Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31 de janeiro de 2012 (proc. 45/12)

Imprimir

Sumário:

Definir "os parâmetros base fixados no caderno de encargos" e "as circunstancias em que uma cláusula da proposta que não é considerada nos critérios e parâmetros usados para avaliar e adjudicar, viola aspectos da execução do contrato não submetidos à concorrência"; saber se a norma da alínea b) do n.º 2 do art.º 70.º do CCP se destina a proteger a concorrência, em termos de relevarem para a exclusão da proposta apenas os aspectos da execução do contrato que a prejudicam, destroem ou falseiam; bem como o alcance da declaração do concorrente de aceitar a prevalência dos documentos conformadores do concurso com a sua proposta nos aspectos não submetidos à concorrência, são questões complexas e de relevância geral, que se repetem em contratos sujeitos ao regime de formação previsto no CCP. Além disso são questões novas sobre as quais não se estabilizou ainda o entendimento jurisprudencial, pelo que se justifica a admissão de recurso de revista excepcional, nos termos do n.º 1 do art.º 150.º do CPTA.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


I - Relatório
A...... SA, recorre nos termos do artº 150º do CPTA do acórdão do TCA Sul que negou provimento ao recurso interposto da sentença do TAF de Sintra que julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual de impugnação da deliberação de 10.12.2010, do Conselho de Administração da B...... SA, no âmbito do Concurso Público Internacional n°02/CPI/DL/2010 para a "Prestação de serviços de limpeza, de instalações de limpeza, abastecimentos e outros, dos veículos de serviço público, de eléctricos, dos ascensores da Bica e do Lavra e do elevador de Santa Justa da B......, S.A.", que determinou a adjudicação daquele concurso à contra-interessada C......, LDA.
A A. ora Recorrente, peticionou a anulação do acto adjudicatório, em cumulação com a anulação do eventual contrato a celebrar e com o pedido de condenação da entidade demandada a praticar os actos necessários para ser adjudicado à Autora a prestação dos serviços objecto do concurso, indicando como contra-interessadas
D...... S.A.,
E......,
F...... e
G......, Lda.
Por decisão de 06 de Maio de 2011, o TAF de Sintra julgou a acção improcedente.
Interposto recurso para o TCA, este confirmou o decidido, com os seguintes fundamentos, em síntese:
- Após a Autora indicar como valor da causa 30.000,00€ (trinta mil euros), o despacho recorrido decidiu, em face do disposto nos artigos 32°, 33° e 34° do CPTA., fixar o valor da causa em 1.450.851,12€ (um milhão, quatrocentos e cinquenta mil e oitocentos e cinquenta e um euros), entendendo que o valor económico da acção corresponde ao efeito jurídico pretendido pela A. e este ser, em última análise, que lhe seja adjudicado o objecto do concurso.
- Mas, não é assim, pois a utilidade económica não é o valor da proposta apresentada, mas o lucro que o A. estima obter com a adjudicação, e é este o montante a atender para efeito de fixação do valor da causa.
- Sendo o critério de adjudicação o o "mais baixo preço", o qual, nos termos do n°2 do artigo 74° do CCP, só pode ser adoptado "quando o caderno de encargos defina todos os restantes aspectos da execução do contrato a celebrar, submetendo apenas à concorrência o preço a pagar pela entidade adjudicante", a apresentação da fórmula de revisão de preços nos termos do artigo 7°, al. h) do PC e artigo 10° n°2 do CE, podia ser apresentada durante a execução do contrato, pelo que não constituí um atributo da proposta e, como tal, não tinha de ser apreciada pelo júri na fase pré-contratual.
- A sentença recorrida, assim, não merece qualquer censura, não tendo incorrido no erro de interpretação e aplicação do artigo 10° n°2 do Caderno de Encargos e nas restantes violações ao CPP que lhe são imputáveis.
- Por outro lado, a proposta da contra-interessada C...... não configura uma proposta variante, uma vez que não contém nenhuma condição que ponha em causa ou colida com quaisquer aspectos de execução do contrato a celebrar, tendo inclusive apresentado uma Declaração onde aceita todo o conteúdo do CE e comprometendo-se a executa-la nos seus precisos termos. Esta declaração prevalece sobre o conteúdo da proposta, obrigando a contra-interessada, caso se detecte algum factor que seja divergente do conteúdo do Caderno de Encargos, a cumprir o contrato nos termos exigidos no referido Caderno de Encargos.
- concluiu que inexistem razões que possam justificar a exclusão da proposta da contra-interessada C......, a quem foi adjudicado a prestação de serviços, através da deliberação impugnada de 10.12.2010.
Deste aresto, é pedida a admissão de recurso de revista excepcional nos termos do artº 150º do CPTA.
A Recorrente defende, em resumo, a admissibilidade do recurso de revista, da seguinte forma:
- Adere-se ao entendimento do Acórdão Supremo Tribunal Administrativo de 24.03.2011 (in www.dgsi.pt, P. 0975/10), no qual se preconiza que "1 - No âmbito de concurso submetido ao regime legal estabelecido no Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei 18/2008, de 29 de Janeiro, devem ser excluídas, por força do disposto no artigo 70.º, as propostas que apresentem condições violadoras de aspectos do contrato a celebrar, que o caderno de encargos do concurso não submeteu à concorrência. II - Estão nessas circunstâncias as propostas que contêm declarações de revisão de preços não prevista no caderno de encargos."
- As questões decidendas no presente recurso são semelhantes ou têm a mesma importância que as que se discutiram no recurso atinente ao antedito Processo n.º 0975/10: (i) saber se a apresentação de uma proposta contendo uma fórmula de revisão de preços que, pela sua configuração, é susceptível de violar o limite máximo de revisão previsto no caderno de encargos do concurso, deve ser ou não excluída por apresentar condições violadoras de aspectos que aquela peça procedimental não submeteu à concorrência; (ii) saber se a declaração genérica de compromisso (Anexo 1 do Código dos Contratos Públicos) prevalece e permite considerar supridas quaisquer irregularidades constantes da proposta de um concorrente em matéria de apresentação de aspectos não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos e aos quais a entidade adjudicante pretendia que o mesmo se vinculasse, desde logo, na sua proposta.
- Estas questões revestem-se de importância que ultrapassa o mero caso concreto sendo que, atendendo à posição assumida no douto Acórdão recorrido - que, fez errada interpretação do disposto nos artigos 56º e 57º, n.º 1, alínea c), do Código dos Contratos Públicos (CCP), ao considerar não estarem em causa atributos da proposta e inexistir razão para a sua exclusão - a sua apreciação revela-se essencial para uma melhor aplicação do direito.
- Atendendo ao próprio carácter recente da legislação aplicada (CCP) e às dúvidas que se vêm suscitando na doutrina e o na jurisprudência sobre as questões referidas, considera-se que a admissão da revista é fulcral para que sejam apreciadas questões que se revestem de relevância jurídica fundamental, tal como sucedeu no Processo n.º 0975/10.
- Estão para apreciar questões essenciais nos procedimentos adjudicatórios previstos no CCP, que respeitam à plena coerência entre a proposta e o caderno de encargos, em aspectos que não são submetidos à concorrência.
- É necessária a intervenção orientadora do Supremo no que tange à solução a dar às questões de direito em apreço, dado que as mesmas poderão verificar-se noutros procedimentos adjudicatórios em que exista semelhante cláusula sobre revisão de preços constante do caderno de encargos.
Nas contra-alegações, C...... LDA., sustenta a inexistência de fundamentos bastantes para o presente recurso de revista.


II Apreciação.
1 - Os pressupostos do recurso de revista.
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A excepcionalidade deste recurso tem sido reiteradamente sublinhada pela jurisprudência do STA, referindo que só pode ser admitido nos estritos limites fixados naquele preceito.
A intervenção do STA é considerada justificada apenas em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se desvirtuarem os fins tidos em vista pelo legislador.
A jurisprudência desta formação tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental, exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA, se verifica tanto em face de questões de direito substantivo, como de direito processual, sendo essencial que a questão atinja o grau de relevância fundamental. Nos termos daquela jurisprudência, o preenchimento do conceito indeterminado verifica-se, designadamente, quando se esteja perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a sua solução envolve a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina.
E, tem-se considerado que estamos perante assunto de relevância social fundamental quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode ser um paradigma ou orientação para se apreciarem outros casos, ou quando tenha repercussão de grande impacto na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito tem tido lugar relativamente a matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, impondo-se a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula certa situação, vendo-se a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo, isto é, que o recurso não visa primariamente a correcção de erros judiciários.


2. Da aplicação ao caso.
A Recorrente aponta como questões relevantes a apreciar:
"(i) saber se uma proposta que contém uma fórmula de revisão de preços que, pela sua configuração, é susceptível (em abstracto, dependendo da evolução futura dos índices que utiliza) de violar o limite máximo de revisão previsto no caderno de encargos do concurso, deve ser ou não excluída por apresentar condições violadoras de aspectos que o concurso não submete à concorrência;
(ii) saber se uma declaração genérica de compromisso (Anexo 1 do Código dos Contratos Públicos) prevalece e por esta via supre quaisquer irregularidades constantes da proposta em aspectos não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos e aos quais a entidade adjudicante pretendia que o mesmo se vinculasse, desde logo na proposta.
Portanto, importa saber se da proposta apresentada constam atributos que violem parâmetros base fixados no caderno de encargos, ou se apresenta termos ou condições que violem aspectos da execução do contrato a celebrar não submetidos à concorrência, como refere a al. b) do n.º 2 do artigo 70.º do CCP.
Como se disse no recurso nº 975/10, que esta formação admitiu em 13-01-2011, esta questão implica necessariamente outra mais geral "... de determinar o conteúdo e alcance da previsão da norma, designadamente saber o que são "os parâmetros base fixados no caderno de encargos" e também "as circunstâncias em que uma cláusula da proposta que não é considerada nos critérios e parâmetros para avaliar e adjudicar deve ser interpretada como violadora de aspectos da execução do contrato não submetidos à concorrência". Será violadora desde que integre aspectos omissos ou pouco claros do caderno de encargos, ou dê satisfação a uma previsão contida no dito caderno que não era obrigatório integrar na proposta, ou sê-lo-á, somente quando contrariar aspectos claros do caderno de encargos? E, o que são aspectos da execução do contrato? Quais desses aspectos da execução do contrato devem entender-se como não submetidos à concorrência? Bastará uma declaração não conforme com a previsão de uma cláusula do caderno de encargos para serem violados aspectos da execução? Ou deverá entender-se, em caso de desconformidade, sem expressa repulsa do que consta dos documentos conformadores do concurso, que são estes que valem e se aplicam, o que tornaria irrelevantes, ao menos algumas declarações ou cláusulas discordantes da execução prevista nas peças propostas pelo dono da obra? Ou, a norma destina-se a proteger a concorrência, pelo que para a exclusão da proposta só importam os aspectos da execução do contrato que prejudicam, destroem ou falseiam a concorrência?
Como se vê, as questões de interpretação e aplicação desta alínea b) do n.º 2 do art.º 70.º do CCP são complexas e de relevância geral, uma vez que se repetem, pelo menos em parte dos numerosos contratos sujeitos ao regime de formação previsto no Código. Além disso são novas e sobre elas o STA não teve oportunidade de se pronunciar.
Algumas das questões gerais antes referidas antevêem-se como relevantes para a decisão do caso concreto, pelo que a intervenção do STA na revista pode ser um contributo importante para a clarificação e previsibilidade na aplicação do direito."
No caso presente está também feito apelo a que se decida quanto a saber se a força vinculativa dos documentos do concurso e o reforço adveniente de uma declaração genérica do concorrente de se conformar com todos os aspectos expressos naqueles documentos elimina as eventuais discrepâncias respeitantes a elementos não submetidos à concorrência que o concorrente inclua na proposta, sendo como que reduzidos ao conteúdo prevalecente do programa do concurso e do respectivo caderno de encargos. Ou se, pelo contrário, tais discrepâncias determinam a invalidação da proposta, ou se existe outra alternativa legal.
O P. 975/10 foi objecto de Acórdão sobre o mérito, mas em formação restrita e sem que existam outras pronúncias do Supremo, pelo que se justifica que o presente recurso seja admitido por idênticas razões.


III - Decisão.
Em conformidade com o exposto acordam, nos termos do art.º 150.º n.ºs 1 e 5 do CPTA, em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2012. - Rosendo Dias José (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Luís Pais Borges.