Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 1 de março de 2012 (proc. 1135/11)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Não se justifica, à luz da apontada disposição legal, a admissão de revista excepcional quando a controvérsia se reconduz a uma questão de contornos casuísticos e reportada a juízos de ponderação sobre factos, insindicáveis pelo tribunal de revista à luz do nº 4 do art. 150º do CPTA.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
( Relatório )
"A.........", com os sinais dos autos, interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150º, nº 1 do CPTA, recurso de revista do acórdão do TCA Norte, de fls. 406 e segs., pelo qual foi revogada sentença do TAF de Aveiro que, em sede de acção de contencioso pré-contratual intentada contra "B.........", também identificada nos autos, julgara procedente a acção e anulara o acto de adjudicação e o contrato de empreitada consequentemente celebrado com a contra-interessada "C........., S.A.".
Alega, em abono da admissibilidade da revista, que o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento relativamente a uma questão que considera fundamental e que entende mal decidida: saber se, reconhecida a ilegalidade decorrente da violação do art. 139º, nº 4 do CCP, que contamina o acto de adjudicação, será possível fazer tábua rasa da mesma em nome de um alegado interesse público, afastando o efeito anulatório derivado do contrato, ao abrigo do art. 283º, nº 4 do CCP.
A recorrida pronuncia-se apenas sobre o mérito do recurso, cuja improcedência reclama, considerando que o tribunal a quo fez uma correcta ponderação de interesses no que respeita ao instituto da invalidade derivada do contrato, consagrada no citado nº 4 do art. 283º do CCP.
( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente infundada ou insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.
Na situação em análise, tendo em conta os pressupostos de admissão do recurso previstos no art. 150º, nº 1 do CPTA, e à luz da orientação jurisprudencial atrás enunciada, entendemos que não se justifica a admissão da revista.

Vejamos.
A decisão da 1ª instância julgou procedente a acção, considerando verificada a invalidade do acto de adjudicação, por violação do disposto no art. 139º, nº 4 do CCP, traduzida no facto de o modelo de avaliação das propostas adoptado no procedimento de concurso (concretamente o ponto 14.2 do programa do procedimento) utilizar dados que dependem directamente dos atributos das outras propostas, especificamente o do "menor preço proposto", e não apenas dos atributos próprios da proposta a avaliar.
E julgou igualmente procedente o pedido de anulação do contrato, por invalidade derivada, considerando que a entidade demandada nada pedira ou invocara ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 283º do CCP.
O acórdão recorrido confirmou a decisão de ilegalidade do acto de adjudicação, mas afastou-se do decidido quanto à anulação do contrato, que considerou desproporcionada, por entender aplicável ao caso a válvula de escape do instituto da invalidade derivada do contrato, prevista no citado nº 4 do art. 283º do CCP.
Depois de realçar que o concurso em causa foi lançado por uma associação sem fins lucrativos, que tem por objectivo a constituição de uma estrutura que visa apoiar técnica e cientificamente a comunidade empresarial, de modo a contribuir para a respectiva modernização e desenvolvimento, através da inovação [ponto A) da matéria de facto], e que o mesmo visou a adjudicação de obra que consiste na construção da fase 2 do seu Centro Empresarial e Tecnológico, obra cujo financiamento foi aprovado no âmbito do Programa Operacional Regional do Norte [ON2], sendo, para o efeito, celebrado contrato de financiamento entre a Autoridade de Gestão da ON2 e a B........., suportado pelo contrato de financiamento documentado nos autos, o acórdão recorrido efectuou a seguinte ponderação, para os efeitos do nº 4 do art. 283º do CCP:
"Desse contrato de financiamento consta que é objecto do contrato conceder uma comparticipação financeira do FEDER, destinada a financiar a dita obra, sendo essa comparticipação, até ao montante de 4.562.812,06€ na ordem dos 70%.
Consta que o período de execução material e financeira da operação no ON2, é de 36 meses, a contar da data da celebração desse contrato, sendo que deverá ter início no prazo máximo de 180 dias após a assinatura do contrato de financiamento. E consta, ainda, ser obrigação do beneficiário executar a operação nos moldes previstos na decisão de aprovação, podendo o contrato ser unilateralmente rescindido pela Autoridade de Gestão se, nomeadamente, o beneficiário não cumprir as obrigações estabelecidas no contrato de financiamento, sendo que a rescisão do contrato de financiamento pela Autoridade de Gestão implica a devolução do apoio financeiro recebido pelo beneficiário... [ver os artigos 7º e 8º da contestação da B........., e suportados pelo contrato de financiamento junto a folhas 170 a 177 dos autos].
Ressuma, pois, por um lado, que estamos perante um interesse particular, da recorrida, de natureza essencialmente económica, e que se alicerça numa perspectiva de satisfação algo nebulosa, dada a sua posição na graduação do concurso [último lugar]. E, sendo certo que se verifica a ilegalidade que imputou ao acto de adjudicação, a violação do artigo 139º nº4 do CCP, não decorre dos autos que tal ilegalidade tenha tido uma repercussão relevante na graduação das propostas, e na respectiva selecção da vencedora.
Por outro lado, constata-se que estamos perante uma obra com relevante importância estratégica na dinamização da economia local, bem como no desenvolvimento tecnológico, e de inovação, o que lhe confere considerável interesse público mormente no tempo presente.
Este interesse público, não só na realização da obra mas também no não desperdício do financiamento que a suporta, e que seria posto em causa no caso de incumprimento das obrigações assumidas quanto a prazos, perfila-se, face àquele interesse particular, de maior valia.
Cremos, assim, que a anulação do contrato de empreitada aqui em causa, acarretaria, para o interesse público, e para o interesse da recorrente, uma série de efeitos negativos desproporcionados em face dos eventuais benefícios, para a recorrida, da anulação do contrato.
Deste modo, e apesar da anulabilidade do acto de adjudicação, por violação do artigo 139º nº4 do CCP, este tribunal ad quem entende não a decretar, tão pouco a do contrato, ao abrigo do artigo 283º nº4 do CCP."
A controvérsia dos autos reconduz-se, pois, como pretende a recorrente, a saber se, reconhecida a ilegalidade do acto de adjudicação, por o mesmo assentar em normas do procedimento violadoras do art. 139º, nº 4 do CCP, é possível afastar esse efeito anulatório do contrato, ao abrigo do nº 4 do art. 283º do CCP, em nome da prevalência de um alegado interesse público, à luz do qual aquela anulação se revele desproporcionada".
Perante a clareza do texto legal, dúvidas não restam de que, nos termos do nº 4 do art. 283º, é legalmente possível afastar, por decisão judicial ou arbitral, o efeito anulatório do contrato previsto no nº 2 do mesmo preceito.
O que pode discutir-se é se a decisão recorrida empreendeu correctamente o juízo de ponderação, necessariamente casuístico, a que a norma em causa subordina a possibilidade daquele afastamento ("ponderados os interesses públicos e privados em presença e a gravidade da ofensa geradora do vício do acto procedimental em causa"), à luz do qual aquela anulação "se revele desproporcionada ou contrária à boa-fé, ou quando se demonstre inequivocamente que o vício não implicaria uma modificação subjectiva no contrato celebrado nem uma alteração do seu conteúdo essencial".
Essa questão, porém, para além da sua natureza necessariamente casuística, reporta-se a juízos sobre factos ou juízos de facto, insindicáveis pelo tribunal de revista à luz do nº 4 do art. 150º do CPTA.
Este Supremo Tribunal não pode, assim, deixar de acolher os factos fixados pelo acórdão recorrido, incluindo os juízos de ponderação empreendidos, não podendo conhecer de eventual erro na fixação dos factos materiais da causa.
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, por não se verificarem os pressupostos exigidos pelo art. 150º, nº 1 do CPTA, acordam em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 1 de Março de 2012. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - Alberto Augusto Andrade de Oliveira.