Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de Junho de 2011 (proc. 533/11)

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Sumário:

Um dos requisitos atinentes com a importância fundamental de uma questão de direito passa, designadamente, pela complexidade das operações de natureza lógica e jurídica necessárias à resolução do caso e, por outro lado, pela capacidade de expansão da controvérsia, ou seja, a possibilidade de esta ultrapassar os limites da situação singular e se repetir, nos seus traços teóricos num número indeterminado de casos futuros.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

 
I - RELATÓRIO
1.1.A Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. vem interpor recurso de revista, ao abrigo do n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do TCA Sul, de 31-03-2011, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pela ora Recorrida A..., S.A., revogou a decisão do TAF de Sintra, de 30-11-2010, que tinha julgado improcedente a acção de contencioso pré-contratual intentada pela dita recorrida (cfr. fls. 49 da decisão do TAF e fls. 22 do Ac. recorrido)
No tocante à admissão da revista, a Recorrente refere, nas conclusões das suas alegações, nomeadamente, o seguinte:
"(...)
2.ª Nos presentes autos, o Acórdão ora recorrido violou a lei substantiva ao considerar que o regime a aplicar à formação dos contratos a celebrar ao abrigo dos CPA é o DL 197/99 - o mesmo que foi aplicado à formação dos CPA - e não o CCP, e, com isso, ao ter considerado que tanto os esclarecimentos prestados pelo Júri do Concurso como a Portaria homologatória dos CPA procederam a uma inovação ilegal das peças concursais ao declararem o CCP como o regime aplicável.
3.ª Esta questão de saber se, tendo havido uma sucessão de leis entre o início da formação dos CPA e o início da formação dos contratos a celebrar, se aplica o regime do 197/99 ou o do CCP reveste a maior relevância jurídica, pois exige a fixação de jurisprudência sobre a escolha entre dois regimes diferentes - o DL 197/99 e o CCP -, o último sucessor do primeiro.
4.ª Esta questão também tem óbvia relevância social na medida em que tem uma incontroversa aplicabilidade a um universo alargado de outros casos onde a formação de CPA se iniciou antes da entrada em vigor do CCP.
(...)" - cfr. fls. 24 e 25 das alegações)
1.2. Por sua vez, a ora Recorrida, A..., S.A. contra-alegou, pronunciando-se pela não admissibilidade do recurso de revista, salientando, designadamente, nas conclusões das suas alegações, o seguinte:
"A) Não se conformando com o acórdão recorrendo, pretende a Recorrente aceder a um terceiro grau de jurisdição, tendo interposto do mesmo recurso de revista para o STA.
B) Esquece-se, no entanto, que este recurso tem carácter excepcional, estando restrito à verificação de um de três pressupostos que não têm lugar no caso em apreço.
C) Com efeito, o que está em causa no presente recurso é a confirmação de uma actuação ilegal da Administração, que esta veiculou, quer por via (i) da alteração, em sede de esclarecimentos, do teor das peças do procedimento que enformavam a celebração de contratos públicos de aprovisionamento (doravante "CPA") e os contratos ao seu abrigo, bem como por via da (ii) Portaria n.º 939/2009, de 7 de Outubro que, em sede de homologação dos CPA's, fixou um novo critério de adjudicação e novos factores de ponderação do mesmo, aplicáveis aos contratos a celebrar ao abrigo dos CPA´s.
D) É desde logo evidente que, a situação supra não se reveste da relevância social ou jurídica que a Recorrente pretende fazer crer, e que justifique, pela sua natureza, o juízo de valor do venerando STA para uma melhor aplicação do Direito.
E) É que, a questão que a Recorrente coloca ao douto Tribunal restringe-se ao interesse da ACSS que, alterou indevidamente e por duas vezes as peças do procedimento e não se conforma com a inadmissibilidade de tal alteração portanto, a resposta à questão colocada não enceta qualquer complexidade que justifique a intervenção excepcional do STA.
F) Não assume (i) relevância jurídica porque, saber se em sede de esclarecimentos, a Entidade Adjudicante pode inovar ou dispor de modo diferente do originariamente constante das peças do procedimento é matéria há muito assente como ilegal e proibida pelos princípios que regem a actuação administrativa e a contratação pública.
G) Do mesmo modo que, (ii) não se repercute num n.º indeterminado de casos futuros, já que a maioria das matérias objecto dos antigos contratos públicos de aprovisionamento caducou em virtude da entrada em vigor de acordos quadro, seja celebrados pela Agência Nacional das Compras Públicas, seja por outras entidades agregadoras das necessidades do Estado. Não há portanto qualquer interesse que extravase o âmbito dos presentes autos, pelo que a questão sub judice não goza de qualquer relevância social, conforme o exigido pelo art. 150º do STA. Além disso,
H) A intervenção do STA não se justifica à luz de (iii) uma melhor aplicação do Direito, já que a questão suscitada não é objecto de uma divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, geradora de instabilidade na resolução dos litígios e, nessa medida, não reclama a intervenção deste Supremo Tribunal na qualidade de órgão de regulação do sistema.
(...)" - cfr. fls. 31 e 32 das contra-alegações.
1.3. Cumpre decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O recurso de revista a que alude o n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, que se consubstancia na consagração de um duplo grau de recurso jurisdicional, ainda que apenas em casos excepcionais, tem por objectivo facilitar a intervenção do STA naquelas situações em que a questão a apreciar assim o imponha, devido à sua relevância jurídica ou social e quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, se atendermos à forma como o Legislador delineou o recurso de revista, em especial, se olharmos aos pressupostos que condicionam a sua admissibilidade, temos de concluir que
o mesmo é de natureza excepcional, não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, na medida em que das decisões proferidas pelos TCA's em sede de recurso não cabe, em regra, recurso de revista para o STA.
Temos assim, que de acordo com o já exposto, a intervenção do STA só se justificará em matérias de maior importância sob pena de se generalizar este recurso de revista o que, se acontecesse, não deixaria de se mostrar desconforme com os fins obtidos em vista pelo Legislador (cfr., a "Exposição de Motivos", do CPTA).
Vejamos, então.
2.2. Na sua decisão, de 30-11-2010 o TAF de Sintra, julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual, interposta pela ora Recorrida, por ter entendido, designadamente, que "a Portaria 939/2009 não vem, pois, alterar o critério de adjudicação, limitando-se a densificar os factores no caso de o critério de adjudicação ser o da proposta economicamente mais vantajosa (cfr. n.º 2 do artigo 259.º do Código dos Contratos Públicos), pelo que terá que improceder, também nesta parte, a alegada ilegalidade da Portaria n.º 939/09, não se verificando a violação de qualquer princípio regulador da actividade administrativa".
(cfr. fls. 49 do Acórdão do TAF)
Outra foi, contudo, a tese perfilhada pelo TCA Sul, que não subscreveu a posição do TAF de Sintra, antes concluindo, para além do mais, que " em bom rigor, a celebração dos CPA visa a fixação antecipada dos termos dos concretos contratos a celebrar durante a sua vigência ou, como se diz especificamente na Portaria 939/2009 de 14.07.09, "as condições de fornecimento ao Estado da prestação de serviços de cuidados técnicos respiratórios domiciliários", sendo que, "antecipação que, a nosso ver, explica que esses dois momentos procedimentais, para os CPA e para os contratos individuais, não possam considerar-se juridicamente estanques entre si, bem como, no domínio dos procedimentos para a adjudicação dos contratos individuais, não tenha cobertura legal a introdução de alterações substanciais das condições fixadas no procedimento de formação dos CPA".
Realçou, também, o TCA que "no caso trazido a recurso essa alteração substancial deriva da introdução para os procedimentos de adjudicação dos contratos individuais, em via de esclarecimentos sobre as peças do concurso patenteadas, de critério distinto do fixado no quadro do procedimento de formação do CPA, maxime, no Programa e o Caderno de Encargos, nos termos supra referidos, pelo que tais esclarecimentos contêm matéria inovatória em contrário do clausulado no artº 18º nº 13 do Programa do Concurso Público nº 2008/100 transcrito no item D do probatório, e no artº 12º nº s 1 e 2 do Caderno de Encargos, levado ao probatório no item E., matéria inovatória que passou a integrar nos seus precisos termos o clausulado das referidas peças do procedimento e traduzidas no conteúdo dos artºs 5º, 6º e 7º da Portaria 939/2009 de 14.07.2009, homologatória dos CPA, transcritos no item K do probatório", nesta medida, "(...) tanto os citados esclarecimentos como os artigos da Portaria homologatória dos CPA, constantes dos mencionados itens E, D e K do probatório são passíveis de anulação por desconformidade com o disposto no artº 93º nº 1 DL 197/99 e violação de clausulado regulamentar a que a ora Recorrida se auto-vinculou, o que tem por consequência a manutenção do Programa e Caderno de Encargos nos termos originariamente patenteados". (cfr. fls. 22 do Acórdão do TCA Sul)
Já a Recorrente discorda do decidido no Acórdão do TCA Sul nos termos que explicita na sua alegação de recurso, a fls. 1 a 27 e que se centram, para além do mais, na invocada violação da lei substantiva "ao considerar que o regime a aplicar à formação dos contratos a celebrar ao abrigo dos CPA é o Decreto-Lei n.º 197/99 (...)", interessando apurar, designadamente, "se, tendo havido uma sucessão de leis entre o início da formação dos CPA e o início da formação dos contratos a celebrar, se aplica o regime do 197/99 ou o do CCP (...)" -cfr. a 2ª e a 3ª conclusão da alegação do recurso de revista, a fls. 24 e 25-.
Sucede que, no caso dos autos, as questões de direito referenciadas pela Recorrente na sua alegação se assumem como de particular relevância jurídica, uma vez que a sua resolução passa por uma indagação complexa de uma ponto de vista teórico e que implica a análise e a harmonização de normas e princípios retirados de diversos diplomas legais, estando, ainda, dotada de uma capacidade de expansão da controvérsia, podendo vir a repetir-se noutros casos, o que tudo justifica a intervenção clarificadora deste STA no quadro do recurso de revista.
É, assim, de concluir pelo preenchimento dos pressupostos que condicionam a admissão do presente recurso.


3 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em admitir o recurso de revista do Ac. do TCA Sul, de 31-03-11, devendo proceder-se à pertinente distribuição.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Junho de 2011. - José Manuel da Silva Santos Botelho (relator) - Luís Pais Borges - Alberto Acácio de Sá Costa Reis.