Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31 de Março de 2011 (proc. 250/11)

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Sumário:

I. Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II. Justifica-se a admissão do recurso de revista excepcional de um acórdão do TCA em que estão em causa questões jurídicas relacionadas com os pressupostos legais de exclusão de propostas por apresentação de preço anormalmente baixo, incidentes sobre aspectos controversos da disciplina contida no CCP relativamente a tais questões, e que acolhem, aliás, subsídios interpretativos decorrentes dos diversos diplomas internos em matéria de contratação pública, bem como os oriundos do direito comunitário, acrescendo a tudo isso que se verifica ainda uma ausência de jurisprudência deste STA sobre as referidas questões, no âmbito de aplicação do CCP.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


( Relatório )
A..., com os sinais dos autos, interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto no art. 150º, nº 1 do CPTA, recurso de revista do acórdão do TCA Sul, de 19.01.2011 (fls. 403 e segs.), que revogou sentença do TAF de Lisboa pela qual fora julgada procedente a acção de contencioso pré-contratual por si interposta contra o INSTITUTO DE EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL (IEFP), pedindo a anulação do acto de exclusão da proposta da A. no concurso público nº 20092100693, para aquisição, instalação e integração de sistemas de gestão de fluxos e atendimento a utentes nos centros de emprego do IEFP, e a condenação do R. a admitir a referida proposta.
Alega, como fundamento do pedido de revista, que estão em causa questões jurídicas fundamentais, que identifica, erradamente decididas pelo acórdão recorrido, e que justificam uma intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal, em ordem a uma melhor aplicação do direito.
O recorrido IEFP e o recorrido particular B... sustentam, nas suas contra-alegações, que as questões assinaladas pela recorrente não evidenciam qualquer especial complexidade jurídica justificativa da admissão da revista, cingindo-se a decisão recorrida a uma aplicação estrita da disciplina legal contida no CCP.


( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Noutros termos, particularmente impressivos, tem-se entendido que a relevância jurídica ou social "afere-se em termos da utilidade jurídica, com capacidade de expansão da controvérsia que ultrapasse os limites da situação singular" (Acs. de 26.06.2008 e de 02.07.2008 - Procs. nºs 515/08 e 173/2008, respectivamente).
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.


Vejamos então a situação dos autos.
As questões jurídicas concretamente colocadas pela recorrente na respectiva alegação, como "questões de importância fundamental" justificativas da intervenção do STA, são as seguintes:
(i) Prevendo o CCP, no art. 132º, nº 2, a possibilidade de o programa do concurso fixar um valor abaixo do qual as propostas de preço apresentadas serão consideradas de valor anormalmente baixo, e estabelecendo o art. 71º, nº 1, para os casos em que o programa do concurso não proceda àquela indicação e tenha fixado um preço base, um critério supletivo de aferição do que deverá ser considerado preço anormalmente baixo, em que circunstâncias deverá entender-se como validamente afastado no programa do concurso aquele critério, e qual a extensão da protecção conferida aos concorrentes que, induzidos em erro pela entidade adjudicante quanto à indicação do limite abaixo do qual o preço é tido por anormalmente baixo, apresentem propostas desacompanhadas de justificação para o preço apresentado?
(ii) Caso se considere que não foi afastado pela entidade adjudicante o critério supletivo do citado art. 71º, nº 1, e que a posição dos concorrentes eventualmente induzidos em erro não merece qualquer tipo de protecção, deverá entender-se que da conjugação do disposto no art. 57º, nº 1, al. d) com o estabelecido no art. 146º, nº 2, al. d), ambos do CCP, resulta necessariamente que a falta de apresentação, logo na proposta, de justificação do preço anormalmente baixo, implica a exclusão automática da proposta, sem outros formalismos para além da audiência prévia de interessados, ou, pelo contrário, e atentos os princípios da proporcionalidade e da degradação das formalidades não essenciais, devem, em tal caso, os proponentes ser chamados a prestar esclarecimentos justificativos sobre o preço apresentado, nos termos do art. 71º, nº 3 do CCP, e, se aceites as justificações, deverem as respectivas propostas ser admitidas e avaliadas?
As instâncias divergiram no tratamento das referidas questões.
O TAF considerou que o modelo de avaliação de propostas integrante do programa do concurso, ao referir que «a proposta de valor 700.000,00 €, ou inferior, será pontuada com 100», postergou ilegalmente o critério supletivo fixado no art. 71º, nº 1 do CCP, e que, até por essa razão, se impunha o prévio pedido de esclarecimentos à A., nos termos dos nºs 3 e 4 desse mesmo preceito, assim igualmente violado, tal como os princípios da proporcionalidade, da transparência e da boa-fé.
O acórdão recorrido, por seu lado, entendeu que, havendo preço base fixado, a ausência de documento justificativo do preço anormalmente baixo proposto determina a exclusão da respectiva proposta (art. 70º, nº 2 do CCP, e que o dever de solicitação de esclarecimentos previsto no citado art. 71º, nº 3, "rege na circunstância de não haver preço base fixado no caderno de encargos", pelo que o caso em apreço consubstancia uma "hipótese de exclusão de proposta por aplicação do critério legal de determinação automática do limiar de anomalia".
Entendemos que se justifica, in casu, a admissão da revista, em ordem a uma elaborada clarificação das questões jurídicas suscitadas pela recorrente (concretamente relacionadas com os pressupostos legais de exclusão de propostas por apresentação de preço anormalmente baixo), incidentes sobre aspectos controversos da disciplina contida no CCP relativamente a tais questões, e que acolhem, aliás, subsídios interpretativos decorrentes dos diversos diplomas internos em matéria de contratação pública, bem como os oriundos do direito comunitário, acrescendo a tudo isso que se verifica ainda uma ausência de jurisprudência deste STA sobre as referidas questões, no âmbito de aplicação do CCP.
A interpretação conjugada dos diversos preceitos legais citados, em ordem a esclarecer sobre a concreta mens legislatoris no tratamento de situações como a dos autos, conduz necessariamente a um labor interpretativo e a operações exegéticas de relevo e complexidade superiores ao normal, aconselhando a uma intervenção clarificadora do STA.


( Decisão )
Com os fundamentos expostos, por se entenderem verificados os pressupostos exigidos pelo art. 150º, nº 1 do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 31 de Março de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.