Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 18 de Novembro de 2010 (proc. C-226/09)

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Processo C‑226/09

Comissão Europeia
contra
Irlanda

«Incumprimento de Estado - Directiva 2004/18/CE - Procedimentos de adjudicação de contratos públicos - Adjudicação de um contrato de serviços de interpretação e de tradução - Serviços que integram o anexo II B da referida directiva - Serviços não sujeitos a todas as exigências dessa directiva - Ponderação a atribuir aos critérios de adjudicação determinada após a apresentação das propostas - Alteração da ponderação na sequência de uma primeira apreciação das propostas apresentadas - Respeito do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência»

 

Sumário do acórdão:

1. As entidades adjudicantes que celebram contratos abrangidos pelo anexo II B da Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, mesmo que estes não se encontrem sujeitos às regras da directiva relativas às obrigações de sujeição à concorrência com publicidade prévia, continuam sujeitas às regras fundamentais do direito da União, nomeadamente aos princípios consagrados no Tratado FUE em matéria de direito de estabelecimento e de livre prestação de serviços.

O regime que o legislador da União instituiu para os contratos de serviços abrangidos pelo referido anexo II B não pode, portanto, ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação dos princípios que resultam dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE e, portanto, das obrigações destinadas a garantir a transparência dos processos e a igualdade dos concorrentes, no caso de esses contratos apresentarem, não obstante, um interesse transfronteiriço certo.

(cf. n.os 29 e 31)

2. Embora a obrigação de indicar a ponderação relativa de cada um dos critérios de adjudicação na fase de publicação do aviso de concurso, como prevê o artigo 53.°, n.° 2, da Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, satisfaça a exigência de garantia do respeito do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio, não se justifica considerar que o alcance deste princípio e desta obrigação, não existindo uma disposição específica nesse sentido nesta directiva, vá ao ponto de exigir que, no âmbito de concursos não sujeitos a uma disposição como o referido artigo 53.°, a ponderação relativa de critérios utilizados pela entidade adjudicante seja previamente determinada e anunciada aos potenciais concorrentes quando são convidados a apresentar as suas propostas. Com efeito, a menção da ponderação a atribuir aos critérios de adjudicação no caso de um concurso não sujeito a uma disposição como o artigo 53.°, n.° 2, da directiva não constitui nessa medida uma obrigação que incumba à entidade adjudicante.

(cf. n.° 43)

3. Os princípios da igualdade de tratamento e da transparência dos processos de adjudicação implicam que as entidades adjudicantes têm a obrigação de se cingir à mesma interpretação dos critérios de adjudicação durante todo o processo. Por maioria de razão, os próprios critérios de adjudicação não devem sofrer nenhuma alteração ao longo do processo de adjudicação.

Por conseguinte, um Estado‑Membro que altere a ponderação dos critérios de adjudicação de um contrato de fornecimento de serviços de interpretação e de tradução, abrangido pelo anexo II B da Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, na sequência de um primeiro exame das propostas submetidas, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio.

(cf. n.os 59 a 60 e 66)

 

Texto integral: 

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

18 de Novembro de 2010(*) 

No processo C‑226/09,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 19 de Junho de 2009,

Comissão Europeia, representada por M. Konstantinidis e A.‑A. Gilly, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo, demandante,
contra
Irlanda, representada por D. O'Hagan, na qualidade de agente, assistido por A. M. Collins, SC, com domicílio escolhido no Luxemburgo, demandada, 

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: J.‑C. Bonichot, presidente de secção, K. Schiemann, L. Bay Larsen (relator), C. Toader e A. Prechal, juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 29 de Junho de 2010,

profere o presente

Acórdão

1. Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, ao definir os coeficientes de ponderação dos critérios de adjudicação de um contrato de prestação de serviços de interpretação e de tradução depois do termo do prazo para a apresentação das propostas e ao alterá‑los na sequência de um primeiro exame das propostas submetidas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

       Quadro jurídico

2. A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L134, p.114, a seguir «directiva»), prevê, no capítulo III do seu título II, uma aplicação dita «a dois níveis» para os contratos públicos de serviços.

3. Por força do artigo 20.° da directiva, os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no seu anexo II A são adjudicados de acordo com os artigos 23.° a 55.° desse diploma.

4. Esses artigos enunciam as regras específicas relativas ao caderno de encargos e aos documentos do concurso (artigos 23.° a 27.°), as regras relativas aos procedimentos (artigos 28.° a 34.°), as regras de publicidade e de transparência (artigos 35.° a 43.°) e as regras relativas à evolução do processo (artigos 44.° a 55.°).

5. Em contrapartida, nos termos do artigo 21.° da directiva, «[o]s contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao artigo 23.° e ao n.° 4 do artigo 35.°».

6. Como os serviços de interpretação e de tradução não estão incluídos no anexo II A da directiva, integram a categoria 27, denominada «Outros serviços», do seu anexo II B.

7. O artigo 23.° da directiva enuncia as regras relativas às especificações técnicas a incluir nos documentos do concurso.

8. O artigo 35.°, n.° 4, da directiva determina que as entidades adjudicantes que tenham adjudicado um contrato público enviarão à Comissão um anúncio com os resultados do procedimento de adjudicação após a adjudicação do contrato público.

9. Nos termos do artigo 37.° da directiva:

«As entidades adjudicantes podem publicar, em conformidade com o artigo 36.°, anúncios que digam respeito a contratos públicos que não estejam sujeitos à exigência de publicação prevista na presente directiva.»

10. O artigo 53.° da directiva, sob a epígrafe «Critérios de adjudicação», que não se aplica à adjudicação dos contratos abrangidos pelo anexo II B da mesma directiva, estabelece no seu n.° 2:

«Sem prejuízo do disposto no terceiro parágrafo, no caso [de a adjudicação ser feita à proposta economicamente mais vantajosa], a entidade adjudicante especificará, no anúncio de concurso ou no caderno de encargos[,] a ponderação relativa que atribui a cada um dos critérios escolhidos para determinar a proposta economicamente mais vantajosa.

[...]

Sempre que, no entender da entidade adjudicante, a ponderação não for possível por razões demonstráveis, a entidade adjudicante indicará, no anúncio de concurso ou no caderno de encargos[,] a ordem decrescente de importância dos critérios».

       Factos na origem da acção e procedimento pré‑contencioso

11. Em 16 de Maio de 2006, o Ministério da Justiça, da Igualdade e da Reforma Legislativa irlandês (a seguir «entidade adjudicante») publicou no Jornal Oficial da União Europeia (JO S92), sob a referência 2006/S 92‑098663, um aviso de concurso para adjudicação de um contrato de prestação de serviços de interpretação e de tradução a diversas instituições competentes em matéria de asilo (a seguir «contrato controvertido»).

12. Esse aviso de concurso especificava, no ponto IV.2.1, que seria escolhida a proposta economicamente mais vantajosa, com base nos sete critérios seguintes:

«1. exaustividade da documentação apresentada.

2. capacidade declarada para satisfazer os requisitos.

3. número de lotes [o contrato estava subdividido em vários lotes], serviços e línguas.

4. qualificações, experiência no domínio em causa.

5. preço.

6. carácter adequado das modalidades propostas.

7. locais de referência.»

13. No ponto VI.3 desse mesmo aviso, especificava‑se que os sete critérios de adjudicação não estavam enumerados por ordem decrescente de importância.

14. No convite para apresentação de propostas, esses critérios foram apresentados do mesmo modo e enumerados de 1 a 7. Porém, nesse documento, contrariamente ao aviso de concurso, não se indicava expressamente que os referidos critérios não estavam enumerados por ordem decrescente de importância.

15. Assim, a ponderação relativa de cada um dos sete critérios escolhidos para efeitos da determinação da proposta economicamente mais vantajosa do ponto de vista da entidade adjudicante não se encontrava especificada no aviso de concurso nem no convite para apresentação de propostas. Também não estava indicado se esses critérios deveriam ser ulteriormente objecto de tal ponderação.

16. Doze empresas, três das quais estabelecidas fora do território irlandês, apresentaram propostas antes do termo do prazo prescrito para o efeito, que era o dia 9 de Junho de 2006.

17. Nesse mesmo dia, os membros da comissão de avaliação receberam um esquema de avaliação que previa a aplicação da seguinte ponderação relativa aos sete critérios de adjudicação em causa:

«1. exaustividade da documentação apresentada: 0%.

2. capacidade declarada para satisfazer os requisitos: 7%.

3. número de lotes, serviços e línguas: 25%.

4. qualificações, experiência no domínio em causa: 30%.

5. preço: 20%.

6. carácter adequado das modalidades propostas: 10%.

7. locais de referência: 8%».

18. Este esquema de avaliação deveria permitir aos membros da comissão de avaliação efectuar, a título individual, um primeiro exame das propostas apresentadas.

19. Em 13 de Junho de 2006, um dos membros dessa comissão, após ter assim procedido ao exame de parte das propostas, enviou ao membro dos serviços da entidade adjudicante que tinha elaborado o esquema de avaliação e transmitido as propostas recebidas a essa comissão uma mensagem electrónica na qual propunha alterações à ponderação atribuída aos critérios de adjudicação.

20. Em 22 de Junho de 2006, quando da sua primeira reunião, a comissão de avaliação decidiu alterar a ponderação relativa dos critérios, antes de apreciar colectivamente as propostas apresentadas, reduzindo para 25% o valor ponderado do quarto critério (antes fixado em 30%) e aumentando para 15% o peso do sexto critério (antes fixado em 10%). O valor ponderado dos outros critérios manteve‑se inalterado.

21. Em seguida, a referida comissão passou à avaliação das propostas e à adjudicação do contrato, utilizando a nova ponderação relativa dos sete critérios então aprovada.

22. Na sequência de uma denúncia, a Comissão encetou, em Maio de 2007, uma troca de correspondência com a Irlanda.

23. À luz, nomeadamente, das respostas da Irlanda tanto à notificação para cumprir de 17 de Outubro de 2007 como ao parecer fundamentado de 18 de Setembro de 2008, a Comissão considerou que o procedimento de adjudicação do contrato controvertido tinha decorrido em violação do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio e, consequentemente, decidiu intentar a presente acção.

       Quanto à acção

24. A título preliminar, observe‑se que é dado assente que o contrato controvertido recai no âmbito de aplicação da directiva e que os serviços de interpretação e de tradução em causa pertencem à categoria dos serviços não prioritários referidos no anexo II B da mesma directiva.

25. Recorde‑se que, nos termos do artigo 21.° da directiva, ««[o]s contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexoIIB estão sujeitos apenas ao artigo 23.° e ao n.°4 do artigo 35.°».

26. Resulta da leitura conjugada dos artigos 21.°, 23.° e 35.°, n.° 4, da directiva que, quando os contratos digam respeito, como no caso vertente, a serviços abrangidos pelo anexo II B da mesma directiva, as entidades adjudicantes apenas estão obrigadas a respeitar as normas relativas às especificações técnicas e a enviar à Comissão um anúncio com os resultados do procedimento de adjudicação desses contratos.

27. Em contrapartida, as outras regras relativas à coordenação dos procedimentos previstos na directiva, nomeadamente as regras relativas às obrigações de sujeição à concorrência com publicidade prévia e as regras, previstas no seu artigo 53.°, relativas aos critérios de adjudicação dos contratos, não são aplicáveis a esses contratos.

28. Com efeito, quanto aos serviços abrangidos pelo anexo II B da directiva, a aplicação integral desse diploma deveria, como se especifica no seu décimo nono considerando, ficar limitada, por um período transitório, aos contratos em relação aos quais as suas disposições permitam a plena concretização do potencial de crescimento do comércio transfronteiras.

29. No entanto, as entidades adjudicantes que celebram contratos abrangidos pelo referido anexo II B, mesmo que estes não se encontrem sujeitos às regras da directiva relativas às obrigações de sujeição à concorrência com publicidade prévia, continuam sujeitas às regras fundamentais do direito da União, nomeadamente aos princípios consagrados no Tratado FUE em matéria de direito de estabelecimento e de livre prestação de serviços (acórdão de 13 de Novembro de 2007, Comissão/Irlanda, C‑507/03, Colect., p.I‑9777, n.° 26).

30. Ora, segundo jurisprudência constante, a coordenação, a nível da União, dos processos de adjudicação de contratos públicos visa suprimir os entraves à livre circulação dos serviços e das mercadorias e, assim, proteger os interesses dos operadores económicos estabelecidos noutro Estado‑Membro (acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 27 e jurisprudência referida).

31. Daqui se conclui que o regime instituído pelo legislador da União para os contratos de serviços abrangidos pelo anexo II B da directiva não pode ser interpretado no sentido de que se opõe à aplicação dos princípios que resultam dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE, no caso de esses contratos apresentarem, não obstante, um interesse transfronteiriço certo (v., neste sentido, acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 29), e, por essa razão, das obrigações destinadas a assegurar a transparência dos processos e a igualdade de tratamento dos proponentes (v., neste sentido, acórdão de 13 de Abril de 2010, Wall, C‑91/08, Colect., p.I‑0000, n.° 37).

32. O dever de transparência aplica‑se no caso de o contrato de serviços em causa ser susceptível de interessar uma empresa situada num Estado‑Membro diferente daquele onde esse contrato é adjudicado (v., neste sentido, acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 29).

33. O facto de, no presente processo, o contrato controvertido ser susceptível de interessar empresas situadas num Estado‑Membro diferente da Irlanda resulta tanto da publicação de um aviso para o mesmo no Jornal Oficial da União Europeia como da circunstância de três dos candidatos que apresentaram propostas serem empresas estabelecidas num Estado‑Membro diferente da Irlanda (v., neste sentido, acórdão Wall, já referido, n.° 35).

34. É à luz destas considerações que cabe apreciar a justeza das duas acusações formuladas pela Comissão, que não visam nenhuma das duas disposições da directiva nos termos das quais a adjudicação dos contratos abrangidos pelo seu anexoIIB se deve processar, a saber, os artigos 23.° e 35.°, n.°4, desse diploma, mas se baseiam em duas exigências decorrentes do direito primário da União, ou seja, o respeito do princípio da igualdade de tratamento e a obrigação de transparência que decorre desse princípio.

       Quanto à primeira acusação, relativa ao facto de a ponderação a atribuir aos critérios de adjudicação ter sido efectuada após o termo do prazo para a apresentação das propostas

       Argumentos das partes

35. A Comissão alega que a Irlanda violou os princípios da igualdade de tratamento e da transparência ao ter efectuado a ponderação relativa dos sete critérios de adjudicação do contrato controvertido após o termo do prazo fixado para a apresentação das propostas.

36. Considera que esta ponderação tardia modificou sensivelmente a importância relativa dos critérios com referência à dos critérios inicialmente publicados e àquela que os concorrentes podiam ter razoavelmente esperado tendo em conta os documentos do concurso.

37. A este respeito, a Irlanda precisa, a título preliminar, que, contrariamente ao que a Comissão afirma na petição inicial, a entidade adjudicante nunca declarou, tácita ou expressamente, antes da apresentação das propostas, que os critérios de adjudicação constantes do aviso de concurso e do convite para apresentação de propostas estavam enumerados por ordem decrescente de importância.

38. Pelo contrário, no aviso de concurso estava indicado que os critérios de adjudicação não eram enumerados por ordem decrescente de importância e a entidade adjudicante nunca veio, posteriormente, dar qualquer indicação de modo a fazer crer que essa posição tinha sofrido alterações.

39. Além disso, embora admita que a comissão de avaliação designada pela entidade adjudicante atribuiu uma ponderação relativa aos critérios de adjudicação após o termo do prazo fixado para a apresentação de propostas, a Irlanda contesta que esta determinação do valor ponderado dos diferentes critérios tenha violado os princípios da igualdade de tratamento e da transparência.

       Apreciação do Tribunal

40. A título preliminar, observe‑se que o facto de a Irlanda ter solicitado a inclusão do aviso de concurso do contrato controvertido no Jornal Oficial da União Europeia, como permite o artigo 36.° da directiva, de modo algum implica para esse Estado‑Membro a obrigação de adjudicar esse contrato em conformidade com o disposto nas disposições dessa directiva que se aplicam aos contratos públicos abrangidos pelo seu anexo II A (v., por analogia, relativamente a um contrato público não abrangido pelo âmbito de aplicação de uma directiva, acórdão de 22 de Setembro de 1988, Comissão/Irlanda, 45/87, Colect., p.4929, n.os 9 e 10).

41. Para se poder aceitar a procedência da primeira acusação, importa que a regra específica relativa à ponderação prévia dos critérios de adjudicação de um contrato abrangido pelo anexo II A da directiva possa ser considerada uma consequência directa do facto de as entidades adjudicantes estarem obrigadas a respeitar o princípio da igualdade de tratamento e a obrigação de transparência que decorre desse princípio.

42. A este respeito, resulta efectivamente da jurisprudência do Tribunal de Justiça relativa aos contratos públicos adjudicados em conformidade com todas as disposições das várias directivas na matéria, que precederam a adopção da directiva, que a obrigação de informar previamente os concorrentes sobre os critérios de adjudicação e, se possível, sobre a ponderação relativa a atribuir‑lhes visa garantir o respeito dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência (v., designadamente, acórdãos de 12 de Dezembro de 2002, Universale‑Bau e o., C‑470/99, Colect., p.I‑11617, n.° 98, e de 24 de Novembro de 2005, ATI EAC e Viaggi di Maio e o., C‑331/04, Colect., p.I‑10109, n.os 22 a 24).

43. Contudo, embora a obrigação de indicar a ponderação relativa de cada um dos critérios de adjudicação na fase de publicação do aviso de concurso, como prevê actualmente o artigo 53.°, n.° 2, da directiva, satisfaça a exigência de garantia do respeito do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio, não se justifica considerar que o alcance deste princípio e desta obrigação, não existindo uma disposição específica nesse sentido nesta directiva, vá ao ponto de exigir que, no âmbito de concursos não sujeitos a uma disposição como o seu artigo 53.°, a ponderação relativa de critérios utilizados pela entidade adjudicante seja previamente determinada e anunciada aos potenciais concorrentes quando são convidados a apresentar as suas propostas. Com efeito, como o Tribunal de Justiça indicou através da utilização da expressão «se possível» na jurisprudência referida no número anterior, a menção da ponderação a atribuir aos critérios de adjudicação no caso de um concurso não sujeito a uma disposição como o artigo 53.°, n.° 2, da directiva não constitui nessa medida uma obrigação que incumba à entidade adjudicante.

44. Daqui se conclui que a Irlanda, que facultou o acesso às informações apropriadas sobre o contrato controvertido aos potenciais concorrentes antes do termo do prazo fixado para a apresentação das propostas, não violou o princípio da igualdade de tratamento nem a obrigação de transparência que decorre desse princípio ao proceder a uma ponderação dos referidos critérios de adjudicação sem facultar aos ditos concorrentes o acesso a essa ponderação antes do termo do prazo fixado para a apresentação das propostas.

45. Concretamente, no concurso que esteve na origem do presente processo, a entidade adjudicante forneceu mais informações do que as que lhe eram exigidas pela directiva e os critérios de adjudicação do contrato controvertido não foram formulados, nos documentos que lhe dizem respeito, de uma forma que permita concluir pela existência de uma diferença de tratamento em detrimento das empresas susceptíveis de estar interessadas nesse contrato e situadas num Estado‑Membro diferente da Irlanda.

46. Ao atribuir um valor ponderado a esses critérios, a entidade adjudicante mais não fez do que especificar as regras segundo as quais as propostas apresentadas deviam ser avaliadas, sem de forma alguma violar a obrigação de respeitar a mesma interpretação dos critérios de adjudicação, pois estes não foram enumerados por ordem decrescente de importância.

47. A este respeito, sublinhe‑se que a circunstância de os critérios de adjudicação terem sido enumerados sem indicação da ponderação relativa de cada um deles não permite presumir que essa enumeração foi necessariamente feita por ordem decrescente de importância nem que os critérios de adjudicação deviam ter o mesmo valor ponderado.

48. Acresce que a ponderação relativa dos critérios de adjudicação comunicada aos membros da comissão de avaliação sob a forma de um esquema, por um lado, não teria proporcionado aos potenciais concorrentes, se estes o tivessem conhecido quando prepararam as suas propostas, informações susceptíveis de influenciar significativamente essa preparação e, por outro, não constituiu uma alteração desses mesmos critérios (v., neste sentido, acórdão ATIEAC e Viaggi di Maio e o., já referido, n.° 32).

49. Acrescente‑se que a presente acção, tal como foi submetida ao Tribunal de Justiça, não contém indicações que permitam demonstrar que a ponderação relativa dos critérios de adjudicação tenha sido fixada após a abertura dos envelopes que continham as propostas apresentadas.

50. Nestas condições, a primeira acusação invocada pela Comissão deve ser julgada improcedente.

       Quanto à segunda acusação, relativa a uma alteração da ponderação dos critérios após uma apreciação inicial

       Argumentos das partes

51. A Comissão sustenta que, ao efectuar, após a apreciação inicial das propostas apresentadas, uma alteração da ponderação relativa dos critérios de adjudicação do contrato controvertido tal como tinha sido apresentada no esquema de avaliação, a Irlanda violou os princípios da igualdade de tratamento e da transparência.

52. Precisa que a referida alteração, ocorrida após um primeiro exame das propostas, consubstancia uma violação do princípio da igualdade de tratamento, não sendo necessário determinar se o primeiro exame das propostas foi efectuado a título individual pelos diferentes membros da comissão de avaliação ou colegialmente por todos os seus membros.

53. A Irlanda alega que essa alteração da ponderação foi efectuada uma única vez e antes de a referida comissão ter procedido, colectivamente, à apreciação de qualquer uma das propostas.

54. Por conseguinte, em seu entender, a ponderação assim atribuída aos critérios foi aplicada de forma constante ao longo de todo o procedimento de adjudicação do contrato controvertido e, consequentemente, não se pode considerar que esse procedimento tenha violado o princípio da igualdade de tratamento.

55. Além disso, a Irlanda sublinha que a alteração da ponderação relativa dos critérios de adjudicação foi mínima e não pôde conduzir a uma discriminação de nenhum dos concorrentes. Uma análise retrospectiva confirmaria que o concorrente a quem foi adjudicado o contrato também teria sido seleccionado se a adjudicação se tivesse processado com base nos critérios tal como foram inicialmente ponderados.

       Apreciação do Tribunal

56. A Comissão pede ao Tribunal de Justiça, nas suas conclusões, que declare que a alteração da ponderação relativa dos critérios de adjudicação viola o princípio da igualdade de tratamento tal como consagrado nas disposições do Tratado FUE.

57. Antes de mais, quanto ao desenrolar do procedimento de adjudicação do contrato controvertido, importa esclarecer que a alteração do valor ponderado dos critérios de adjudicação do contrato controvertido ocorreu efectivamente após a entidade adjudicante ter transmitido a ponderação relativa desses critérios, sob a forma de um esquema de avaliação, aos membros da comissão de avaliação para que estes pudessem efectuar um primeiro exame das propostas apresentadas.

58. Os membros da comissão de avaliação não só tiveram a oportunidade de examinar, a título individual, as propostas antes da primeira reunião dessa comissão enquanto órgão colegial como foram incitados a fazê‑lo a fim de facilitar a avaliação colectiva nessa comissão.

59. Em seguida, cabe sublinhar que, como o Tribunal de Justiça já anteriormente afirmou neste contexto factual, os princípios da igualdade de tratamento e da transparência dos processos de adjudicação implicam que as entidades adjudicantes têm a obrigação de se cingir à mesma interpretação dos critérios de adjudicação durante todo o processo (v., por analogia, acórdão de 4 de Dezembro de 2003, EVN e Wienstrom, C‑448/01, Colect., p.I‑14527, n.° 92).

60. No que respeita aos próprios critérios de adjudicação, importa admitir, por maioria de razão, que os mesmos não devem sofrer nenhuma alteração ao longo do processo de adjudicação (v., por analogia, acórdão EVN e Wienstrom, já referido, n.° 93).

61. Uma fase em que, antes da reunião da comissão de avaliação, os membros desta examinam, a título individual, as propostas apresentadas integra necessariamente o procedimento de adjudicação do contrato em causa.

62. Nestas condições, uma alteração da ponderação dos critérios de adjudicação que ocorra após a referida fase, durante a qual as propostas foram examinadas uma primeira vez, equivale a alterar os critérios com base nos quais o primeiro exame foi efectuado. Esse comportamento não respeita o princípio da igualdade de tratamento e a obrigação de transparência que decorre desse princípio.

63. Por último, cumpre esclarecer, em primeiro lugar, que, contrariamente ao que a Irlanda alega, a segunda acusação invocada pela Comissão é fundada sem que seja necessário demonstrar que a alteração da ponderação relativa produziu efeitos discriminatórios relativamente a um dos concorrentes. A este respeito, basta precisar que, quando se procedeu à referida alteração, não era de excluir que pudesse ter esse efeito.

64. Em segundo lugar, dado que a verificação do incumprimento de um Estado‑Membro não está ligada à de um dano eventualmente resultante do mesmo (acórdão de 18 de Dezembro de 1997, Comissão/Bélgica, C‑263/96, Colect., p.I‑7453, n.° 30), a Irlanda não pode invocar o facto de nenhum concorrente ter sofrido um prejuízo pois, mesmo baseando‑se na ponderação inicial dos critérios de adjudicação, o contrato controvertido não teria sido adjudicado a outro concorrente diferente do seleccionado no termo do procedimento.

65. Assim, a segunda acusação invocada pela Comissão como fundamento da sua acção deve ser julgada procedente.

66. Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que declarar que, ao alterar a ponderação dos critérios de adjudicação do contrato controvertido na sequência de um primeiro exame das propostas submetidas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça.

67. A acção é julgada improcedente quanto ao restante.

       Quanto às despesas

68. Nos termos do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Por força do n.° 3 do mesmo artigo, o Tribunal de Justiça pode determinar que as despesas sejam repartidas entre as partes, ou que cada uma das partes suporte as suas próprias despesas, designadamente se as partes forem vencidas, respectivamente, em um ou mais fundamentos.

69. Uma vez que a acção proposta pela Comissão apenas foi julgada parcialmente procedente, decide‑se que cada parte suportará as suas próprias despesas.

       Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) decide:

       1) Ao alterar a ponderação dos critérios de adjudicação de um contrato de prestação de serviços de interpretação e de tradução na sequência de um primeiro exame das propostas submetidas, a Irlanda não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do princípio da igualdade de tratamento e da obrigação de transparência que decorre desse princípio, conforme interpretados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

       2) A acção é julgada improcedente quanto ao restante.

       3) A Comissão Europeia e a Irlanda suportarão as suas próprias despesas.

 

Assinaturas

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(*) Língua do processo: inglês.