Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de março de 2012 (proc. 170/12)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Não se justifica, à luz da apontada disposição legal, a admissão de revista excepcional numa situação em que se questiona se, no caso concreto de um procedimento de concurso público para "Aquisição de Alcoolímetros Qualitativos", as exigências restritivas da dimensão dos equipamentos fixadas no CE são ilegais por violação das normas do CCP sobre garantia da concorrência, e se o Tribunal pode sindicar essas valorações feitas pela Administração, tendo o acórdão recorrido, com apelo aos factos provados, respondido afirmativamente, o que, para além de contender com matéria de facto e juízos de facto não sindicáveis pelo tribunal de revista, confere à questão um cunho naturalmente casuístico circunscrito às circunstâncias do caso singular.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

(Relatório)

O MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA recorre para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do art. 150º, nº 1 do CPTA, do acórdão do TCA Norte, de 16.12.2011 (fls. 313 e segs.), que confirmou sentença do TAF de Coimbra pela qual foi julgada totalmente procedente a acção de contencioso pré-contratual contra si intentada por "A......, SA", sendo contra-interessada "B......, LDA", ambas identificadas nos autos, com os pedidos de (i) anulação do acto de aprovação das propostas contidas no relatório final do júri do concurso para "Aquisição de Alcoolímetros Qualitativos", do qual resultou a adjudicação do contrato à contra-interessada; (ii) a condenação da Entidade demandada a praticar novo acto de adjudicação em favor da Autora; (iii) e a declaração de nulidade de todos os actos consequentes do acto ilegal, designadamente o contrato de fornecimento caso tenha sido já celebrado.
Sustenta, em abono da admissibilidade da revista, que há 3 questões de manifesta relevância jurídica que foram mal decididas pelo acórdão recorrido, havendo necessidade da sua reapreciação em sede de revista para uma melhor aplicação do direito, a saber:
(i) Da eventual violação do disposto no nº 5 do art. 42º do CCP, que possibilita a fixação de regras pela Administração, a cumprir no âmbito do Concurso Público, devendo apenas ser sindicável a actuação da Administração no exercício do poder discricionário em caso de erro grave ou manifesto.
(ii) Da eventual violação do disposto no nº 2 do art. 71º do CPTA, porquanto, estando perante uma situação em que é necessária a formulação de valorações próprias do exercício da actividade administrativa e havendo mais do que uma solução legalmente possível, o tribunal a quo não definiu orientações a observar pela Administração, antes a tendo condenado a adjudicar à A. o objecto do concurso.
(iii) Da eventual violação do nº 5 do art. 102º do CPTA, pois que, encontrando-se o procedimento concursal concluído, tendo já ocorrido uma adjudicação, é bem patente o grave e duplo prejuízo para o interesse público que a decisão de adjudicação a outra entidade acarreta, não tendo o tribunal a quo lançado mão da parte final da predita disposição, convidando as partes a um justo entendimento que pusesse fim ao litígio.

(Fundamentação)

O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.

Na situação em análise, entendemos que não se justifica a admissão da revista.
O que de essencial está em causa, em primeiro lugar, é aferir se os requisitos ou especificações técnicas exigidas no PC e no CE deste concurso se revelam justificáveis "à luz do objecto do contrato e dos fins que a sua fixação pretende salvaguardar", ou, por outras palavras, se a fixação de tais especificações técnicas revela arbitrariedade e violação do princípio da concorrência, traduzida na "ilegal exigência restritiva da dimensão dos alcoolímetros", em violação do disposto nos arts. 1º, nº 4 e 49º do CCP.
Violação que o acórdão diz ocorrer "sempre que estiver em causa no procedimento a prestação de um serviço cujo resultado já esteja pré-determinado, sabendo-se antecipadamente a quem iria ser adjudicado o serviço", designadamente nas situações, como se diz ser a dos autos, em que é público e antecipadamente sabido que só uma das marcas presentes no mercado tem equipamentos com as dimensões exigidas no PC e no CE (a da contra-interessada e adjudicatária B......), e que foi dado como provado nos autos que outros equipamentos com diferentes dimensões, designadamente os propostos pela Autora, asseguram a exigida portabilidade e a mesma capacidade e nível de qualidade.
O tribunal de revista aplica definitivamente o direito aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, não podendo nesta sede ser sindicada a matéria de facto fixada ou o erro na apreciação das provas (art. 150º, nºs 3 e 4 do CPTA).
Ora, o acórdão recorrido apoia-se integralmente, em favor da posição sufragada, na matéria de facto dada como provada, designadamente a constante dos pontos CC), DD), EE) e FF), na qual se assevera a portabilidade do equipamento proposto pela Autora e a sua plena capacidade para desempenhar as funções de fiscalização de níveis de alcoolemia com a mesma facilidade e com os mesmos níveis de qualidade assegurados pelo equipamento proposto pela contra-interessada, que foi objecto de adjudicação, daí retirando a sua pronúncia de ilegalidade da exigência contida no Caderno de Encargos, e concluindo: "Assim, logo por violação do princípio da concorrência, consignado no nº 4 do artigo 1º e art 49º do Código dos Contratos Públicos se deveria ter por ilegal a exigência restritiva da dimensão dos alcoolímetros".
É esta pronúncia que a recorrente pretende ver reapreciada.
Ou seja, não se questiona a salvaguarda, legalmente prescrita, do princípio da concorrência. O que se questiona é se, no caso concreto deste concurso, as exigências restritivas da dimensão dos equipamentos, fixadas no CE, são ilegais por violação das normas do CCP sobre garantia da concorrência, e se o Tribunal pode sindicar essas valorações feitas pela Administração, tendo o acórdão recorrido, com apelo aos factos provados, respondido afirmativamente.
O que, para além de contender com matéria de facto e juízos de facto não sindicáveis pelo tribunal de revista, confere à questão um cunho naturalmente casuístico circunscrito às circunstâncias do caso singular.
E vem também posto em causa que, tendo já ocorrido a adjudicação, e sendo patente o grave prejuízo para o interesse público que advirá de uma adjudicação a outra entidade, o tribunal tenha ordenado a adjudicação à Autora, sem ter lançado mão do disposto no art. 102º, nº 5 do CPTA, "convidando as partes a chegar a um justo entendimento que pusesse fim ao litígio".
Esta questão parece não se colocar, pela simples razão de que a norma do art. 102º, nº 5 do CPTA prevê como fundamento da modificação objectiva da instância ali prevista (de pedido de anulação em pedido indemnizatório) que à satisfação dos interesses do autor obste "a existência de uma situação de impossibilidade absoluta" de execução do julgado anulatório, não se prevendo aqui, tal como no art. 45º, o "grave prejuízo para o interesse público na execução da sentença", que apenas pode ser invocado no âmbito do processo executivo (cfr. Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, em anotação ao referido preceito).
Por fim, temos como certo que se não visiona na apreciação feita pelo tribunal recorrido qualquer erro grosseiro ou decisão descabidamente ilógica, ostensivamente errada ou juridicamente insustentável que imponha a admissão da revista como "claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".

(Decisão)

Com os fundamentos expostos, por não se verificarem os pressupostos exigidos pelo art. 150º, nº 1 do CPTA, acordam em não admitir a revista.


Custas pelos Recorrentes.
Lisboa, 15 de Março de 2012. - Luís Pais Borges (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho- Rosendo Dias José.