Conclusões do Advogado-Geral no processo C-348/10 (7 de Julho de 2011)

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CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PEDRO CRUZ VILLALÓN
apresentadas em 7 de Julho de 2011 (1)

Processo C‑348/10

SIA „Norma‑A"
SIA „Dekom"
contra
Ludzas novada dome

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Latvijas Republikas Augstākās tiesas Senāta Administratīvo lietu departaments (Secção do contencioso administrativo do Tribunal Supremo da República da Letónia)]

 

«Distinção entre ‘contrato público de serviços' e ‘concessão de serviços' - Transportes públicos por autocarro - Vias de recurso em matéria de adjudicação de contratos - Aplicação directa e efeitos retroactivos de uma directiva»

 

O presente pedido de decisão prejudicial pode permitir que o Tribunal de Justiça complete a sua jurisprudência relativa aos critérios que permitem estabelecer a distinção entre contrato público de serviços e concessão de serviços na acepção do direito da União, e esclareça as situações em que se deve considerar que é directamente aplicável uma directiva que não foi transposta no prazo previsto para o efeito. Pode igualmente ilustrar, uma vez mais, a necessidade de cooperação judiciária entre a União e os Estados‑Membros no momento de aplicar o direito da União.

I - Quadro jurídico

A)    Direito da União

1. A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (2) (a seguir «Directiva 2004/18») e a Directiva 2004/17/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais (3) (a seguir «Directiva 2004/17») codificaram a regulamentação à época vigente em matéria de contratação pública (4), procurando, para maior clareza, ordenar de forma sistemática os instrumentos de coordenação instituídos pelo legislador comunitário. Nesse sentido, e no que se refere às definições das categorias e dos conceitos utilizados, o artigo 1.°, n.° 2, alíneas a) e d), da Directiva 2004/17 (5), dispõe:

«[Para efeitos da presente directiva entende‑se por:]

a) ‘Contratos de fornecimento, de empreitada de obras e de serviços' são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre uma ou mais entidades adjudicantes referidas no n.° 2 do artigo 2.° e um ou mais empreiteiros, fornecedores ou prestadores de serviços;

[...]

d) ‘Contratos de serviços' são contratos que não sejam contratos de empreitada de obras ou contratos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo XVII».

2. Por seu lado, o artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17, dispõe que a «concessão de serviços» é um contrato com as mesmas características que um contrato de serviços, com excepção de que a contrapartida dos serviços a prestar consiste quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento.

3. De acordo com o artigo 2.°, n.° 2, alínea a), da Directiva 2004/17, esta «é aplicável às entidades adjudicantes [...] [q]ue sejam poderes públicos ou empresas públicas e exerçam uma das actividades definidas nos artigos 3.° a 7.°».

4. O artigo 5.°, n.° 1, da Directiva 2004/17 prevê assim a sua aplicação «às actividades que visam a disponibilização ou exploração de redes de prestação de serviços ao público no domínio dos transportes por caminho‑de‑ferro, sistemas automáticos, eléctricos, tróleis, autocarros ou cabo».

5. Por seu lado, a Directiva 1992/13/CEE do Conselho, de 25 de Fevereiro de 1992, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes à aplicação das regras comunitárias em matéria de procedimentos de celebração de contratos de direito público pelas entidades que operam nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (6) (a seguir «Directiva 1992/13»), conforme alterada pela Directiva 2007/66/CE, de 11 de Dezembro de 2007 (7), tem por objecto assegurar a aplicação efectiva tanto da Directiva 2004/17 como da Directiva 2004/18 dispondo, para esse efeito, no seu artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b):

«1. Os Estados‑Membros devem assegurar que o contrato seja considerado desprovido de efeitos por uma instância de recurso independente da entidade adjudicante ou que a não produção de efeitos do contrato resulte de uma decisão dessa instância de recurso em qualquer dos seguintes casos:

[...]

b) Em caso de violação do n.° 5 do artigo 1.°, do n.° 3 do artigo 2.° ou do n.° 2 do artigo 2.°‑A da presente directiva, se essa violação tiver privado o proponente que interpôs recurso da possibilidade de prosseguir as vias de impugnação pré‑contratuais. Caso tal violação, conjugada com uma violação da Directiva 2004/18/CE, tiver afectado as hipóteses do proponente que interpôs recurso de obter o contrato;».

6. Nos termos do artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, na versão alterada pela Directiva 2007/66/CE:

«1. Os Estados‑Membros podem estabelecer que o pedido de recurso nos termos do n.° 1 do artigo 2.°‑D deva ser apresentado:

[...]

b) [e], em todo o caso, antes do termo de um prazo mínimo de 6 meses a contar do dia seguinte à data de celebração do contrato».

B)    Direito nacional

7. As disposições nacionais pertinentes são as seguintes. Em primeiro lugar, a likums «Par pašvaldībām» (Lei relativa às colectividades locais) (8), cujo artigo 15.° dispõe que a organização dos serviços de transporte público compete aos poderes autónomos das colectividades locais.

8. Em segundo lugar, a Publiskās un privātās partnerības likums (Lei relativa às parcerias entre o sector público e o sector privado, a seguir «LPSPSP») (9), de acordo com o disposto no artigo 1.°, n.° 7, estabelece que o contrato de concessão de serviços é um contrato segundo o qual, a pedido de um parceiro público, o parceiro privado presta os serviços enumerados no anexo 2 da Publisko iepirkumu likums (Lei dos contratos públicos, a seguir «LCP») e obtém como contrapartida, ou como componente essencial desta, pela prestação destes serviços o direito de explorar os referidos serviços, assumindo ao mesmo tempo igualmente os riscos da exploração dos serviços ou uma parte substancial desses riscos.

9. Por força do n.° 8 da mesma disposição, entende‑se por direito de explorar os serviços o direito de receber um pagamento por parte dos utilizadores finais dos serviços ou de obter uma contrapartida do parceiro público, cujo montante depende da procura dos referidos serviços por parte dos utilizadores finais, ou inclusivamente o direito de receber tanto um pagamento por parte dos utilizadores finais dos serviços como uma contrapartida do parceiro público.

10. De acordo com o n.° 9 do referido artigo 1.°, entende‑se por riscos de exploração dos serviços os riscos económicos quando as receitas do parceiro privado dependem ou da procura dos referidos serviços por parte dos utilizadores finais (risco ligado à procura), ou do facto de o serviço ser oferecido aos utilizadores finais de acordo com os requisitos estabelecidos no contrato de concessão (risco ligado à disponibilidade), ou, por último, quando as receitas dependam tanto do risco ligado à procura como do risco ligado à disponibilidade.

11. No contexto do presente processo, é igualmente pertinente a Sabiedriskā transporta pakalpojumu likums (Lei dos serviços de transporte público, a seguir «LSTP») (10), cujo artigo 8.°, segundo parágrafo, estabelece que, salvo disposição em contrário constante dessa mesma lei, o comitente organizará os serviços de transporte público de acordo com a LCP ou com a lei que regula a adjudicação de concessões.

12. O artigo 10.°, primeiro parágrafo, da LSTP, dispõe que o transportador será compensado pelas perdas e pelas despesas ligadas à prestação de serviços de transporte público, nos termos do disposto nos artigos 11.° e 12.° da referida lei; por outro lado, o terceiro parágrafo do referido artigo prevê que constitui igualmente uma perda, na acepção da referida lei, o pagamento dos serviços, se o comitente tiver organizado os serviços de transporte público ao abrigo da Publisko iepirkumu likums.

13. Nos termos do artigo 11.°, primeiro parágrafo, da LSTP, o transportador será compensado pelas perdas relacionadas com a prestação de serviços de transporte público:

«2. Através dos fundos previstos para esse efeito no Orçamento de Estado, no caso dos trajectos de interesse local que façam parte de uma rede de transporte regional;

3. Através dos orçamentos das colectividades locais, no caso dos trajectos de interesse local que façam parte de uma rede de transporte regional, relativamente à parte da organização dos serviços de transporte público que supere o limite dos recursos previstos no orçamento de Estado para assegurar esses serviços; [...]».

14. Por força do artigo 12.°, primeiro parágrafo, da LSTP, se o Estado estabelecer requisitos mínimos de qualidade para os serviços de transporte público que um transportador que opera com fins lucrativos não teria de cumprir, e cujo cumprimento gera despesas suplementares, o transportador tem direito de receber do Estado uma compensação por todas essas despesas. Por outro lado, o segundo parágrafo do referido artigo dispõe que serão compensados através do pagamento mencionado no primeiro parágrafo os transportadores que prestem serviços de transporte público no âmbito da organização dos serviços de transporte público, se os requisitos mínimos de qualidade tiverem sido determinados depois de iniciada a prestação de serviços de transporte público.

15. Por último, o Ministru kabineta noteikums n.° 1226, Sabiedriskā transporta pakalpojumu sniegšanā radušos zaudējumu un izdevumu kompensēšanas un sabiedriskā transporta pakalpojuma tarifa noteikšanas kārtība (Decreto do Conselho de Ministros n.° 1226, relativo à indemnização das despesas e perdas originadas pela prestação de serviços de transporte público e à fixação das tarifas do serviço de transporte público, a seguir «Decreto n.° 1226») (11), cuja aprovação teve por base a LSTP, dispõe no seu artigo 2.º que o transportador será compensado pelas seguintes perdas, ligadas ao cumprimento do contrato de serviços de transporte público:

1) Os custos indispensáveis relativos ao cumprimento do contrato de serviços de transporte público que superem as receitas obtidas;

2) Os custos gerados pela aplicação das tarifas fixadas pelo comitente;

3) Os custos que ficam a dever‑se ao facto de o comitente aplicar uma redução do preço do transporte a determinadas categorias de passageiros.

16. O artigo 3.° do referido decreto dispõe que o transportador tem direito de pedir uma compensação pelas despesas ocasionadas pelo cumprimento dos requisitos mínimos de qualidade impostos pelo comitente ou pela legislação depois de iniciada a prestação de serviços de transporte público, se o seu cumprimento exceder o montante das despesas relativas aos requisitos de qualidade previamente determinados.

17. Nos termos do artigo 39.° do Decreto n.° 1226, o comitente determinará as perdas reais a partir das receitas totais obtidas em execução do contrato de serviços de transporte público, excluindo as despesas justificadas que a prestação de serviços de transporte público tenha gerado. Na acepção desta disposição, devem entender‑se por receitas as receitas obtidas com a venda de bilhetes, incluindo os passes, e as receitas semelhantes obtidas no cumprimento do contrato de serviços de transporte público.

18. O comitente estabelecerá o montante da compensação que há‑de ser paga somando ao volume de perdas fixado nos termos do artigo 39.° do Decreto n.° 1226 o montante dos lucros. Este será determinado através da multiplicação das receitas por uma percentagem de lucros, acrescentando 2,5% à taxa de referência do mercado interbancário europeu (EURIBOR) durante os 12 meses do ano de referência (artigo 40.°).

19. O montante da compensação das perdas não poderá superar o montante das perdas reais que tiver sido calculado, se o transportador tiver aplicado as tarifas fixadas pelo comitente (preço do transporte) (artigo 49.°).

20. Se o direito de prestar serviços de transporte público for adjudicado ao abrigo da LCP, o montante da compensação será determinado com base na diferença entre o preço do serviço de transporte público estabelecido no contrato e as receitas realmente obtidas (artigo 50.°).

21. Por força do artigo 57.° do Decreto n.° 1226, se o contrato de serviços de transporte público for resolvido:

1) o transportador devolverá ao comitente os fundos pagos em excesso se, durante a prestação do serviço de transporte público, o montante da compensação das perdas superar o montante real calculado da compensação, e o comitente afectará esses fundos à compensação das perdas sofridas por outros transportadores;

2) o comitente pagará uma compensação pelas perdas se, durante a prestação do serviço de transporte público, o montante da compensação das perdas tiver sido inferior ao montante real calculado da compensação.

II - Matéria de facto

22. Como refere o despacho de reenvio do presente pedido prejudicial, o Ludzas rajona padome (Conselho distrital de Ludza) publicou em 17 de Junho de 2009 o anúncio do concurso para a prestação de serviços de transporte público por autocarro na cidade de Ludza e nos trajectos regionais do distrito de Ludza. As recorrentes no processo principal apresentaram a sua proposta em 6 de Agosto de 2009.

23. Por decisão de 31 de Agosto de 2009, o concurso foi adjudicado à empresa SIA Ludzas autotransporta uzņēmums (a seguir «SIA Ludzas ATU») e, em 2 de Setembro de 2009, o Ludzas novada dome (Conselho regional de Luzda) (12) decidiu celebrar um contrato de concessão com a referida empresa.

24. Em 16 de Setembro de 2009, as recorrentes impugnaram judicialmente a referida decisão e pediram ainda a suspensão da sua execução. Em 16 de Outubro de 2009, o Administratīvā rajona tiesa (Tribunal administrativo de primeira instância) deferiu o pedido de suspensão cautelar. Esta decisão foi confirmada, em sede de recurso, por decisão de 14 de Dezembro de 2009 do Administratīvā apgabaltiesa (Tribunal administrativo regional).

25. Porém, em 9 de Outubro de 2009, o Conselho distrital e a SIA Ludzas ATU já tinham celebrado o contrato de concessão, pelo que, em 26 de Novembro de 2009, as recorrentes requereram ao tribunal administrativo de primeira instância que declarasse a nulidade do contrato.

26. Por decisão de 3 de Dezembro de 2009, o tribunal administrativo de primeira instância julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade por considerar que, uma vez que o contrato era regulado pelo Direito Civil, não era abrangido pela competência da jurisdição administrativa.

27. Esta decisão foi anulada por decisão de 11 de Maio de 2010 pelo tribunal de recurso que, no entanto, negou provimento ao recurso das recorrentes quanto ao mérito, com o argumento de que, como refere o despacho de reenvio do presente pedido prejudicial, as recorrentes «não tinham nenhum direito subjectivo em apresentar um pedido destinado a obter uma decisão de anulação do contrato».

28. As recorrentes interpuseram recurso desta decisão no Tribunal Supremo da Letónia, alegando que a Directiva 2007/66 lhes confere um direito subjectivo de requerer a declaração de nulidade do contrato. Admitindo que no momento da celebração do contrato ainda não tinha terminado o prazo de transposição da referida directiva, alegaram que não lhes podia ser negado um direito que decorre do próprio objectivo da directiva.

III - Questão prejudicial

29. Foi neste contexto que o Tribunal Supremo da Letónia apresentou ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial, articulada em três perguntas:

«1) O artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17/CE, deve ser interpretado no sentido de que constitui concessão de serviços públicos o contrato através do qual é conferido ao adjudicatário o direito de prestar serviços de transporte público por autocarro, nos casos em que uma parte da contrapartida consiste no direito de explorar esses serviços, mas, ao mesmo tempo, a entidade adjudicante compensa o prestador de serviços pelas perdas de exploração, e, além disso, as disposições de direito público que regulam a prestação do serviço e as disposições contratuais limitam o risco de exploração do serviço?

2) Sendo negativa a resposta à primeira questão, o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13/CEE, na versão alterada pela Directiva 2007/66/CE, é directamente aplicável na Letónia desde 21 de Dezembro de 2009?

3) Sendo afirmativa a resposta à segunda pergunta, o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13/CEE deve ser interpretado no sentido de que é aplicável aos contratos públicos celebrados antes do termo do prazo de transposição da Directiva 2007/66/CE para o direito interno?»

30. Há que acrescentar desde já que, como resulta da redacção das questões prejudiciais, a primeira dúvida do órgão jurisdicional de reenvio diz respeito à qualificação do contrato relativo à prestação de serviços de transporte público como «concessão de serviços» na acepção do artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17, quando se verificam as seguintes circunstâncias:

1) Uma parte da contrapartida consiste no direito de explorar o serviço de transporte público (o prestador do serviço recebe a contrapartida através do pagamento efectuado por terceiros, os utilizadores do transporte);

2) A entidade adjudicante, de acordo com o previsto na legislação do Estado‑Membro, compensa o prestador de serviços quando haja perdas resultantes da prestação de serviços;

3) O risco de exploração do serviço de transporte público é limitado pelas normas que regulam a organização da prestação dos referidos serviços e pelo que está disposto no contrato.

31. Relativamente à segunda pergunta, o Tribunal Supremo da Letónia pergunta se, atendendo a que, no período compreendido entre 21 de Dezembro de 2009 e 14 de Junho de 2010 a Letónia não cumpriu as obrigações previstas na Directiva 2007/66, o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13 deve ser interpretado no sentido de que também é aplicável aos contratos previstos na Directiva 2004/17 e celebrados antes de ter terminado o prazo de transposição para o direito interno da Directiva 2007/66. A este propósito, importa observar que, nos termos do artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, uma pessoa tem direito de impugnar o contrato que tenha sido celebrado no prazo de seis meses a contar da data da sua celebração. Por conseguinte, no processo a quo, se se tomar em consideração o dia em que o contrato foi celebrado (9 de Outubro de 2009), as recorrentes também tinham esse direito em 21 de Dezembro de 2009 (depois de ter expirado o prazo de transposição da directiva para o direito interno).

32. Em suma, o Tribunal Supremo da Letónia considera que existem dúvidas sobre a interpretação do artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17 e do artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13 e que se trata de um elemento essencial para se pronunciarem sobre o reconhecimento às recorrentes do direito de interpor um recurso de anulação do contrato nos tribunais.

IV - Tramitação no Tribunal de Justiça

33. A pergunta prejudicial foi registada no Tribunal de Justiça em 9 de Julho de 2010.

34. Apresentaram alegações a Norma‑A, a Dekom, os Governos da Áustria e da Letónia e a Comissão.

35. Na audiência realizada em 18 de Maio de 2011, compareceram, apresentando oralmente as suas alegações, os representantes da Norma‑A, da Dekom, da Latgales plānošanas reģions (Região de Planeamento de Latgale (13)), do Governo da Letónia e da Comissão.

V - Alegações

36. No que se refere à questão da qualificação do contrato que é objecto do processo judicial a quo, a Norma‑A e a Dekom, bem como o Governo austríaco e a Comissão, defendem, no essencial, que se trata de um contrato de serviços na acepção da Directiva 2004/17, ao passo que o Governo letão defende que se trata de uma concessão. Enquanto que os primeiros consideram que o nível de risco assumido pela empresa adjudicatária não atinge o nível exigido para concluir que estão reunidos os requisitos de uma concessão, o Governo da Letónia e a Latgales plānošanas reģions concluem que o risco económico em causa é considerável e, em todo o caso, suficiente para que se possa falar numa concessão de serviços.

37. No que se refere às segunda e terceira questões, a Comissão e os Governos austríaco e letão, bem como a Latgales plānošanas reģions, sustentam que a Directiva 2007/66 não é aplicável aos contratos celebrados antes de terminado o prazo fixado para a sua transposição, alegando o Governo austríaco que não estão reunidas as características de incondicionalidade e de precisão necessárias para que a directiva seja imediatamente aplicável, embora, em sua opinião, esta observação seja puramente hipotética, uma vez que a tramitação no processo principal decorreu antes de terminado o prazo de transposição, nada permitindo considerar que a directiva tenha previsto um efeito retroactivo que imponha a anulação dos contratos celebrados antes do termo do referido prazo. Como adverte também o Governo da Letónia, qualquer outra solução seria contrária ao princípio da segurança jurídica. Por seu lado, a Comissão, respondendo de forma conjunta às duas últimas questões, entende que estão reunidas as circunstâncias tradicionalmente exigidas para que a directiva em questão seja directamente aplicável, embora esta não se possa aplicar aos contratos celebrados antes de ter terminado o prazo de transposição da mesma.

38. Por último, a Norma‑A e a Dekom sustentam que, de acordo com o artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b), da Directiva 2007/66, os particulares têm o direito de recorrer à justiça para pedir a declaração de nulidade de um contrato durante seis meses a contar da data de celebração do mesmo. Uma vez que no litígio principal esse prazo não tinha terminado na data em que devia ter sido transposta a directiva, o artigo 2.°‑D é aplicável mesmo que o contrato tenha sido celebrado anteriormente. Na opinião das recorrentes, da mesma forma que os Estados‑Membros se devem abster de adoptar disposições susceptíveis de comprometer o resultado imposto pela directiva, também estão obrigados a interpretar o direito nacional em conformidade com a directiva. Num caso como o que está em apreço, o direito subjectivo de interpor um recurso desta natureza numa instância independente decorre do objectivo prosseguido pela referida directiva.

VI - Apreciação

A)    Quanto à primeira questão prejudicial: a alternativa contrato/concessão de serviços

39. Compete exclusivamente ao órgão jurisdicional nacional qualificar o negócio jurídico controvertido no processo principal, podendo esse órgão jurisdicional esperar apenas do Tribunal de Justiça uma interpretação do direito da União que lhe possa ser útil para a resolução do litígio que lhe foi submetido (v. acórdão de 13 de Outubro de 2005, Parking Brixen, C‑458/03, Colect., p. I‑8585, n.° 32).

40. Para este efeito, a questão de saber se estamos perante uma «concessão de serviços» ou um «contrato público de serviços» deve ser apreciada exclusivamente à luz do direito da União (v. acórdãos de 18 de Julho de 2007, Comissão/Itália, C‑382/05, Colect., p. I‑6657, n.° 31, e de 15 de Outubro de 2008, Acoset, C‑196/08, Colect., p. I‑9913, n.° 38).

41. Da leitura conjugada das alíneas a) e d) do artigo 1.°, n.° 2, da Directiva 2004/17 decorre que os contratos de serviços são contratos a título oneroso celebrados por escrito entre uma ou mais entidades das adjudicantes referidas no n.° 2 do artigo 2.° e um ou mais empreiteiros, fornecedores ou prestadores de serviços, que tenham por objecto a prestação dos serviços mencionados no anexo XVII da directiva, entre os quais figura, no que ao caso interessa, o serviço de transporte terrestre.

42. Por seu lado, o artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da mesma directiva, dispõe que «concessão de serviços» é um contrato com as mesmas características que um contrato de serviços, com excepção de que a contrapartida da prestação de serviços a prestar consiste «quer unicamente no direito de exploração do serviço, quer nesse direito acompanhado de um pagamento».

43. A diferença entre os dois negócios jurídicos reside essencialmente na contrapartida, em cada caso, da prestação de serviços (acórdão de 10 de Março de 2011, Privater Rettungdienst und Krankentransport Stadler, C‑274/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 24).

44. A directiva não define aquilo que deve ser a contrapartida de um serviço prestado no cumprimento de um contrato. Na medida em que dispõe que no caso de a referida contrapartida consistir num direito de exploração se estará perante a figura de uma concessão de serviços, o Tribunal de Justiça concluiu que a diferença fundamental entre os dois negócios jurídicos reside, à primeira vista, no facto de a remuneração pelo serviço prestado ser paga directamente pela entidade adjudicante ou ser cobrada a terceiros (acórdão Eurawasser, já referido, n.° 51). Em última análise, essa diferença conduz, no entanto, ao critério da assunção do risco associado à incerteza do resultado de um negócio jurídico concebido para satisfazer os interesses respectivos das partes.

45. A remuneração da prestação por terceiros foi um critério determinante para qualificar o negócio jurídico como uma concessão de serviços, uma vez que implica que o risco de exploração do serviço é assumido pelo adjudicatário. Como o advogado‑geral J. Mazák observou nas suas conclusões no processo Privater Rettungdienst und Krankentransport Stadler, já referido (14), o carácter indirecto de uma remuneração bastou inclusivamente por si para o Tribunal de Justiça considerar que o negócio jurídico analisado constituía uma concessão de serviços (15).

46. No entanto, em minha opinião, o elemento verdadeiramente determinante é o da assunção do risco. É o que decorre do facto de a remuneração directa da prestação do serviço por parte da entidade adjudicante não implicar que estejamos necessariamente e seja como for perante um contrato público de serviços. Foi essa a razão pela qual, como também observou o advogado‑geral J. Mazák nas conclusões acima referidas (n.os 28 e 29), o Tribunal de Justiça não deixou de enunciar os «critérios subsidiários» que, perante uma remuneração directa, permitem concluir que o prestador de serviços assumiu o risco da sua exploração, sendo essa assunção que, em última instância, levou a qualificar o negócio jurídico de concessão, não obstante a remuneração directa (16).

47. Em suma, sendo o risco um elemento inerente à exploração económica de um serviço (acórdão Eurawasser, já referido, n.° 66), o Tribunal de Justiça considerou que a sua assunção pelo prestador implica que o contrato celebrado com a entidade adjudicante se enquadra no conceito da concessão de serviços.

48. De acordo com a jurisprudência, o risco de exploração económica do serviço deve ser entendido como o risco de exposição a factores aleatórios do mercado (acórdãos Eurawasser, já referido, n.os 66 e 67, e Privater Rettungdienst und Krankentransport Stadler, também já referido, n.° 37), que «pode traduzir‑se pelo risco de concorrência da parte de outros operadores, o risco de inadequação entre a oferta e a procura de serviços, o risco de insolvência dos devedores do preço dos serviços prestados, o risco de falta de cobertura integral das despesas de exploração com as receitas ou ainda o risco de responsabilidade de um prejuízo ligado a um incumprimento no serviço» (acórdão já referidos Privater Rettungdienst und Krankentransport Stadler, n.° 37, que cita os acórdãos Contse e o., n.° 22, e Hans & Christophorus Oymanns, n.° 74, ).

49. Por outro lado, os riscos ligados à má gestão ou a erros de apreciação do operador económico não são, no entanto, determinantes para qualificar um contrato de contrato público ou de concessão de serviços, uma vez que se trata de riscos inerentes a qualquer contrato em geral (Privater Rettungdienst und Krankentransport Stadler, n.° 38). Por conseguinte, não são pertinentes para estes efeitos os riscos que digam respeito a variáveis cuja realidade depende exclusivamente do operador económico em questão.

50. Finalmente, para que se esteja perante uma concessão, o risco assumido pelo prestador do serviço não tem que ser «considerável em termos absolutos», mas constituir unicamente uma «parte significativa», pelo menos, do risco que, em todo o caso, a própria entidade adjudicante assumiria se ela própria prestasse o serviço em questão (17).

51. Com efeito, o Tribunal de Justiça advertiu que, nos casos em que as modalidades de direito público a que está sujeita a exploração económica e financeira do serviço reduzam ao mínimo os riscos económicos, os poderes públicos devem continuar a ter a possibilidade de assegurar a prestação de serviços através de uma concessão, se entenderem que essa figura contratual é a mais adequada para assegurar o serviço público. Por isso, não seria razoável que se criassem condições de risco económico mais elevadas do que as existentes no sector devido à regulamentação aplicável a este sector, com o único propósito de dispor de um volume de risco transferível suficiente que justifique que se qualifique juridicamente o contrato público de concessão de serviços (acórdão Eurawasser, já referido, n.os 72 a 76). Pelo contrário, aquilo que é determinante é que haja uma transferência significativa do risco inerente à exploração do serviço, qualquer que seja esse risco em termos absolutos, ou seja, esse risco considerado em si mesmo.

52. Posto isto, o Tribunal Supremo da Letónia coloca a sua primeira questão relativamente a um contrato «em que uma parte da contrapartida consiste no direito de explorar [os serviços de transporte público]» ao mesmo tempo que, por um lado, a entidade adjudicante «compensa o prestador de serviços pelas perdas de exploração» e, por outro, «as disposições de direito público que regulam a prestação do serviço e as disposições contratuais limitam o risco de exploração do serviço».

53. Como refere o órgão jurisdicional de reenvio, o prestador do serviço recebe a contrapartida da sua prestação através do pagamento efectuado por terceiros, os utilizadores do transporte. Portanto, deste ponto de vista, tratar‑se‑ia de um caso típico de concessão de serviços, à luz do artigo 1.°, n.° 2, alíneas a) e d), da Directiva 2004/17.

54. Contudo, o risco inerente à exploração económica do serviço está limitado pela legislação nacional que regula a prestação do serviço, legislação essa que, neste caso, é a LSTP; ou seja, não se trata do risco característico da prestação de um serviço em regime de liberdade absoluta de mercado. Por outro lado, mesmo nos limites do risco resultante da modalidade de direito público a que está sujeita a exploração económica e financeira do serviço, a entidade adjudicante compensa o prestador do serviço por determinadas perdas.

55. Como acabo de assinalar, o risco relevante é o que resulta da modalidade da prestação do serviço (n.os 51 e 52). É importante que esse risco concreto seja assumido de maneira significativa pelo adjudicatário pois, como também observei na nota de rodapé n.º 17, o critério do nível de risco assumido é determinante, em última análise, para além do tipo de contrapartida da prestação, para qualificar o negócio jurídico de contrato ou de concessão de serviços.

56. O órgão jurisdicional de reenvio assinala desde logo que, no presente caso, o risco de exploração do serviço não é assumido pelo adjudicatário. De facto, afirma‑se no despacho de reenvio que este nem sequer assume uma parte substancial desse risco de exploração do serviço (n.° 13 do despacho de reenvio).

57. Com efeito, da conjugação da regulamentação e do conteúdo do contrato decorre que o adjudicatário tem assegurada a compensação das seguintes perdas, ligadas à prestação do serviço: A) os custos indispensáveis para o cumprimento do contrato que superem as receitas obtidas; B) os custos gerados pela aplicação das tarifas fixadas pelo comitente; C) os custos que ficam a dever‑se ao facto de o comitente aplicar uma redução do preço do transporte a determinadas categorias de passageiros; D) as despesas ocasionadas pelo cumprimento dos requisitos mínimos de qualidade impostos depois de iniciada a prestação do serviço, se o seu cumprimento exceder o montante das despesas relativas aos requisitos de qualidade previamente estabelecidos.

58. Por outro lado, deve adicionar‑se ao montante da compensação pelas perdas que acabam de ser referidas o montante dos lucros, que será determinado através da multiplicação das receitas por uma percentagem dos lucros que será calculada acrescentando em 2,5% a taxa média do mercado interbancário europeu (EURIBOR) sobre os 12 meses do ano de referência.

59. Por outras palavras, prevê‑se a compensação tanto das perdas relativas à prestação do serviço em termos de custos de exploração como dos lucros cessantes.

60. Estes dados, fornecidos pelo Tribunal Supremo da Letónia são, em princípio, suficientemente eloquentes para permitir que o órgão jurisdicional de reenvio conclua que o negócio jurídico controvertido no processo a quo constitui um contrato de serviço. Com efeito, das disposições regulamentares e contratuais que definem o contexto e o conteúdo do negócio jurídico aqui em análise decorrem claramente, em minha opinião, elementos de apreciação suficientes para concluir, com toda a propriedade, que se trata de um verdadeiro contrato de serviços.

61. Não obstante, tanto o Governo da Letónia como a Latgales plānošanas reģions contrapõem uma série de razões para excluir que os riscos sejam assumidos pela entidade adjudicante e, portanto, para considerar que se trata de um contrato: basicamente, o elevado nível do risco da procura, a redução das verbas do Orçamento do Estado afectas à cobertura de eventuais perdas, as despesas em investimentos não recuperáveis, a ampliação ou redução de itinerários e trajectos, etc.

62. No entanto, convém recordar que não pode incumbir ao Tribunal de Justiça avaliar os diversos elementos circunstanciais apresentados na audiência pelo Governo letão e pela Latgales plānošanas reģions e menos ainda intervir na discussão sobre a natureza e o alcance das divergências pretensamente consideráveis entre as previsões de negócio aventadas no momento da adjudicação e as que efectivamente se concretizaram em consequência de uma conjuntura económica menos propícia e favorável.

63. Seja como for, dado que, em última análise, como já observei no n.° 40, é o órgão jurisdicional de reenvio que tem competência para qualificar o negócio, há que tornar claro que é o Tribunal Supremo da Letónia que tem de determinar até que ponto as circunstâncias invocadas pelo Governo letão e pela Latgales plānošanas reģions são susceptíveis de desvirtuar a conclusão à qual, no entanto, a leitura da regulamentação aplicável e das cláusulas contratuais naturalmente conduz. É o que terá de suceder especialmente pelo facto de o Tribunal Supremo da Letónia colocar a primeira das suas questões prejudiciais afirmando, por um lado, que a entidade adjudicante compensa o prestador do serviço pelas perdas resultantes da prestação e, por outro, que a regulamentação nacional aplicável ao caso e as disposições contratuais «limitam» o risco de exploração. Determinar em que medida os referidos elementos implicam que o risco relevante para efeitos da qualificação do negócio jurídico em causa é assumido por uma ou outra das partes é uma tarefa cuja competência exclusiva incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio, que é o único que se encontra em condições de apreciar a dimensão integral e completa das circunstâncias e das variáveis do caso.

64. Em conclusão, embora a qualificação do negócio jurídico controvertido seja da competência do órgão jurisdicional nacional e o Tribunal de Justiça tenha apenas de lhe fornecer uma interpretação do direito da União que possa ser útil para esse fim, as disposições regulamentares e contratuais em jogo permitem desde logo concluir que o negócio em causa apresenta as características do contrato de serviço. No entanto, atenta essa competência do órgão jurisdicional de reenvio, cabe a este determinar em que medida, uma vez analisadas as circunstâncias concretas invocadas pelas partes no processo judicial, essa conclusão não será, à luz do direito da União, a mais pertinente ou a mais adequada.

B)    Quanto à segunda questão: a aplicabilidade directa da Directiva 1992/13, na versão alterada pela Directiva 2007/66

65. Se se partir do princípio de que estamos perante um contrato de serviços, a Directiva 1992/13 é aplicável ratione materiae. Por conseguinte, a questão que se coloca neste momento consiste em saber se o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, conforme alterada pela Directiva 2007/66, era directamente aplicável na Letónia desde 20 de Dezembro de 2009, data em que expirou o prazo de transposição desta última directiva, e se, nesse caso, por força do artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b) da mesma directiva, aquela disposição era também aplicável a contratos celebrados antes de terminar o prazo de transposição.

66. Estas duas interrogações correspondem às segunda e terceira questões apresentadas pelo Tribunal Supremo da Letónia. Em minha opinião, ao contrário da argumentação apresentada pelo Governo austríaco, considero que só é possível responder à terceira questão depois de se ter respondido à segunda, na medida em que, para esclarecer se o artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13 permite que se aplique retroactivamente o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), é necessário determinar previamente se este último era imediatamente aplicável a partir de 21 de Dezembro de 2009. Só depois de se determinar se a Directiva 1992/13 era directamente aplicável a partir dessa data é que se poderá examinar se também o era a disposição que supostamente confere um certo efeito retroactivo à aplicabilidade do artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da referida directiva.

67. É pacífico entre as partes que a República da Letónia não pôs «em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à [...] Directiva [2007/66/CE] até 20 de Dezembro de 2009» como preceituava o artigo 3.°, n.° 1, da Directiva 2007/66. A transposição desta directiva para o direito interno só produziu efeitos a partir de 15 de Junho de 2010, pelo que a primeira questão a resolver consiste em saber se, apesar de não ter sido objecto de transposição no período compreendido entre 21 de Dezembro de 2009 e 14 de Junho de 2010, o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da directiva era directamente aplicável na República da Letónia, artigo que impõe aos Estados‑Membros a obrigação de assegurar que, nos casos em que o efeito suspensivo dos recursos interpostos de decisões de adjudicação de um contrato de serviços não seja respeitado, «o contrato seja considerado desprovido de efeitos por uma instância de recurso independente da entidade adjudicante ou que a não produção de efeitos do contrato resulte de uma decisão dessa instância de recurso».

68. Ter terminado o prazo fixado para a transposição de uma directiva, ou a sua transposição defeituosa, é apenas uma das condições exigidas pela jurisprudência para analisar a possibilidade de aplicar directamente uma directiva que não foi transposta (v. acórdão de 6 de Maio de 1980, Comissão/Bélgica, 102/79, Recueil, p. 1473, n.° 12). A esta condição deve acrescentar‑se, por um lado, a da atribuição aos particulares de direitos subjectivos susceptíveis de serem invocados nos tribunais (acórdão de 19 de Janeiro de 1982, Ursula Becker, 8/81, Recueil, p. 3301, n.° 25) e finalmente, por outro, a condição de que as suas disposições sejam incondicionais e suficientemente precisas (v., recentemente, acórdão de 12 de Maio de 2011, Bund für Umwelt und Naturschutz Deutschland, Landesverband Nordrhein‑Westfalen eV, C‑115/09, ainda não publicado na Colectânea, n.° 54) (18).

69. Não havendo dúvidas de que no processo que deu origem à questão prejudicial submetida no presente processo está preenchida a primeira dessas condições, também não há dúvidas de que a segunda condição está igualmente preenchida, uma vez que a obrigação imposta aos Estados‑Membros pelo artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, se traduz necessariamente no direito de os particulares obterem a garantia da eficácia dos recursos que puderem interpor das decisões de adjudicação de um contrato público de serviços. Enquanto obrigação imposta aos Estados‑Membros com o objectivo de melhorar a «eficácia do recurso no que respeita à adjudicação de contratos [públicos]», como refere o considerando 34 da Directiva 2007/66, é claro que se trata de uma garantia ao serviço do direito dos cidadãos à protecção jurisdicional efectiva no domínio da contratação pública.

70. Esta estreita relação entre o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13 e o direito à protecção jurisdicional conduz a que se questione se, na realidade, como chegou a ser perguntado na audiência, tratando‑se da eficácia de um direito oponível aos Estados‑Membros que se baseia no direito primário da União, o direito de interpor o recurso pretendido pelas partes no processo a quo lhes deveria ter sido reconhecido em qualquer circunstância. Também, por conseguinte, à margem da própria directiva e, desde logo, de qualquer legislação nacional de transposição. Considero que, em princípio, a resposta deve ser afirmativa, embora o direito de interpor recurso seja um direito de natureza tipicamente prestacional que, para o seu exercício efectivo, torna inevitável a intervenção do legislador. Este entendimento leva‑me a examinar o grau desta intervenção no presente caso (19).

71. Com efeito, no que se refere à terceira condição necessária para a aplicabilidade directa de uma directiva que não foi transposta dentro do prazo, ou seja, relativa ao carácter incondicional e suficiente do conteúdo normativo do artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 2007/66, há que concordar com a Comissão quando afirma que a disposição analisada é substancialmente idêntica às disposições do artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/665/CEE (20), que o acórdão de 2 de Junho de 2005, Koppensteiner (C‑15/04, Colect., p. I‑4855, n.° 38) qualificou de «incondicionais e suficientemente precisas para fundamentar um direito de um particular».

72. Com efeito, o artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Directiva 89/665 impõe aos Estados‑Membros a obrigação de velar por que as medidas tomadas para os efeitos dos recursos em matéria de adjudicação de contratos de direito público de fornecimentos e de obras prevejam os poderes que permitam anular ou fazer anular as decisões ilegais. Decisões que, nos termos do artigo 1.°, n.° 1, da mesma directiva, devem poder ser objecto de recursos eficazes e rápidos, nas condições previstas na própria directiva.

73. Se estas disposições da Directiva 89/665 foram consideradas «incondicionais e suficientemente precisas», não o serão menos, com excepção do que a seguir se exporá, as disposições constantes do artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, uma vez que nelas se estabelecem com perfeita precisão as condições em que uma instância de recurso independente deve considerar que contrato não produz efeitos, a saber, no que ao presente caso interessa: A) em primeiro lugar, que seja declarada a violação do artigo 1.°, n.º 5, do artigo 2.º, n.° 3, ou ao artigo 2.°‑A, n.º 2, da directiva, disposições que obrigam à observância de determinados prazos de suspensão durante o procedimento de adjudicação. B) Em segundo lugar, que a violação tenha privado o proponente que interpôs recurso da possibilidade de pôr em prática as vias de impugnação pré‑contratuais. C) Além disso, que a violação dessas disposições esteja conjugada com uma violação da Directiva 2004/18. D) Por último, que essa violação tenha afectado as possibilidades de o contrato ser adjudicado ao proponente que interpôs recurso.

74. No entanto, há com efeito um ponto no qual a Directiva 1992/13 padece da falta de precisão assinalada pelo Governo austríaco, trata‑se da parte em que nela não é indicada a «instância de recurso independente da entidade adjudicante» que deve pronunciar‑se sobre a eficácia do contrato. Nesse aspecto, falta assim a intervenção mínima necessária do legislador a que me referi no n.° 71, quando referi que a natureza prestacional do direito de recurso torna inevitável o concurso do direito nacional.

75. Contudo, essa observação não deve levar a excluir que o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13 não se deva considerar como sendo directamente aplicável na República da Letónia desde 21 de Dezembro de 2009. Isto porque, como salienta com razão o próprio Governo austríaco, a obrigação de interpretar o direito nacional em conformidade com o direito da União, conjugada com a obrigação de proteger eficazmente os direitos dos cidadãos, deve levar o órgão jurisdicional de reenvio a verificar, na linha da solução adoptada no acórdão de 17 de Setembro de 1997, Dorsch Consult Ingenieurgesellschaft (C‑54/96, Colect., p. I‑4961), se, de acordo com as regras internas aplicáveis em matéria de competência jurisdicional, é possível identificar uma instância jurisdicional competente para conhecer dos recursos a que a Directiva 1992/13 se refere. E isto quer por se tratar de uma instância à qual já incumbe, nos termos do direito nacional, fiscalizar os procedimentos de adjudicação de contratos públicos, quer por eventualmente determinados mecanismos residuais de atribuição de competências estarem já a funcionar (21).

C)    Quanto à terceira questão prejudicial: a eventual retroactividade da Directiva 1992/13

76. Uma vez chegados à conclusão de que o artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13, conforme alterada pela Directiva 2007/66, pode ser aplicável na República da Letónia desde a data em que expirou o prazo fixado para a sua transposição, há ainda que determinar se o prazo de seis meses posteriores à data de celebração do contrato, estabelecida no artigo 2.°‑F, n.° 1, alínea b), da mesma Directiva 1992/13 como limite para interposição do recurso contemplado nesse artigo é aplicável a um caso como o do processo principal. Por outras palavras, trata‑se de saber se a possibilidade de interpor recurso ao abrigo da Directiva 1992/13 é extensível aos contratos celebrados durante os seis meses anteriores à data em que a directiva começou a ser directamente aplicável. Nessa hipótese, a directiva aplicar‑se‑ia ao presente caso, uma vez que o contrato controvertido foi celebrado em 9 de Outubro de 2009.

77. Em minha opinião, e em princípio, é admissível que, no interesse de uma maior eficácia da directiva, se possa defender a sua aplicação a todos os contratos celebrados nos seis meses anteriores à data fixada como limite para a sua transposição. Entre outras razões, porque deste modo se evitaria o risco de possíveis contratos celebrados apressadamente com o objectivo de evitar a sua aplicação e se impediria também a consolidação no tempo de uma situação jurídica propícia à ineficácia do exercício do direito à protecção jurisdicional dos cidadãos. Nesse sentido aponta, aliás, o espírito da jurisprudência do Tribunal de Justiça constante do acórdão de 18 de Dezembro de 1997, Inter‑Environnement Wallonia (C‑129/96, Colect., p. I‑7411), invocada pela Norma‑A e pela Dekom, no sentido de que os Estados‑Membros estão obrigados, durante o prazo fixado para a transposição de uma directiva para o seu direito interno, a não comprometer a realização dos objectivos prosseguidos por essa directiva.

78. No entanto, independentemente do facto de não se poder ignorar o prejuízo que todas as operações de aplicação retroactiva do direito implicam para a segurança jurídica, a estrutura e o conteúdo da directiva tornam impossível essa retroactividade, para além do facto de na directiva não se fazer referência explícita a qualquer efeito retroactivo.

79. Os únicos contratos que podem ser impugnados ao abrigo da Directiva 1991/13 são aqueles que tenham sido celebrados no quadro jurídico definido pela própria directiva, uma vez que os fundamentos da sua impugnação têm de figurar entre as condições impostas na directiva para o procedimento de adjudicação. Por conseguinte, nenhum dos contratos celebrados antes da data de entrada em vigor da directiva pôde ser efectuado ao abrigo dos requisitos processuais nela previstos e, em particular, dos prazos de suspensão cuja violação é sancionada no artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b).

80. Por conseguinte, não teria sentido admitir retroactivamente um recurso que só se poderia basear no incumprimento de requisitos que não eram exigíveis no momento em que foi aperfeiçoado o objecto do recurso.

VII - Conclusão

81. Atentas as considerações precedentes, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às questões apresentadas pelo Tribunal Supremo da Letónia nos seguintes termos:

«1) O artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17/CE deve ser interpretado no sentido de que, para os respectivos efeitos, deve considerar‑se que em princípio consubstancia um contrato de serviços públicos o contrato nos termos do qual o adjudicatário obtém, como uma parte da contrapartida, o direito de explorar serviços de transporte público, sendo compensado pela entidade adjudicante pelas perdas decorrentes do resultado da prestação de serviços e no qual as disposições de direito público que regulam a prestação do serviço e as disposições contratuais limitam o risco de exploração do serviço. Seja como for, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar até que ponto as circunstâncias do caso impõem uma qualificação diferente à luz do direito da União.

2) O artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 19912/13/CEE, conforme alterada pela Directiva 2007/66/CE, pode ser directamente aplicável na República da Letónia desde 21 de Dezembro de 2009, sob reserva da existência de uma instância competente para conhecer dos recursos a que aquela directiva se refere, facto que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio determinar.

3) O artigo 2.°‑D, n.° 1, alínea b), da Directiva 1992/13/CEE deve ser interpretado no sentido de que não é aplicável aos contratos públicos que foram celebrados antes de terminar o prazo de transposição da Directiva 2007/66/CE para o direito interno.»


____________________________________________________

(1) Língua original: espanhol.
(2) JO L 134, p. 114.
(3) JO L 134, p. 1.
(4) A Directiva 2004/18 unifica, numa espécie de código único, as regulações sectoriais contidas nas Directivas 1993/36/CE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento (JO L 199, p. 1), 1993/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54) e 1992/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), enquanto que a Directiva 2004/17 fez o mesmo através das disposições incluídas nas Directivas 1993/38/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações (JO L 199, p. 84).
(5) Como é sabido, as noções relativas às categorias definidas pela Directiva 2004/17, são extensíveis, devido à sua semelhança aos n.os 2 e 4 do artigo 1.°, da Directiva 2004/18. Neste sentido, v. acórdão de 10 de Setembro de 2009, Eurawasser (C‑206/08, Colect., p. I‑8377, n.° 43). Sobre a génese das duas directivas, v. as edições respectivas de Jan M. Hebly European Public Procurement: Legislative History of the «Utilities» Directive 2004/17/EC, Wolters Kluwer, Alphen aan den Rijn, 2008, e European Public Procurement: Legislative History of the «Classic» Directive 2004/18/EC, Wolters Kluwer, Alphen aan den Rijn, 2007.
(6) JO L 76, p. 14.
(7) JO L 335, p. 31.
(8) Latvijas Vēstnesis n.° 61, de 24 de Maio de 1994, p. 192.
(9) Latvijas Vēstnesis n.° 107, de 9 de Julho de 2009, p. 4093, em vigor desde 1 de Outubro de 2009. Até 30 de Setembro de 2009 esteve em vigor a Koncesiju likums (Lei relativa às concessões), cujo artigo 1.°, n.° 2, definia a concessão como «a cessão, no âmbito de um contrato de concessão celebrado entre concedente e concessionário, por tempo determinado, do direito de prestar serviços ou do direitos exclusivo de explorar os recursos da concessão».
(10) Latvijas Vēstnesis n.° 106, de 4 de Julho de 2007, p. 3682.
(11) Latvijas Vēstnesis n.° 183, de 20 de Novembro de 2009, p. 4169. Em vigor desde 21 de Novembro de 2009, substituiu o Decreto n.° 672 do Conselho de Ministros, de 2 de Outubro de 2007 (Latvijas Vēstnesis n.° 175, de 31 de Outubro de 2007, p. 3751).
(12) Organismo que, entretanto, sucedeu nas suas funções ao referido Conselho distrital embora, aparentemente, as duas instituições tenham coexistido durante algum tempo.
(13) Entidade que substituiu a Ludzas novada pašvaldība (Administração Autónoma do Distrito de Ludza), como parte demandada no processo principal.
(14) Conclusões de 9 de Setembro de 2010 (n.° 25, nota de rodapé 14).
(15) Por exemplo, acórdãos de 6 de Abril de 2006, ANAV (C‑410/04, Colect., p. I‑3303, n.° 16), e de 13 de Novembro de 2008, Coditel Brabant (C‑324/07, Colect., p. I‑8457, n.° 24).
(16) Acórdãos de 27 de Outubro de 2005, Contse e o. (C‑234/03, Colect., p. I‑9315), de 18 de Julho de 2007, Comissão/Itália (C‑382/05, Colect. p. I‑6657), e de 11 de Junho de 2009, Hans & Christophorus Oymanns (C‑300/07, Colect., p. I‑4779). Entre esses critérios figuram o da delegação da responsabilidade pelos prejuízos sofridos devido a uma eventual irregularidade na prestação do serviço ou o da existência de uma certa liberdade económica para determinar as condições de exploração do serviço.
(17) A título incidental, em minha opinião é aqui que adquire relevância o facto de, nos termos do artigo 1.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 2004/17, a contrapartida de uma concessão de serviços poder consistir ou unicamente no direito explorar o serviço ou no referido direito «acompanhado de um pagamento». A conjugação destas duas componentes na contrapartida por um serviço que, juridicamente, só pode ser um contrato ou uma concessão deve levar a ponderar o peso específico de cada uma delas. Em minha opinião, nesta operação não pode haver outro critério que não seja o do grau de risco efectivamente assumido pelo prestador do serviço, devendo atender‑se para a sua determinação à medida em que o pagamento que acompanha o risco de exploração implica uma redução significativa do risco inerente à actividade empresarial.
(18) Na doutrina, v. K. Lenaerts e P. van Nuffel, European Union Law, Sweet & Maxwell, 3.ª ed., Londres, 2011 (22‑080 e segs.).
(19) Sem que seja necessário abordar, nesta sede, a questão da existência de um direito à protecção jurisdicional que, como elemento constitutivo do património da União enquanto comunidade de direito, constitui a pedra angular de todo o edifício da ordem jurídica comunitária, não se pode todavia ignorar que a Directiva 1992/13 já garantia na sua versão original o direito de impugnar as decisões adoptadas pelas entidades adjudicantes, tendo a Directiva 2007/66 vindo melhorar a eficácia dos processos de recurso já existentes em matéria de adjudicação de contratos públicos. Questão diferente é o ter‑se procurado atingir essa melhoria através da estatuição de sanções das quais resulta a ineficácia do contrato em determinadas circunstâncias, indo assim além do simples reconhecimento de um direito a indemnização. Com efeito, há que ter em conta que a reparação compensatória da violação de um direito constitui uma, embora de carácter «secundário», forma legítima de protecção jurisdicional. A este respeito, v. Wilfried Erbguth, «Primär‑ und Sekundärrechtsschutz im öffentlichen Recht», in Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer, vol. 61, Berlim, 2002, pp. 221 e segs.
(20) Directiva 1989/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras de fornecimentos (JO L 395, p. 33).
(21) Note‑se, a este respeito, que de acordo com as alegações da Norma‑A e da Dekom (pp. 6 e 7 da versão francesa), existe desde 1 de Fevereiro de 2004 na República da Letónia uma jurisdição administrativa à qual o artigo 184.° do Código do Procedimento Administrativo atribui competência para conhecer dos recursos relativos à validade dos contratos de Direito Público.