Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 17 de Março de 2011 (proc. C-95/10)

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Processo C‑95/10

Strong Segurança SA
contra
Município de Sintra
e
Securitas‑Serviços e Tecnologia de Segurança

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo)

 

«Contratos públicos de serviços - Directiva 2004/18/CE - Artigo 47.°, n.° 2 - Efeito directo - Aplicabilidade aos serviços previstos no anexo II B da directiva»

 

Sumário do acórdão:

A Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados‑Membros a aplicar o seu artigo 47.°, n.° 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última. Contudo, a mesma directiva não impede os Estados‑Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação (cfr. n.º 46 e disp.).

 

Texto integral:

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

17 de Março de 2011 (*)

No processo C-95/10,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), por decisão de 20 de Janeiro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 22 de Fevereiro de 2010, no processo

Strong Segurança SA
contra
Município de Sintra,
Securitas‑Serviços e Tecnologia de Segurança, 

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, E. Juhász (relator), G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:
─ em representação da Strong Segurança SA, por C. Varela Pinto e J. Oliveira e Carmo, advogadas,
─ em representação do Município de Sintra, por N. Cárcomo Lobo e M. Vaz Loureiro, advogados,
─ em representação da Securitas‑Serviços e Tecnologia de Segurança, por A. Calapez, advogada,
─ em representação do Governo italiano, por G.Palmieri, na qualidade de agente, assistida por G. Aiello, avvocato dello Stato,
─ em representação do Governo austríaco, por M. Fruhmann, na qualidade de agente,
─ em representação da Comissão Europeia, por D. Kukovec e G. Braga da Cruz, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação das disposições pertinentes da Directiva2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L134, p.114).

2. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Strong Segurança SA (a seguir «Strong Segurança») ao Município de Sintra, a respeito da adjudicação de um contrato de serviços de vigilância e segurança das instalações desse município.

       Quadro jurídico

       Disposições pertinentes da Directiva 2004/18

3. O décimo oitavo e décimo nono considerandos enunciam:

«(18) Para efeitos de aplicação das regras processuais previstas na presente directiva e para fins de controlo, a melhor forma de definir o sector dos serviços consiste em subdividi‑los em categorias que correspondem a posições específicas de uma nomenclatura comum e reuni‑los em dois anexos, II A e II B, consoante o regime a que estão sujeitos. No que se refere aos serviços do anexo II B, as disposições aplicáveis da presente directiva em nada afectam a aplicação das regras comunitárias específicas aos serviços em causa.

(19) No que diz respeito aos contratos públicos de serviços, a aplicação integral da presente directiva deve limitar‑se, por um período transitório, aos contratos em relação aos quais as disposições da directiva permitam a plena concretização do potencial de crescimento do comércio transfronteiras. Os contratos relativos a outros serviços devem ser sujeitos a um controlo durante esse período transitório, até que seja tomada uma decisão quanto à aplicação integral da presente directiva. Convém, a este respeito, definir o mecanismo de realização desse controlo. Esse mecanismo deve, simultaneamente, permitir que os interessados tenham acesso às informações pertinentes na matéria».

4. Nos termos do primeiro parágrafo da alínea d) do n.° 2 do artigo 1.°:

«'Contratos públicos de serviços' são contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II».

5. O artigo 2.°, sob a epígrafe «»Princípios de adjudicação dos contratos», estabelece:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente».

6. O artigo 4.°, intitulado, «Operadores económicos», prevê, no seu n.° 2:

«Os agrupamentos de operadores económicos podem apresentar propostas ou constituir‑se candidatos. Para efeitos de apresentação da proposta ou do pedido de participação, as entidades adjudicantes não podem exigir que os agrupamentos de operadores económicos adoptem uma forma jurídica determinada, mas o agrupamento seleccionado pode ser obrigado a adoptar uma forma jurídica determinada uma vez que lhe seja adjudicado o contrato, na medida em que tal seja necessário para a boa execução do mesmo».

7. O capítulo III, do título II, sob a epígrafe «Regimes aplicáveis aos contratos públicos de serviços», abrange os artigos 20.° a 22.°.

8. O artigo 20.°, intitulado «Contratos de serviços enumerados no anexo II A», prevê:

«Os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II A são adjudicados de acordo com os artigos 23.° a 55.°».

9. Nos termos do artigo 21.°, sob a epígrafe «Contratos de serviços enumerados no anexo IIB»:

«Os contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B estão sujeitos apenas ao artigo 23.° e ao n.° 4 do artigo 35.°».

10. O artigo 23.°, que faz parte do capítulo IV, intitulado «Regras específicas relativas ao caderno de encargos e aos documentos do concurso», refere‑se às especificações técnicas que devem constar dos documentos do concurso, a fim de permitir o acesso dos proponentes em condições de igualdade e não criar obstáculos injustificados à abertura dos contratos públicos à concorrência, e o artigo 35.°, n.°4, que faz parte do capítulo VI, intitulado «Regras de publicidade e de transparência», refere‑se aos deveres de informação das entidades adjudicantes relativamente aos resultados do procedimento de adjudicação.

11. No anexo II B, categoria 23, figuram os «Serviços de investigação e de segurança [...]».

12. O artigo 47.°, sob a epígrafe «Capacidade económica e financeira», prevê, no seu n.°2:

«Um operador económico pode, se necessário e para um contrato determinado, recorrer às capacidades de outras entidades, independentemente da natureza jurídica do vínculo que tenha com elas. Deverá nesse caso provar à entidade adjudicante que disporá efectivamente dos recursos necessários, por exemplo, através da apresentação do compromisso de tais entidades nesse sentido».

13. O artigo 48.°, intitulado «Capacidade técnica e/ou profissional», inclui um n.° 3, cujo conteúdo é no essencial igual ao da disposição anterior.

14. Nos termos do artigo 80.°, n.°1, os Estados‑Membros deviam pôr em vigor as disposições legislativas, regulamentares e administrativas necessárias para dar cumprimento à Directiva 2004/18 até 31 de Janeiro de 2006 e informar imediatamente a Comissão Europeia desse facto.

       Legislação nacional

15. A transposição da Directiva 2004/18 para o direito português foi efectuada pelo Decreto‑Lei n.°18/2008, de 29 de Janeiro de 2008, que aprova o Código dos Contratos Públicos, que entrou em vigor seis meses após a sua publicação.

       Litígio no processo principal e questões prejudiciais

16. Por aviso publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 15 de Julho de 2008, o Município de Sintra abriu um concurso público internacional para aquisição de serviços de vigilância e segurança para instalações municipais para os anos de 2009 e 2010. Este concurso regia‑se pelos respectivos programa do concurso e caderno de encargos, devendo a adjudicação ser feita segundo o critério da proposta global economicamente mais vantajosa.

17. A Strong Segurança concorreu e apresentou para esse efeito os documentos necessários. Juntou também uma carta de conforto da sociedade Trivalor (SGPS) SA (a seguir «Trivalor»), em que esta declara:

«Em virtude da relação de domínio total directo entre a Trivalor e a Strong Segurança [...], a Trivalor é responsável pelas obrigações da mesma, nos termos do Código das Sociedades Comerciais.

Nesse sentido, declaramos que nos comprometemos a:

─ garantir que a Strong Segurança [...] detém os meios técnicos e financeiros indispensáveis para a boa execução das obrigações decorrentes dos concursos;

─ indemnizar a Câmara Municipal de Sintra de todos e quaisquer prejuízos sofridos por qualquer impedimento de boa execução contratual que, ocorrendo adjudicação, venha a surgir».

18. O júri do concurso pronunciou‑se inicialmente a favor da adjudicação do contrato à Strong Segurança, pelo facto de a sua proposta ter obtido a ponderação mais elevada. Contudo, na sequência da reclamação de uma sociedade concorrente, o júri do concurso, alegando que a Strong Segurança não podia demonstrar a capacidade económica e financeira de uma sociedade terceira como a Trivalor, voltou atrás na sua decisão e propôs a adjudicação do contrato à sociedade concorrente reclamante. O Município de Sintra, por deliberação de 11 de Fevereiro de 2009, aprovou essa proposta e decidiu adjudicar à referida sociedade concorrente os serviços a concurso para os anos de 2009 e 2010.

19. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra negou provimento ao recurso interposto pela Strong Segurança desta decisão, por sentença confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10 de Setembro de 2009. A Strong Segurança interpôs então recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo.

20. O tribunal de reenvio salienta que a questão essencial que se coloca na revista é a de saber se o artigo 47.°, n.°2, da Directiva 2004/18 é aplicável aos serviços previstos no seu anexo II B, como os que são objecto do processo principal. Ora, o tribunal de reenvio observa, por um lado, que o procedimento em causa já se iniciara antes da entrada em vigor do Decreto‑Lei n.°18/2008 e que, por outro, quando da abertura do concurso, estava já esgotado o prazo para transposição da directiva.

21. Assim, a primeira questão que se coloca a este respeito é a do efeito directo do artigo 47.°, n.°2, da Directiva 2004/18. O tribunal de reenvio considera que a primeira parte desta disposição é, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, suficientemente clara, precisa e incondicional, não deixando aos Estados‑Membros qualquer poder de apreciação. Contudo, no que se refere à segunda parte da referida disposição, aquele tribunal tem dúvidas, uma vez que a mesma parece deixar aos Estados‑Membros alguma margem de apreciação quanto ao que deve ser provado e aos meios de prova exigíveis para que o operador económico demonstre à entidade adjudicante a sua capacidade económica e financeira quando recorre às capacidades de outras entidades.

22. A segunda questão suscitada no presente processo envolve a interpretação do artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18, para a qual a jurisprudência do Tribunal de Justiça não oferece uma resposta. O tribunal de reenvio observa que uma interpretação estritamente literal conduziria à conclusão de que esta disposição só se aplica aos contratos que tenham por objecto os serviços do anexo II A. Salienta, contudo, que tal interpretação excluiria, no que toca aos contratos de serviços do anexo II B, a aplicação de regras da Directiva 2004/18 tão essenciais como as que, por exemplo, estabelecem os critérios de selecção qualitativa dos candidatos (artigos 45.° a 52.°) e os critérios de adjudicação dos contratos (artigos 53.° a 55.°).

23. Tendo dúvidas sobre essa interpretação e estando consciente de que decide em última instância, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) O artigo 47.° da Directiva 2004/18/[...], depois de [31 de Janeiro de 2006], é directamente aplicável na ordem interna no sentido de que confere aos particulares um direito que estes podem fazer valer contra os órgãos da [A]dministração portuguesa?

2) Em caso afirmativo, a despeito do disposto no artigo 21.° da mesma [d]irectiva, o preceito é aplicável aos contratos que tenham por objecto os serviços referidos no anexo II B [da Directiva 2004/18]?».

       Quanto às questões prejudiciais

       Quanto à segunda questão

24. Com esta questão, que cumpre analisar em primeiro lugar, o tribunal de reenvio pergunta se o artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18 é aplicável também aos contratos que tenham por objecto serviços abrangidos pelo anexo II B desta directiva, apesar de isso não resultar da letra das outras disposições pertinentes da directiva, designadamente do seu artigo 21.°.

25. Para responder a esta questão, há que assinalar, a título preliminar, que a distinção dos contratos de serviços em função da sua classificação em duas categorias separadas não foi introduzida de novo pela Directiva 2004/18, uma vez que já existia no quadro da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L209, p.1), que a Directiva 2004/18 codifica e refunde.

26. Importa salientar em seguida que a distinção que deve ser operada entre os contratos de serviços consoante figurem no anexo IIA ou no anexo IIB da Directiva 2004/18 é já indicada sem ambiguidades nos seus considerandos.

27. Assim, o décimo oitavo considerando da Directiva 2004/18 refere que, para aplicação das suas regras, há que subdividir os serviços em categorias e reuni‑los em dois anexos, II A e II B, consoante o regime a que estão sujeitos.

28. Por sua vez, o décimo nono considerando da Directiva 2004/18 reflecte a vontade do legislador de limitar a sua aplicação integral, durante um período transitório, aos contratos de serviços em relação aos quais as suas disposições permitam a plena concretização do potencial de crescimento do comércio transfronteiras, sendo estes contratos os relativos aos serviços que figuram no anexo II A, e de submeter a um regime de vigilância os outros contratos, ou seja, os referentes a serviços abrangidos pelo anexo II B, durante esse período transitório e até ser tomada uma decisão sobre a aplicação integral da Directiva 2004/18 a esses contratos.

29. Esta subdivisão dos contratos de serviços, enunciada nos ditos considerandos, é explicitada pelas disposições da Directiva 2004/18.

30. Com efeito, o artigo 20.° prevê, no que toca aos contratos que têm por objecto os serviços do anexo IIA, a aplicação praticamente integral das disposições desta directiva, ao passo que o artigo 21.° remete unicamente para os artigos 23.° e 35.°, n.°4, impondo assim, relativamente aos contratos de serviços que figuram no anexo IIB, às autoridades adjudicantes «apenas» as obrigações relativas às especificações técnicas desses contratos e a obrigação de informar a Comissão dos resultados dos processos de adjudicação.

31. Contrariamente ao que alega a Strong Segurança, não existe nenhum indício na letra, no espírito ou na sistemática das disposições da Directiva 2004/18 de que a subdivisão dos serviços em duas categorias seja baseada numa distinção entre as suas «regras substantivas» e as «regras processuais». Aliás, como observou correctamente a Comissão, tal distinção poderia criar incerteza jurídica quanto ao âmbito de aplicação das diferentes disposições da dita directiva.

32. A distinção dos regimes aplicáveis aos contratos públicos de serviços em função da classificação dos serviços, operada pelas regras pertinentes do direito da União, em duas categorias separadas é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

33. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que a classificação dos serviços nos anexosIA e IB da Directiva 92/50 (que correspondem, respectivamente, aos anexos II A e II B da Directiva 2004/18) é conforme com o sistema instituído por esta directiva, que prevê uma aplicação em dois níveis das suas disposições (v., neste sentido, acórdão de 14 de Novembro de 2002, Felix Swoboda, C‑411/00, Colect., p.I‑10567, n.°55).

34. Além disso, o Tribunal de Justiça declarou, no contexto da Directiva 92/50, que, quando os contratos são relativos a serviços abrangidos pelo anexo IB, as entidades adjudicantes apenas estão sujeitas às obrigações de definir as especificações técnicas com referência a normas nacionais que transponham normas europeias que devem constar dos documentos gerais ou contratuais próprios de cada contrato e de enviar ao OPOCE (Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias) um anúncio a comunicar os resultados do processo de adjudicação desses contratos (v. acórdão de 13 de Novembro de 2007, Comissão/Irlanda, C‑507/03, Colect., p.I‑9777, n.°24).

35. Com efeito, o Tribunal de Justiça indicou que o legislador da União partiu da presunção de que os contratos relativos a serviços abrangidos pelo anexo I B da Directiva 92/50 não têm, a priori, tendo em conta a sua natureza específica, um interesse transfronteiriço susceptível de justificar que a sua adjudicação se faça na sequência de um processo de concurso que vise permitir a empresas de outros Estados‑Membros tomarem conhecimento do anúncio de concurso e apresentarem propostas (v., neste sentido, acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 25). Contudo, o Tribunal de Justiça considerou que mesmo esses contratos, quando tenham um interesse transfronteiriço certo, estão sujeitos aos princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento decorrentes dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (v. neste sentido, acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.os26 e 29 a 31).

36. Tendo em conta as considerações precedentes, há que concluir que o sistema instituído pela Directiva 2004/18 não cria directamente para os Estados‑Membros a obrigação de aplicar o artigo 47.°, n.°2, desta directiva também aos contratos públicos de serviços abrangidos pelo seu anexo II B.

37. No que toca ao argumento da Comissão de que o princípio geral da «concorrência efectiva» previsto na Directiva 2004/18 permitiria fundamentar essa obrigação, há que recordar que, embora a concorrência efectiva constitua o objectivo essencial da referida directiva, este objectivo, por importante que seja, não pode conduzir a uma interpretação contrária aos seus termos claros, que não incluem o seu artigo 47.°, n.° 2, nas disposições que as entidades adjudicantes são obrigadas a aplicar na adjudicação de contratos cujo objecto sejam serviços abrangidos pelo anexo II B desta directiva.

38. Contudo, e em conformidade com a mencionada jurisprudência, resta ainda analisar se, no caso de um contrato com essas características revestir um interesse transfronteiriço certo - o que cabe ao tribunal de reenvio verificar, designadamente tendo em conta o facto de, no processo principal, o aviso de concurso ter sido publicado no Jornal Oficial da União Europeia -, pode decorrer da aplicação dos princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento uma obrigação como a prevista no artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18.

39. No que se refere, por um lado, ao princípio da transparência, impõe‑se constatar que este princípio não é violado se uma obrigação como a consagrada no artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18 não for imposta à entidade adjudicante no quadro de um contrato cujo objecto sejam serviços abrangidos pelo anexo IIB desta directiva. Com efeito, a impossibilidade de um operador económico invocar a capacidade económica e financeira de outras entidades não tem nenhuma relação com a transparência do processo de adjudicação de um contrato. Há que notar, aliás, que a aplicação dos artigos 23.° e 35.°, n.°4, da Directiva 2004/18 aos procedimentos de adjudicação de contratos de serviços ditos «não prioritários» visa igualmente assegurar o grau de transparência correspondente à natureza específica desses contratos.

40. Há que salientar, por outro lado, que o princípio da igualdade de tratamento não pode conduzir à imposição de uma obrigação como a prevista no artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18 também quando da adjudicação de contratos de serviços constantes do anexo IIB, apesar da distinção operada pela mesma directiva.

41. Com efeito, a inexistência dessa obrigação não acarreta nenhuma discriminação, directa ou indirecta, com base na nacionalidade ou no lugar de estabelecimento.

42. Importa salientar que uma abordagem tão extensiva da aplicabilidade do princípio da igualdade de tratamento poderia conduzir à aplicação, aos contratos de serviços abrangidos pelo anexo II B da Directiva 2004/18, de outras disposições essenciais da mesma, por exemplo, como observa o tribunal de reenvio, as disposições que estabelecem os critérios de selecção qualitativa dos candidatos (artigos 45.° a 52.°) e os critérios de adjudicação dos contratos (artigos 53.° a 55.°). Com isso, correr‑se‑ia o risco de privar de efeito útil a distinção entre os serviços do anexo IIA e do anexo IIB feita pela Directiva 2004/18, bem como a respectiva aplicação em dois níveis, nos termos utilizados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça.

43. Acrescente‑se ainda que, nos termos da jurisprudência do Tribunal de Justiça, os contratos relativos a serviços constantes do anexo II B da Directiva 2004/18 têm uma natureza específica (acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n.° 25). Assim, pelo menos alguns desses serviços têm características particulares que justificam que a entidade adjudicante considere, de modo personalizado e específico, as propostas individuais dos candidatos. É o caso, por exemplo, dos «serviços jurídicos», dos «serviços de colocação e de fornecimento de pessoal», dos «serviços de educação e formação profissional» ou dos «serviços de investigação e de segurança».

44. Por conseguinte, os princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento não impõem às entidades adjudicantes uma obrigação como a consagrada no artigo 47.°, n.° 2, da Directiva 2004/18 no que toca aos contratos relativos aos serviços constantes no anexo II B desta última.

45. Contudo, a delimitação do âmbito de aplicação da Directiva 2004/18, como resulta do seu décimo nono considerando, decorre de um método progressivo do legislador da União que, embora não impondo a aplicação, durante o período transitório referido naquele considerando, do artigo 47.°, n.° 2, da dita directiva aos contratos como o em causa no processo principal, também não proíbe aos Estados‑Membros e, eventualmente, a uma entidade adjudicante que prevejam, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a aplicação da referida disposição a esses contratos.

46. Em face do exposto, há que responder à segunda questão que a Directiva 2004/18 não obriga os Estados‑Membros a aplicar o seu artigo 47.°, n.° 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última. Contudo, a mesma directiva não impede os Estados‑Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.

       Quanto à primeira questão

47. Tendo em conta a resposta dada à segunda questão, não há que responder à primeira questão.

       Quanto às despesas

48. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

       Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

       A Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados‑Membros a aplicar o seu artigo 47.°, n.° 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B desta última. Contudo, a mesma directiva não impede os Estados‑Membros e, eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respectivamente, na sua legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.

 

Assinaturas 

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(*) Língua do processo: português.