prova produzida demonstra que o valor global da proposta da contra-interessada M........ Lda. é de 14.096, 84 € e o da proposta da ora Recorrente de 11.755,88 €.
Logo, não fora a decisão de exclusão da proposta da ora Recorrente, exclusão inválida pelas razões supre referidas, também não se verificaria a adjudicação a favor do terceiro contra-interessado, acto inquinado de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, cfr. artº 74º nº 2 CCP, na medida em que o preço contratual da proposta apresentada pelo concorrente a quem foi adjudicado o contrato é superior ao da outra proposta, o que coloca a escolha da entidade adjudicante em desconformidade com o critério do mais baixo preço por si fixado no procedimento e a que está vinculada, e significa que o acto de adjudicação praticado é passível de anulação ex vi artº 135º CPA.
Em coerência com os elementos constantes do concreto procedimento adjudicatório trazidos ao probatório - a saber, o critério de adjudicação do mais baixo preço adoptado no procedimento, ponderado ainda que, por um lado, nada foi trazido ao processo em contrário da adequação da proposta apresentada pela ora Recorrente com o interesse público prosseguido e, por outro lado, não se apresentam espaços próprios de discricionariedade administrativa ou de margem de livre apreciação sobre as qualidades da proposta na exacta medida do critério de adjudicação escolhido pela entidade adjudicante -, cabe concluir no sentido do dever de adjudicação do contrato que impende sobre o ora Recorrido a favor da proposta apresentada pelo ora Recorrente no âmbito do procedimento adjudicatório de concurso público para aquisição de material didáctico para os Jardins de Infância da rede pública do Concelho de .........


Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Administrativo Sul em:

A. julgar procedente o recurso e revogar a sentença proferida;
B. anular o despacho de 31.08.2010 da Vereadora da Câmara Municipal de ......... de exclusão da proposta do concorrente A ............, SA e de adjudicação do contrato ao concorrente M........, Lda;
C. condenar o Município de ......... a, no âmbito do procedimento adjudicatório de concurso público para aquisição de material didáctico para os Jardins de Infância da Rede Pública do Concelho de ......... referido nos autos, emitir o acto de adjudicação do contrato a favor do concorrente A................, SA.

Custas a cargo do Recorrido Município de ........., em 1ª Instância.

Lisboa, 12. Maio.2011,


(Cristina dos Santos)
(António Vasconcelos)
(Paulo Gouveia)

(1) Margarida Olazabal Cabral, O concurso público no Código dos Contratos Públicos, Estudos de Contratação Pública - I, CEDIPRE, org. Pedro Gonçalves, Coimbra Editora/2008, págs. 204/205; Luís Verde de Sousa, A negociação nos procedimentos de adjudicação, Almedina/2010, págs. 184/185; José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções fundamentais de direito administrativo, Almedina/2010, 2ª ed. pág. 208.
(2)Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros procedimentos de adjudicação administrativa - das fontes às garantias, Almedina/2003, págs.103/104, nota (178) e 441/442.
(3)Rodrigo Esteves de Oliveira, Os princípios da contratação pública, Estudos de Contratação Pública - I, CEDIPRE, org. Pedro Gonçalves, Coimbra Editora/2008, págs.70/72.
(4)Aroso de Almeida, Anulação de actos administrativos e relações jurídicas emergentes, Almedina/Teses/ 2002, págs. 110/111.
(5)Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, págs. 229 (47º), 508 (100º).
(6) Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, CPTA / ETAF - Anotados, Vol. I, Almedina/2004, págs. 413/414.
(7) Paula Barbosa, A acção de condenação no acto administrativo legalmente devido, aafdl/Lisboa/2007, pág. 90.
(8)Bernardo Azevedo, Adjudicação e celebração do contrato no Código dos Contratos Públicos, Estudos de Contratação Pública - II, CEDIPRE, org. Pedro Gonçalves, Coimbra Editora/2008, págs. 230, nota (7), 237, 238 nota (18).