Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 22 de Dezembro de 2010 (proc. C-215/09)

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

22 de Dezembro de 2010 (*)

  

«Contratos públicos de serviços - Directiva 2004/18/CE - Contrato misto - Contrato celebrado entre uma entidade adjudicante e uma sociedade privada independente dela - Criação, com participações iguais, de uma empresa comum que presta serviços de saúde - Compromisso dos sócios de adquirirem à empresa comum, durante um período transitório de quatro anos, os serviços de saúde que devem proporcionar aos seus empregados»

 

No processo C‑215/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo markkinaoikeus (Finlândia), por decisão de 12 de Junho de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 15 de Junho de 2009, no processo

Mehiläinen Oy,
Terveystalo Healthcare Oy, anteriormente Suomen Terveystalo Oyj,
contra
Oulun kaupunki, 

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, E. Juhász (relator), G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: N. Nanchev, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 17 de Junho de 2010,

vistas as observações apresentadas:
─ em representação da Mehiläinen Oy e da Terveystalo Healthcare Oy (anteriormente Suomen Terveystalo Oyj), por A. Laine e A. Kuusniemi‑Laine, asianajaja,
─ em representação do Oulun kaupunki, por S. Rasinkangas e I. Korpinen, asianajaja,
─ em representação do Governo finlandês, por A. Guimaraes‑Purokoski e M. Pere, na qualidade de agentes,
─ em representação do Governo checo, por M. Smolek, na qualidade de agente,
─ em representação da Comissão Europeia, por E. Paasivirta, C. Zadra e D. Kukovec, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação das disposições pertinentes, face às circunstâncias do processo principal, da Directiva2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L134, p.114).

2. Este pedido foi apresentado no decurso de um litígio que opõe a Mehiläinen Oy e a Terveystalo Healthcare Oy, anteriormente Suomen Terveystalo Oyj, sociedades anónimas de direito finlandês, ao Oulun kaupunki (município de Oulu), quanto à qualificação jurídica, do ponto de vista das regras da União em matéria de contratos públicos de serviços, de um contrato celebrado entre o Oulun kaupunki e a ODL Terveys Oy, sociedade privada independente daquele município (a seguir «sócio privado»), para a criação de uma empresa comum, a ODL Oulun Työterveys Oy (a seguir «empresa comum»).

Quadro jurídico

Regulamentação da União

3. Segundo as definições constantes do artigo 1.°, n.°2, da Directiva 2004/18:

«a) 'Contratos públicos' são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objecto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na acepção da presente directiva.

[...]

d) 'Contratos públicos de serviços' são contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II.

[...]»

4. O artigo 2.° desta directiva, intitulado «Princípios de adjudicação dos contratos», prevê:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente».

5. Nos termos do artigo 7.° da mesma directiva, intitulado «Montantes dos limiares para contratos públicos», tal como adaptado pelo Regulamento (CE) n.°1422/2007 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2007, que altera as Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativamente aos limiares de valor aplicáveis nos processos de adjudicação dos contratos (JO L317, p.34), a Directiva 2004/18 aplica‑se aos contratos públicos de serviços celebrados pelas entidades adjudicantes diferentes das autoridades do governo central, cujo valor estimado, sem imposto sobre o valor acrescentado (IVA), seja igual ou superior a 206000 euros.

6. Nos termos do anexo II B da Directiva 2004/18, os serviços de saúde estão abrangidos pela rubrica 25 desse anexo, intitulada «Serviços de saúde e de carácter social».

7. Nos termos do artigo 21.° desta directiva:

«Os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao artigo 23.° e ao n.° 4 do artigo 35.°».

8. O artigo 23.° da Directiva 2004/18, que faz parte do seu capítulo IV, intitulado «Regras específicas relativas ao caderno de encargos e aos documentos do concurso», refere‑se às especificações técnicas que devem constar dos documentos do concurso, e o artigo 35.°, n.°4, da mesma directiva, que faz parte do seu capítulo VI, intitulado «Regras de publicidade e de transparência», refere‑se aos deveres de informação das entidades adjudicantes relativamente aos resultados do procedimento de adjudicação.

Legislação nacional

9. A Lei finlandesa 1383/2001 relativa à protecção da saúde no trabalho (Työterveyshuoltolaki) impõe aos empregadores públicos e privados o dever de velarem pela saúde dos seus empregados no trabalho.

10. Segundo o artigo 3.°, n.°1, desta lei, a protecção da saúde no trabalho é a actividade desenvolvida sob a responsabilidade do empregador, pela qual profissionais e peritos da saúde no trabalho asseguram a prevenção das doenças e acidentes ligados ao trabalho, velam por que o posto de trabalho não ponha em risco a saúde e a segurança dos empregados, promovem um ambiente de trabalho adequado, asseguram o bom funcionamento do colectivo dos trabalhadores e a saúde, a eficácia e a capacidade de trabalho dos trabalhadores.

11. Nos termos do artigo 4.°, primeiro parágrafo, da referida lei, o empregador deve organizar, a expensas suas, um serviço de protecção da saúde no trabalho, a fim de prevenir e combater as ameaças à saúde e os riscos de doença devidos ao trabalho e às condições de trabalho assim como proteger e garantir a segurança, a capacidade de trabalho e a saúde dos trabalhadores.

12. Nos termos do artigo 7.° da Lei 1383/2001, a entidade patronal pode organizar os serviços de protecção da saúde no trabalho para efeitos dessa lei, adquirindo as prestações necessárias a um «centro de saúde» nos termos da Lei 66/1972 relativa à saúde pública (kansanterveyslaki), organizando ela própria ou com outras entidades patronais os serviços de que necessita ou adquirindo os serviços em questão a uma pessoa ou a uma entidade habilitada para o efeito.

13. De acordo com o artigo 87a, n.°1, da Lei finlandesa 365/1995 relativa aos municípios (Kuntalaki), conforme alterada pela Lei 519/2007, que entrou em vigor em 15 de Maio de 2007, um município ou uma associação de municípios podem criar uma empresa municipal para exercer uma actividade económica, ou realizar uma determinada missão que deva ser executada de acordo com princípios de gestão empresarial. As empresas municipais não têm personalidade jurídica, estando organicamente integradas no município e as suas actividades estão sujeitas às normas relativas à actividade do município.

14. A Directiva 2004/18 foi transposta para o direito finlandês pela Lei 348/2007 relativa à adjudicação de contratos públicos (Hankintalaki), cujo artigo 5.°, n.°1, contém uma definição do conceito de «contrato público» correspondente à definição constante do artigo 1.°, n.°2, alínea a), desta directiva.

15. Nos trabalhos preparatórios da lei relativa à adjudicação de contratos públicos (proposta de lei do Governo n.°50/2006 vp), afirma‑se que um contrato público é, em geral, um contrato de direito privado entre duas pessoas jurídicas distintas. Por conseguinte, os contratos no interior de uma organização não devem, em geral, ser considerados contratos públicos. Um contrato não deve ser considerado um contrato público quando a sua principal finalidade é diferente da adjudicação de serviços, obras ou fornecimentos. Importa verificar, designadamente, se o regime ou o complexo contratual constituem uma unidade indissociável, da qual não é possível separar a adjudicação.

16. De acordo com o seu artigo 10.°, esta lei não é aplicável às adjudicações que a entidade adjudicante atribua a um organismo distinto dela no plano formal e autónomo no plano decisório, mas sobre o qual exerça, sozinha ou em conjunto com outras entidades adjudicantes, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços, e que realize o essencial da sua actividade para as entidades adjudicantes. Esta disposição corresponde à adaptação da legislação nacional à jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdão de 18 de Novembro de 1999, Teckal, C‑107/98, Colect., p.I‑8121, n.°50).

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

17. O conselho municipal de Oulun kaupunki decidiu criar, em 21 de Abril de 2008, com um sócio privado, a empresa comum, que seria regida pela Lei 624/2006 sobre as sociedades anónimas e iniciaria as suas actividades em 1 de Junho de 2008. O capital da empresa comum seria repartido em partes iguais entre os dois sócios e a sua gestão seria conjunta.

18. A actividade da empresa deveria consistir em fornecer prestações de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho e os dois sócios tinham a intenção de orientar essa actividade, principalmente e de modo progressivo, para uma clientela privada. Todavia, durante um período transitório de quatro anos (a seguir «período transitório»), comprometeram‑se a adquirir à empresa comum os serviços de saúde que, na qualidade de empregadores, devem proporcionar aos seus empregados, nos termos da legislação nacional.

19. Segundo o Oulun kaupunki, o volume de negócios esperado da empresa comum devia atingir 90 milhões de euros no período transitório, dos quais 18 milhões de euros representavam o valor dos serviços que este município deveria fornecer aos seus empregados.

20. Os dois sócios deveriam transferir para a empresa comum, sob a forma de entradas em espécie, as unidades funcionais que, nos seus próprios serviços, estavam encarregadas de prestar serviços de saúde no trabalho aos seus empregados, nos termos da legislação nacional aplicável. Assim, o Oulun kaupunki transferiu para a empresa comum a empresa municipal Oulun Työterveys (a seguir «empresa municipal»), encarregada da prestação de serviços de saúde no trabalho, cujo valor se situava entre 2,5 e 3,4 milhões de euros, enquanto o sócio privado transferiu a sua unidade equivalente, cujo valor foi estimado entre 2,2 e 3 milhões de euros.

21. Segundo o Oulun kaupunki, as prestações de saúde no trabalho fornecidas aos empregados do município representam cerca de 38% do volume de negócios da empresa municipal. O restante desse volume de negócios é realizado com prestações fornecidas a uma clientela privada.

22. Na acta do conselho municipal do Oulun kaupunki que culminou com a tomada de decisão de 21 de Abril de 2008, pode ler‑se o seguinte:

«As partes concordaram, além disso, em adquirir à [empresa comum] prestações de saúde e de bem‑estar no trabalho, durante um período transitório de quatro anos. O Oulun kaupunki adquirirá o mesmo volume de prestações de saúde e de bem‑estar no trabalho que adquire à empresa municipal [...]. A lei [relativa à adjudicação de contratos públicos] impõe que o Oulun kaupunki lance um concurso público para as suas prestações de saúde no trabalho quando estas prestações forem transferidas para a [empresa comum]. As razões seguintes justificam, porém, que o Oulun kaupunki continue a ser cliente da [empresa comum] durante o período transitório:
─ A situação dos empregados municipais transferidos fica, assim, garantida;
─ O contrato actual do Oulun kaupunki é vantajoso e concorrencial;
─ A [empresa comum] inicia a sua actividade em condições favoráveis.»

23. Nos termos dessa acta, o Oulun kaupunki assinou com o sócio privado, em 24 de Abril de 2008, um pacto segundo o qual se obrigou a confiar à futura empresa comum o encargo de fornecer os serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho aos empregados do município, durante o período transitório. No termo do período transitório, o Oulun kaupunki, segundo afirma, tinha a intenção de adjudicar a prestação desses serviços através de um processo de concurso público.

24. Resulta, assim, da referida acta que o Oulun kaupunki, na qualidade de entidade adjudicante, não abriu concurso para adjudicação dos serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho que devia proporcionar aos seus empregados, em conformidade com a legislação nacional, durante o período transitório. Também está assente que a escolha do sócio privado não foi feita com o recurso a um processo de abertura à concorrência.

25. O órgão jurisdicional de reenvio, para o qual interpuseram recurso as empresas concorrentes interessadas no fornecimento de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho aos empregados do Oulun kaupunki, proibiu este município, sob pena de coima de 200000euros, de aplicar, seja de que forma for, a decisão do conselho municipal de 21 de Abril de 2008, na parte em que esta decisão se refere à aquisição, pelo Oulun kaupunki, à empresa comum, de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho para os seus empregados. Enquanto aguardava a decisão definitiva do tribunal, o Oulun kaupunki decidiu, em 26 de Agosto de 2008, transferir para a empresa comum as actividades da empresa municipal, excluindo, porém, da transferência as prestações de serviços de saúde no trabalho aos seus empregados.

26. Tendo em conta os argumentos contrastantes invocados pelas partes no processo principal no que respeita à natureza da operação controvertida à luz do direito da União em matéria de contratos públicos, o markkinaoikeus decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Um regime ao abrigo do qual uma entidade adjudicante municipal celebra com uma empresa privada independente dela, que tem a forma de uma sociedade, um contrato de constituição de uma nova empresa, que tem a forma de uma sociedade anónima, na qual ambas detêm participações e direitos de decisão idênticos, obrigando‑se, no momento da respectiva constituição, a adquirir para os seus trabalhadores os serviços no domínio da saúde e do bem‑estar no local de trabalho que essa sociedade prestará, constitui, considerado no seu todo, um regime que exige o lançamento de um concurso, pelo facto de se tratar da adjudicação de um contrato público de serviços na acepção da Directiva 2004/18[...] ou trata‑se da constituição de uma empresa comum e da transferência da actividade de uma empresa municipal, à qual a referida directiva e [a] obrigação dela decorrente de lançar um concurso não se aplicam?

2) No presente caso é igualmente relevante que

a) o município de Oulun, enquanto entidade adjudicante municipal, se tenha comprometido a adquirir os serviços acima referidos a título oneroso durante um período transitório de quatro anos, após o qual pretende, de acordo com a sua decisão, lançar um novo concurso para adjudicar os serviços de promoção da saúde no trabalho de que necessita?

b) antes do regime controvertido, o volume de negócios da empresa municipal, que estava organicamente integrada na cidade de Oulun, resultasse em grande medida de prestações de serviços diferentes dos da prestação de serviços de saúde no trabalho aos trabalhadores da cidade?

c) a nova empresa seja constituída com a transferência para ela, como entrada em espécie, da actividade da empresa municipal, que consiste na prestação de serviços de saúde no trabalho quer aos trabalhadores da cidade quer a clientes privados?».

Quanto às questões prejudiciais

27. Com as suas duas questões prejudiciais, que devem ser apreciadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Directiva 2004/18 deve ser interpretada no sentido de que se aplica a um acordo no qual uma entidade adjudicante celebra um contrato com uma entidade privada independente dela, para criação de uma empresa comum, sob a forma de sociedade anónima, perante a qual aquela entidade adjudicante se obriga, no momento da criação, a adquirir‑lhe os serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho que está obrigada a fornecer aos seus empregados.

28. Resulta da redacção das questões e do contexto em que as mesmas se inscrevem que as dúvidas do órgão jurisdicional de reenvio têm a ver especialmente com a prestação, por essa empresa comum, ao Oulun kaupunki, de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho destinados aos empregados desse município, correspondendo essa prestação ao compromisso assumido pelo referido município de, durante um período transitório de quatro anos, adquirir tais serviços a essa empresa comum, que anteriormente lhe eram prestados por uma empresa municipal organicamente ligada a ele.

29. Importa sublinhar liminarmente que é incontroverso, no processo principal, que o Oulun kaupunki tem a qualidade de entidade adjudicante, na acepção do artigo 1.°, n.°9, da Directiva 2004/18, e que os serviços em questão estão abrangidos pelo conceito de «serviços de saúde [...]», a que se refere a categoria 25 do anexo IIB da referida directiva. O compromisso assumido pelo Oulun kaupunki, de adquirir os serviços em questão para os seus empregados à empresa comum, implica a existência de um contrato oneroso entre o referido município e essa empresa. Além disso, decorre das outras informações fornecidas pelo tribunal de reenvio que o valor estimado desse contrato, da ordem dos 18 milhões de euros, excede o limiar de aplicação pertinente da Directiva 2004/18.

30. Deve também anotar‑se que a Directiva 2004/18 não faz distinção entre os concursos realizados por uma entidade adjudicante para cumprir a sua missão de satisfazer necessidades de interesse geral e os que não têm que ver com essa missão, como, no caso concreto, a necessidade de cumprir uma obrigação que lhe incumbe como empregador em relação aos seus empregados (v., nomeadamente, acórdão de 15 de Julho de 2010, Comissão/Alemanha, C‑271/08, ainda não publicado na Colectânea, n.°73 e jurisprudência citada).

31. Feitas estas precisões, deve anotar‑se que uma autoridade pública pode desempenhar as missões de interesse público que lhe incumbem, através dos seus próprios meios, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas que não pertençam aos seus serviços, e que também pode fazê‑lo em colaboração com outras autoridades públicas (acórdão de 9 de Junho de 2009, Comissão/Alemanha, C‑480/06, Colect., p.I‑4747, n.°45). Do mesmo modo, como foi afirmado no n.°1 da Comunicação interpretativa da Comissão sobre a aplicação do direito comunitário em matéria de contratos públicos e de concessões às parcerias público‑privadas institucionalizadas (PPPI) (JO2008, C91, p.4), essa autoridade tem a faculdade de exercer ela própria uma actividade económica ou de a confiar a terceiros, por exemplo, a uma sociedade de capital misto criada no quadro de uma parceria público‑privada.

32. Além disso, é verdade que a aplicação do direito da União em matéria de contratos públicos está excluída se o controlo exercido pela entidade adjudicante sobre a adjudicatária for análogo ao que a referida entidade adjudicante exerce sobre os seus próprios serviços e se, simultaneamente, a mesma adjudicatária realizar o essencial da sua actividade com a entidade adjudicante que a controla (v. acórdão Teckal, já referido, n.°50). Todavia, a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade na qual também participa uma entidade adjudicante exclui que esta entidade adjudicante possa exercer sobre essa sociedade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços (v., nomeadamente, acórdãos de 10 de Setembro de 2009, Sea, C‑573/07, Colect., p.I‑8127, n.°46, e de 15 de Outubro de 2009, Acoset, C‑196/08, Colect., p.I‑9913, n.°53).

33. No que respeita, mais precisamente, à dúvida do tribunal de reenvio sobre a questão de saber se o compromisso do Oulun kaupunki, de adquirir, durante o período transitório, à empresa comum, os serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho que deve proporcionar aos seus empregados, escapa ou não à aplicação das regras da Directiva 2004/18, pelo facto de esse compromisso fazer parte do contrato para a criação da empresa comum, deve observar‑se que a criação, por uma entidade adjudicante e por um empresário privado, de uma empresa comum não é abrangida, em si mesma, pela Directiva 2004/18. Isto é, aliás, recordado no n.°66 do «Livro Verde» da Comissão sobre as parcerias público‑privadas e o direito comunitário em matéria de contratos públicos e concessões [COM(2004)327final].

34. No entanto, deve observar‑se que, como resulta do n.°69 do referido «Livro Verde», é preciso que se confirme que uma operação de capital não oculta, na realidade, a adjudicação, a um parceiro privado, de contratos que podem ser qualificados como contratos públicos ou concessões. Por outro lado, como é salientado no ponto 2.1 da Comunicação interpretativa da Comissão, acima mencionada, o facto de uma entidade privada e de uma entidade adjudicante cooperarem no âmbito de uma entidade de capital misto não pode justificar o incumprimento das disposições aplicáveis aos contratos públicos na adjudicação desse contrato a essa entidade privada ou à entidade de capital misto (v., neste sentido, acórdão Acoset, já referido, n.°57).

35. Atendendo a estas considerações gerais, deve averiguar‑se se e em que medida a Directiva 2004/18 pode ter aplicação no contexto do processo principal.

36. A este propósito, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no caso de um contrato misto cujas diferentes partes estão inseparavelmente ligadas, formando, assim, um todo indivisível, este contrato deve ser examinado no seu todo, de modo unitário, para efeitos da sua qualificação jurídica à luz das regras em matéria de contratos públicos, e deve ser apreciado com base nas normas que regulam a parte que constitui o objecto principal ou o elemento preponderante do contrato (acórdão de 6 de Maio de 2010, Club Hotel Loutraki e o., C‑145/08 e C‑149/08, ainda não publicado na Colectânea, n.os 48 e 49 e jurisprudência citada).

37. Resulta do exposto que, para aplicação da Directiva 2004/18, se deve verificar se a parte constituída pelos serviços de saúde destinados aos empregados do município de Oulun kaupunki, que, em princípio, está sujeita à aplicação desta directiva, é separável do contrato.

38. A este propósito, deve tomar‑se como referência a acta da reunião do conselho municipal do Oulun kaupunki, de 21 de Abril de 2008, onde se expõem as razões do compromisso assumido por este município no momento da criação da empresa comum. Além disso, resulta das explicações fornecidas pelo Oulun kaupunki na audiência que o município considera esta parte do contrato inseparável, pelo facto de o valor do compromisso de adquirir serviços de saúde à empresa comum, durante o período transitório, fazer parte da sua entrada em espécie para o capital dessa empresa e de esta entrada em espécie constituir, do ponto de vista económico, uma condição da criação da mesma.

39. Importa sublinhar que as intenções expressas ou presumidas dos contratantes, de considerar as diferentes partes componentes de um contrato misto como inseparáveis, não são suficientes, devendo apoiar‑se em elementos objectivos susceptíveis de as justificar e de servir de fundamento à necessidade de celebrar um único contrato.

40. No que respeita ao argumento do Oulun kaupunki de que a situação dos empregados municipais transferidos para a empresa comum ficaria garantida por efeito do compromisso assumido, deve observar‑se que essa garantia também podia ser assegurada num concurso para adjudicação de um contrato, em conformidade com os princípios da não discriminação e da transparência, no qual a exigência dessa garantia fizesse parte das condições a respeitar para a adjudicação desse contrato.

41. Quanto aos argumentos do Oulun kaupunki de que «o contrato actual será vantajoso e concorrencial» e que, com o referido compromisso, «a empresa comum iniciará as suas actividades em condições favoráveis», deve anotar‑se que, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a atribuição de um contrato público a uma empresa de economia mista, sem concurso, seria contrária ao objectivo de concorrência livre e não falseada e ao princípio da igualdade de tratamento, na medida em que tal processo proporcionasse a uma empresa privada presente no capital dessa empresa uma vantagem sobre os seus concorrentes (acórdão Acoset, já referido, n.°56 e jurisprudência citada). Esses argumentos não permitem concluir que a parte constituída pelos serviços de saúde a prestar aos empregados do Oulun kaupunki é indissociável do resto do contrato.

42. Além disso, deve reconhecer‑se que a alegada - mas não demonstrada - inclusão do valor do compromisso assumido pelo Oulun kaupunki na entrada em espécie desse município para o capital da empresa comum constitui, nestas condições, um artifício jurídico que também não permite considerar esta parte do contrato misto como inseparável do contrato.

43. Acresce que, como alegaram o Governo checo e a Comissão, o facto de, no processo principal, a entidade adjudicante ter manifestado a sua intenção de lançar um concurso para aquisição dos serviços de saúde para os seus empregados, no fim do período transitório, também é uma circunstância que confirma que esta parte do contrato é separável do resto do contrato misto.

44. Do mesmo modo, o facto de a empresa comum funcionar, desde Agosto de 2008, sem a referida parte do contrato vai no sentido de demonstrar que os dois sócios parecem estar em condições de fazer face ao eventual impacto dessa falta na situação financeira da referida empresa, o que também constitui um indício de que essa parte é separável.

45. Por consequência, diferentemente das circunstâncias que deram lugar ao acórdão Loutraki eo., já referido, as conclusões acima expostas não traduzem objectivamente a necessidade de celebrar o contrato misto em causa no processo principal com um único parceiro (v., neste sentido, acórdão Loutraki eo., já referido, n.°53).

46. Uma vez que a parte do contrato misto que consiste no compromisso do Oulun kaupunki de adquirir serviços de saúde para os seus empregados à empresa comum é separável desse contrato, daí resulta que, num contexto como o do processo principal, as disposições pertinentes da Directiva 2004/18 são aplicáveis à atribuição dessa parte.

47. Vistas as considerações precedentes, deve responder‑se às questões submetidas que a Directiva 2004/18 deve ser interpretada no sentido de que, quando uma entidade adjudicante celebra com uma sociedade privada independente dela um contrato que prevê a criação de uma empresa comum, sob a forma de sociedade anónima, cujo objecto social é a prestação de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho, a atribuição, pela referida entidade adjudicante, do contrato relativo aos serviços destinados aos seus próprios empregados, cujo valor excede o limiar previsto por essa directiva, e que é separável do contrato de criação dessa sociedade, deve fazer‑se respeitando as disposições da referida directiva aplicáveis aos serviços mencionados no seu anexo II B.

Quanto às despesas

48. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, deve ser interpretada no sentido de que, quando uma entidade adjudicante celebra com uma sociedade privada independente dela um contrato que prevê a criação de uma empresa comum, sob a forma de sociedade anónima, cujo objecto social é a prestação de serviços de saúde e de bem‑estar no trabalho, a atribuição, pela referida entidade adjudicante, do contrato relativo aos serviços destinados aos seus próprios empregados, cujo valor excede o limiar previsto por essa directiva, e que é separável do contrato de criação dessa sociedade, deve fazer‑se respeitando as disposições da referida directiva aplicáveis aos serviços mencionados no seu anexo II B.

 

Assinaturas

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(*) Língua do processo: finlandês.