Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27 de Janeiro de 2011 (proc. 1042/10)

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Sumário:

A importância fundamental da questão terá de resultar da sua relevância jurídica ou social, entendida a primeira não num plano meramente teórico, mas em termos práticos de utilidade jurídica da revista no contexto da causa.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

I - RELATÓRIO
1.1. A..., B... e C..., vêm interpor recurso de revista, ao abrigo do n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do TCA Norte, de 23-09-2010, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo ora Recorrido, Ministério da Educação, revogou em parte a decisão do TAF do Porto, de 03-03-2010, que, julgou "(...)improcedentes (por impossibilidade absoluta) os pedidos formulados pelas autoras", na acção de contencioso pré-contratual, "reconhecendo às mesmas o direito a serem indemnizadas(...)" - cfr. fls.640
No tocante à admissão da revista, as Recorrentes referem, nas suas alegações, nomeadamente, o seguinte:
"(...)
São duas as questões que submetemos e este douto Supremo Tribunal, que, pela importância fundamental das mesmas e natureza e relevância dos interesses em causa, merecem a tutela excepcional de revista, prevista no art. 150.º do CPTA, pois o que está em causa é uma incorrecta aplicação e interpretação da lei substantiva, designadamente quanto às normas que ao caso concreto (interpretação de propostas de um concurso público) se aplicam e quanto à interpretação que resulta ou pode resultar da aplicação supletiva do Código Civil (designadamente do artigo 236.º).
Pensa-se que, no caso concreto, é necessária uma melhor aplicação do direito, que reclama, portanto, a intervenção deste Supremo Tribunal, até porque está em causa o mundo da Contratação Pública, hoje de enorme relevância económica e social, pois dele depende não só a imagem e sustentabilidade do Estado de Direito (como é público e notório na discussão actual quanto ao défice público e a necessidade de redução de despesas públicas), mas também a própria subsistência da democracia, face aos "atropelos" sistemáticos que nesta matéria têm existido... Mas a relevância social do presente caso revela-se, ainda, do lado das Recorrentes, dado que o concurso em questão era fulcral na "contabilidade" das empresas e no seu equilíbrio económico, pois, recorde-se, o contrato que foi celebrado tinha o preço de 6.762.542,40 (seis milhões, setecentos e sessenta e dois mil, quinhentos e quarenta e dois euros e quarenta cêntimos), valor de facturação crucial para as empresas em causa e manutenção dos postos de trabalho... É, pois, inquestionável a relevância social do caso em apreço.
(...)
Esta questão tem importância fundamental pela sua relevância jurídica e social, pois neste âmbito da contratação pública, um mundo que conhece grande discricionariedade e que, talvez por isso, assume na comunicação social e junto do público em geral sempre um enorme relevo, quer pelas persistentes "derrapagens orçamentais", quer por escolhas menos transparentes, quer pelo tráfico de influências e valores envolvidos (do erário público), o formalismo é fundamental, pelo que a interpretação das Propostas não pode ser como na contratação privada, já que elas obedecem a regras imperativas estritas, que se não estiverem totalmente cumpridas, não podem ser colmatadas com uma interpretação "correctiva" (ou esclarecimentos), como pretende o Acórdão do TCANorte em revisão.
(...)" - cfr.fls. 906 a 908
1.2. Por sua vez, o ora Recorrido, Ministério da Educação, pronunciou-se pela não admissibilidade do recurso de revista, salientando, designadamente, o seguinte nas conclusões da sua alegação:
"(...)
III- Quanto aos critérios interpretativos do Código Civil, e concretamente artigos 236.º e 238.º, o STA já se pronunciou diversas vezes sobre esta matéria tendo vertido o entendimento de que em sede de interpretação de negócios jurídicos atende-se prioritariamente à isenção das partes nos termos do disposto no artigo 236.º do Código Civil, embora nos negócios formais, não se admita, em princípio, sentidos repugnantes ao seu texto.
IV- O douto acórdão recorrido, com base no texto dos documentos que compõem a proposta concluiu que o prazo de execução de 4 meses não foi ultrapassado - prazo este bem expresso na proposta apresentada - aplicando, pois, a doutrina da impressão do destinatário constante do artigo 236.º do CC na variante objectivista prevista no artigo 238.º, o que está conforme o entendimento que tem vindo a ser preconizado pelo STA.
V- Não se vislumbrando, assim, qual a clara necessidade do Supremo Tribunal Administrativo se voltar a pronunciar sobre a questão da aplicabilidade dos critérios interpretativos constantes do Código Civil no âmbito da contratação pública, que justifique a admissão de um recurso nos termos do n.º 1 in fine do artigo 150.º do CPTA.
VI- Tão-pouco as questões suscitadas têm relevância jurídica e social que as Recorrentes alegam e que apenas fundamentam com a invocação genérica de que o mundo da Contratação Pública é hoje de enorme relevância económica e social e com o facto de que o Concurso em questão era fulcral na contabilidade e no equilíbrio económico das Recorrentes. Sem que se logre entender, qual o interesse fundamental da comunidade na apreciação de uma questão - interpretação de um prazo contido numa proposta - que só tem relevância no procedimento concretamente impugnado.
(...)
IX- As questões colocadas não revestem grau de dificuldade ou complexidade susceptível de fundamentar a admissão de um recurso, por natureza, excepcional. O qual, não deve, por isso, ser usado como um normal terceiro grau de jurisdição, o que, pela forma como impugnam o procedimento concursal e o Acórdão recorrido parece ser a pretensão das Recorrentes". -cfr.fls. 958 e 959-.
1.3. Cumpre decidir

 
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O recurso de revista a que alude o n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, que se consubstancia na consagração de um duplo grau de recurso jurisdicional, ainda que apenas em casos excepcionais, tem por objectivo facilitar a intervenção do STA naquelas situações em que a questão a apreciar assim o imponha, devido à sua relevância jurídica ou social e quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, se atendermos à forma como o Legislador delineou o recurso de revista, em especial, se olharmos aos pressupostos que condicionam a sua admissibilidade, temos de concluir que o mesmo é de natureza excepcional, não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, na medida em que das decisões proferidas pelos TCA's em sede de recurso não cabe, em regra, recurso de revista para o STA.
Temos assim, que de acordo com o já exposto, a intervenção do STA só se justificará em matérias de maior importância sob pena de se generalizar este recurso de revista o que, se acontecesse, não deixaria de se mostrar desconforme com os fins obtidos em vista pelo Legislador (cfr., a "Exposição de Motivos", do CPTA).
Vejamos, então.
2.2. Na sua decisão, de 03-03-2010 o TAF do Porto, julgou improcedentes, por impossibilidade absoluta, os pedidos formulados pelas ora Recorrentes, reconhecendo às mesmas o direito a serem indemnizadas, por ter considerado, em síntese, que, "(...) o acto impugnado padece do vício de violação de lei por infracção do disposto nos artigos 24º, n.º 4, al. a) do Programa de Concurso e 6º do Caderno de Encargos, pois que a proposta do concorrente n.º 3 deveria ter sido excluída, por inaceitável", por se mostrar ultrapassado o prazo de execução fixado no caderno de encargos, constituindo este o único vício tido por procedente pelo TAF, o qual na sua decisão salientou ainda que: "(...) o acto de adjudicação deveria ter recaído sobre a proposta apresentada pelas autoras - concorrente n.º 4 - dado que a mesma ficou graduada em 2º lugar".
Realçou, porém, que "(...) tal não é agora possível porquanto o contrato já se encontra executado"(...), constatando-se, "assim, que na pendência do processo se verificou que à satisfação dos interesses das autoras obsta a existência de uma situação de impossibilidade absoluta (...)" - cfr. fls.638 e 639
Outra foi, contudo, a tese perfilhada pelo TCA Norte, que não subscreveu a posição assumida pelo TAF do Porto, descartando, desde logo, a invocada ultrapassagem do prazo imperativo de 4 meses de execução, não existindo, por isso, razões para a exclusão da proposta em questão (cfr. os pontos 3.1 e 3.2 do citado aresto), após o que, apreciando as demais fontes de invalidade invocadas, assim conhecendo dos vícios em que decaíram os AA, o TCA concluiu pela sua improcedência, nesta parte confirmando o decidido no TAF (cfr. fls. 838/843), salientando, designadamente, que "não estando prevista qualquer fase de testes ou ensaios, o júri apenas tem que se ater ao alegado na proposta, confiando que o material proposto e adjudicado vai ser entregue com a funcionalidade de escrita simultânea", assim sendo, "não há, pois, qualquer "erro grosseiro" na avaliação da proposta, apenas se pontuou com 5 valores uma proposta que se vincula a apresentar quadros interactivos com a funcionalidade de escrita simultânea, nem havia que fazer qualquer tipo de prova testemunhal ou pericial, seja no procedimento seja na acção judicial, sobre a existência ou não da funcionalidade em questão", referindo, "que com a proposta, em que se indica a funcionalidade será fornecida, o proponente vincula-se a celebrar o contrato nos exactos termos em que declarou fazê-lo", sendo que, "se efectivamente os quadros entregues pelo adjudicatário não contêm a funcionalidade de escrita simultânea, os recorridos têm direito a ser indemnizados, mas isso no âmbito de outra acção que não a presente". (cfr.fls.842 e 843)
Já as Recorrentes insatisfeitas com o decidido no Acórdão em crise, dele vêm interpor recurso de revista, argumentando nos termos que constam da sua alegação de fls. 904-941.
Ora, efectivamente, é de admitir a presente revista tendo em vista a apreciação das questões que as Recorrentes referenciam na sua alegação, concretamente no seu ponto 3, a fls. 906-913, tratando-se aqui de questões cuja resolução envolve a realização de operações lógico-jurídicas algo complexas, que passam, designadamente, por apurar se os critérios interpretativos de uma declaração negocial privada, previstos no Código Civil, se aplicam e, em que termos, com referência a uma proposta apresentada em concurso público, e, isto, para além das questões relacionadas com a função do júri do concurso e com o momento em que uma determinada característica de um equipamento apresentado em concurso deve existir, o que tudo demanda a intervenção clarificadora deste STA, atenta a especial relevância jurídica das ditas questões, destarte se mostrando verificados os pressupostos de admissão da revista.


3 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em admitir o recurso de revista interposto pelos Recorrentes do Ac. do TCA Norte, de 23-09-10, devendo proceder-se à pertinente distribuição dos autos.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Janeiro de 2011. - José Manuel da Silva Santos Botelho (relator) - Rosendo Dias José - Luís Pais Borges.