Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26 de janeiro de 2012 (proc. 1178/11)

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Sumário:

É de admitir recurso de revista excepcional do Acórdão do TCA que, apreciando procedimento por ajuste directo ao abrigo de anterior Acordo Quadro, decidiu sobre a regularidade da representação e da introdução de dados em plataforma electrónica que foi efectuada pelo representante de uma empresa integrante de um consórcio externo e fez uso da assinatura electrónica qualificada atribuída enquanto representante daquela empresa. Trata-se de questão nova, sobre a qual o Supremo não se debruçou ainda, que tem aplicação reiterada e em que surgiram decisões dos tribunais administrativos em sentidos diferentes.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo


I - Relatório
A......, LDA., recorre, nos termos do artigo 150º do CPTA, do acórdão do TCA Sul, de 03/11/2011, que negou provimento ao recurso interposto da sentença do TAF de Sintra que julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual que intentara contra o
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL I.P.
e as contra-interessadas B......, C......, D...... e E......, identificadas nos autos:
A acção visa impugnar o despacho de 04.02.2011, do Vogal do Conselho Directivo da entidade demandada, que adjudicou ao consórcio representado pela C......, no âmbito do procedimento por ajuste directo n°2001/10/0007663, a prestação de serviço de fornecimento de refeições confeccionadas.
Alegava, em síntese, que a admissão da proposta da C...... ou do agrupamento de concorrentes C....../D....../E...... é ilegal, por violação do disposto no n.° 1 do artigo 257.° do Código dos Contratos Públicos ou do disposto no n.° 5 do artigo 57.° e artigo 62.°, ambos do Código dos Contratos Públicos e no n.° 3 do artigo 27.° da Portaria n.° 701-G/2008, de 29 de Julho, devendo, em consequência, o Segundo Relatório Final ser anulado e declarados nulos todos os actos subsequentes, incluindo a adjudicação e o contrato que já tenha sido ou venha a ser celebrado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea i) do n.° 2 do artigo 133.° do Código do Procedimento Administrativo.
Por sentença de 28.04.2011, o TAF de Sintra julgou a acção improcedente, absolvendo a entidade demandada e as contra-interessadas do pedido.
Em apelação para o TCA Sul, a A. invocou nulidade processual da sentença na medida em que, apesar de ter sido requerida a produção de prova testemunhal e produzida prova documental na acção, a Recorrente não teve acesso a essa prova em virtude de não ter havido notificação das partes, nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 91.°, n°4 e 102°, n°2 do CPTA, para apresentarem alegações, nem foi convocada audiência pública ao abrigo do disposto no art.°103.° do CPTA, sendo assim preterido o seu direito de, naquelas alegações, invocar fundamentos novos ou ampliar o pedido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 91° n°s 5 e 6 do CPTA.
Alegou ainda erro de julgamento por o tribunal "a quo" apesar de ter considerado assente que convidado a apresentar a proposta foi a C......, ter concluído que essa apresentação e posterior intervenção não se fez em nome próprio, mas em representação do Consórcio de que era chefe.
Defendeu também que, sendo o concorrente um consórcio, a proposta teria de ser apresentada por todos os consorciados, com o cumprimento das formalidades necessárias, ou pelo representante dos consorciados, nomeado mediante procuração especial, não podendo a procuração ser assinada electronicamente por quem vincula exclusivamente a C.......
E concluiu, que a admissão da C...... está ferida de ilegalidade face ao disposto nos artigos 257º, 57° n°5 e 62° do CCP e do artigo 27° n°3 da Portaria n°701-G/2008, de 29 de Julho.
Por acórdão de 03/11/2011, o TCA Sul negou provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Fê-lo considerando, em síntese;
- No tocante ao indeferimento de produção da prova testemunhal requerida, em face da natureza sumária do processo cautelar, o artigo 118° n°3 do CPTA permite o indeferimento da mesma, desde que o julgador a considere dispensável, por constarem já o processo todos os elementos necessários à decisão.
- A falta de notificação para alegações (artigos 91° n°4 e 102° n°2 do CPTA) não gera nulidade, visto que a lei não o declara, não tendo a recorrente alegado nem demonstrado que tal falta seria susceptível de influir no exame ou na decisão da causa.
- O artigo 102° n°2 do CPTA prescreve que só são admissíveis alegações no caso de ser requerida ou produzida prova, tendo a Mm.ª Juiz esclarecido no despacho de fls. 123 que "nos presentes autos não foi produzida prova com as contestações, pelo que não são admissíveis alegações", pelo que improcedem as alegadas nulidades processuais.
No que concerne à natureza da intervenção da C...... no procedimento, resulta do contrato de consórcio celebrado que a C...... é chefe do mesmo, tendo-lhe sido conferidos poderes para representar o consórcio através do seu próprio representante (cfr. doc. n°4, junto com a oposição à providência cautelar e doc. n°13 junto com o requerimento da providência).
- Também do doc. de fls.76 do processo instrutor resulta que a proposta foi submetida e assinada electronicamente por F......, a quem foram conferidos poderes para representar a C...... (cfr. alínea 1) do probatório), pelo que não haveria lugar à produção de prova testemunhal sobre esta matéria.
- As partes formaram um consórcio externo com a denominação C......D......E......, A.C.E., sendo o Chefe do Consórcio, durante todo o período de duração deste, a C...... a quem competia representar o consórcio através do seu próprio representante
- Daí que a proposta apresentada pelo Chefe de Consórcio, a C......, seja imputável ao consórcio e não à C...... ou a um agrupamento de concorrentes.
Nestes termos, forçoso é concluir que a adjudicação foi efectuada ao Consórcio, improcedendo a alegada violação do n°1 do artigo 257° do Código dos Contratos Públicos, não havendo também violação dos artigos 57° n°5 e 62° do mesmo diploma, ou sequer do n°3 do artigo 27° da Portaria n°701-G/2008, de 29 de Julho.
Assim, não era exigível a assinatura electrónica de quem tem poderes de representação das três empresas, ou de um representante comum do agrupamento, mas apenas do representante da C......, que em representação do consórcio apresentou a proposta.
E, ainda que se entendesse que a proposta em causa não se mostrava devidamente assinada por quem obriga o Consórcio C......-D......-E......, tal não poderia determinar a exclusão da proposta, atentos os princípios da concorrência e da proporcionalidade, mas tão somente um convite ao aperfeiçoamento da mesma (cfr. neste sentido, o Ac. do TCA-Sul de 29.04.2010, P. n°05862/10 e o Ac. TCA-Norte de 22.10.2010, P. 00323710-OBECRB).
Deste aresto, a Recorrente pede a admissão de revista excepcional, nos termos do artº 150º do CPTA.
Alega, em resumo, para preencher os requisitos de admissibilidade do recurso de revista nos termos do art°.150°, n°. 1 do CPTA:
- Atento o teor das decisões proferidas pelos Tribunais a quo, verifica-se que é necessário esclarecer as seguintes questões:
a. Saber se a junção aos autos de providência cautelar apensa aos autos de documentos que serviram de prova impunha a notificação das partes para produção de alegações escritas, ao abrigo do disposto no art.° 102.°, n.° 2 do CPTA;
b. Saber se se impunha a produção de prova testemunhal nos presentes autos;
c. Saber se a C......, SA. representa, externamente, o consórcio C......-D.....- E......, ACE e se a proposta apresentada pelo consórcio externo C......-D......-E...., ACE foi assinada e apresentada por quem tivesse poderes para o efeito.
Considera que existe, quanto às indicadas questões, manifesto erro de aplicação do direito.
Por outro lado, as questões a decidir envolvem a realização de operações lógicas e jurídicas particularmente complexas, requerendo a articulação de diferentes diplomas legais.
No que respeita à segunda questão suscitada tem relevância social, por a respectiva solução ser aplicável a situações similares, pelo que extravasará, seguramente, o caso ora em apreço.
As interessadas C......, D......, e E...... contra-alegaram, no sentido de não se verificarem os pressupostos de admissibilidade da revista previstos no Art.° 150° do CPTA, dizendo, em síntese:
- A questão suscitada pela recorrente da alegada nulidade processual por falta de notificação para alegações nos termos do disposto no Art.º 102° nº 1 al. a) do CPTA, não assume relevância para além do caso concreto, nem oferece complexidade jurídica fora do normal, não se vislumbrando qualquer erro de julgamento manifesto no douto Acórdão recorrido.
- Ainda que se entendesse existir a referida nulidade processual, sempre a mesma estaria sanada, porquanto não foi arguida pela recorrente no prazo de 5 dias a contar do seu conhecimento, na data em que foi notificada da sentença.
- As disposições dos art.° 91º n° 4 e 102° n.° 2 do CPTA não sancionam com a nulidade a falta de notificação para alegações pelo que a recorrente teria que ter alegado e demonstrado que tal falta seria susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, o que não fez (cf. art.° 201º n.° 1 do CPC).
- A entidade demandada e as contra-interessadas não juntaram documentos com a sua contestação e, tendo as contra-interessadas, na contestação, feito referência ao contrato de consórcio junto aos autos de providência cautelar que se encontram apensos, a recorrente não só teve acesso ao referido documento (porque parte na referida providência cautelar) como, notificada da contestação, podia ter-se pronunciado sobre ele ao abrigo do disposto no Art° 3° n.° 3, 517° a° 2 e 526° do CPC, o que não fez.
Pelo que se conclui pela inadmissibilidade da presente revista quanto à primeira questão suscitada pela recorrente nos termos do disposto no art. 150° nº 1 do CPTA.
- Quanto a saber se a produção de prova testemunhal nos presentes autos se impunha, é questão que não pode ser objecto de revista (cf. Art.° 150º n.° 4 do CPTA).
- Quanto à terceira questão, a mesma está relacionada com as particularidades deste concurso e da proposta que nele foi apresentada pelas contra-interessadas, não tendo qualquer tipo de repercussão para além do caso concreto, não contendendo, com interesses especialmente importantes da comunidade.
- Por outro lado, a questão não apresenta especial complexidade jurídica, não existindo erro manifesto na decisão do douto acórdão recorrido.
O Instituto da Segurança Social contra-alegou, em síntese:
- A recorrente não logrou demonstrar a maior importância das questões decidendas, no sentido de justificar a intervenção do tribunal superior;
- Pelo contrário, estamos manifestamente perante matéria que não assume, à luz da orientação jurisprudencial definida pelo STA, o relevo específico e de excepcional acuidade comunitária exigido pelo artigo 150.°, n.° 1 do CPTA, para efeito de a considerar como revestida de importância fundamental;
- Não se verificam os pressupostos de admissão da revista excepcional, previstos no artigo 150º do CPTA, já que as questões suscitadas não atingem o grau de relevância e excepcionalidade exigido, nem se antevê que seja caso que justifique ou reclame uma melhor aplicação do direito.


II Apreciação.
1. Os pressupostos do recurso de revista.
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A excepcionalidade deste recurso tem sido reiteradamente sublinhada pela jurisprudência do STA, referindo que só pode ser admitido nos estritos limites fixados naquele preceito.
A intervenção do STA é considerada justificada apenas em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se desvirtuarem os fins tidos em vista pelo legislador.
A jurisprudência desta formação tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental, exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA, se verifica tanto em face de questões de direito substantivo, como de direito processual, sendo essencial que a questão em causa seja considerada de relevância fundamental. Nos termos daquela jurisprudência, o preenchimento do conceito indeterminado verifica-se, designadamente, quando se esteja perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a sua solução envolve a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina.
E, tem-se considerado que estamos perante assunto de relevância social fundamental quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode ser um paradigma ou orientação para se apreciarem outros casos, ou quando tenha repercussão de grande impacto na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito tem tido lugar relativamente a matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, impondo-se a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa como condição para dissipar dúvidas sobre o quadro legal que regula certa situação, vendo-se a clara necessidade de uma melhor aplicação do direito com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objectivo, isto é, que não visa primariamente a correcção de erros judiciários menores ou que não sejam reveladores de uma corrente errónea sobre o direito aplicável àquele tipo de casos.

2. Da aplicação ao caso dos autos.
A recorrente pretende ver reapreciada a questão dos poderes de representação do agrupamento de empresas C......-D......E......, ACE, por uma das integrantes - a C......, questão que apresenta como associada à da validade da proposta e respectiva vinculação do agrupamento através da assinatura digital do representante da C......
A recorrente tem em vista essencialmente o cumprimento do disposto no art.º 27.º da Portaria 701-G/2008, que dispõe:
"Assinatura electrónica
1 - Todos os documentos carregados nas plataformas electrónicas deverão ser assinados electronicamente mediante a utilização de certificados de assinatura electrónica qualificada.
2 - Para efeitos da assinatura electrónica, as entidades referidas no n.º 3 do artigo anterior devem utilizar certificados digitais emitidos por uma entidade certificadora do Sistema de Certificação Electrónica do Estado.
3 - Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar directamente o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve a entidade interessada submeter à plataforma um documento electrónico oficial indicando o poder de representação e assinatura do assinante".
Sobre este ponto o ISS refere que o consórcio externo não tem personalidade jurídica pelo que não pode obter uma assinatura digital para plataformas electrónicas e que a proposta se encontra assinada por todas as entidades que compõem o consórcio de modo que apenas quanto ao formulário específico se poderia colocar a questão da assinatura digital, questão que resulta resolvida por a assinatura ser do representante da C...... a quem foram reconhecidos poderes para representar o agrupamento em sede de negociação do Acordo Quadro.
Trata-se de controvérsia sobre questão jurídica nova em que está em causa a conexão entre um Acordo Quadro e um concurso de aprovisionamento concreto efectuado ao abrigo daquele e o modo de actuação concreta na entrega de propostas em plataforma electrónica, para cumprimento das exigências legais e regulamentares.
É possível constatar pela análise dos Acórdãos desta formação de 6/10/2011, P. 0782/11 e de 5/1/2012, P. 01056/11 que houve decisão anterior dos tribunais administrativos de sentido divergente àquele que foi adoptado no presente processo.
Disse a formação de apreciação preliminar, admitindo a revista, naqueles processos, a propósito de questão idêntica:
"Está em causa controvérsia reportada ao novo regime consagrado no CCP (que rompeu com o anterior regime de contratação pública constante do DL nº 197/99, de 8 de Junho), no que toca à exclusão de candidaturas em sede de concurso limitado por prévia qualificação, por falta de apresentação (ou apresentação incorrecta passível de rectificação) dos documentos exigidos no programa do procedimento, à luz da regulamentação da submissão das candidaturas através de plataformas electrónicas de contratação pública.
As instâncias decidiram (...), com fundamentação que poderá ter-se como juridicamente plausível, sendo certo que as questões suscitadas não foram ainda objecto de específica apreciação por parte deste STA, não se encontrando jurisprudência concretamente incidente sobre tal matéria.
A intervenção deste Supremo Tribunal, em sede de revista, terá assim o condão de elaborar uma adequada exegese dos normativos referidos, dentro do actual regime de contratação pública proclamado no CCP, em matéria que assume inegável relevância jurídica e social".
Os recursos de revista assim admitidos não foram ainda decididos, pelo que se justifica, com idêntico fundamento, a admissão do presente.
Sobre as duas outras questões suscitadas pela recorrente:
- Erro de direito por não se ter acolhido como nulidade relevante a falta de notificação das partes para alegações escritas, ao abrigo do art.º 102.º n.º 2 do CPTA (quando entende que houve produção de prova) e
- Falta de produção da prova testemunhal requerida, uma vez que o recurso é considerado admissível com o fundamento apontado e a formação de julgamento aplica aos factos apurados o regime jurídico que for considerado adequado - n.º 3 do art.º 150.º - será processualmente adequado que seja aquela formação a estabelecer o âmbito de cognição da revista.

III - Decisão.
Em conformidade com o exposto, atentos os n.ºs 1 e 5 do art.º 150.º do CPTA acordam em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
Lisboa 26 de Janeiro de 2012. - Rosendo Dias José (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Luís Pais Borges.