Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de Janeiro de 2011 (proc. 1046/10)

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Sumário:

A questão suscitada a propósito do alcance a retirar do modo como foi efectuado o preenchimento de um campo de um formulário exigido pelo caderno de encargos, com a aposição de um valor pecuniário referente a "outros custos relevantes", não reúne os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 150º do CPTA, na medida em que a decisão recorrida se funda na interpretação efectuada sem recurso a regras ou critérios jurídicos, restringindo-se ao contexto dialógico comum em que se insere o preenchimento de um campo de um verbete que se reporta a uma matéria pré-definida no programa do concurso.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do STA:


A..., S.A. propôs no TAF de Sintra acção administrativa especial de contencioso pré-contratual contra Instituto do Emprego e Formação Profissional, IP, e B... S.A. em que pede que seja condenado o IEFP a abster-se de adjudicar o fornecimento e celebrar o contrato respectivo com a B..., a excluir a proposta desta empresa e a adjudicar o aprovisionamento à A.
O TAF julgou a acção improcedente, tendo a A... apelado para o TCA Sul que negou provimento ao recurso.
Inconformada a A... pede agora a admissão de recurso de revista para ver decidida a questão que enuncia assim:
"Exigindo o programa do concurso que as propostas contenham obrigatoriamente determinado elemento substancial, pode a entidade adjudicante e, em última instancia o tribunal, considerar tal elemento como obrigatório e dispensável, não estando afinal os concorrentes obrigados a fazer constar aquele elemento das propostas".
Mais exactamente a recorrente, para além das disposições dos artigo 8.º n.º 3 e 17.º al. a) do Programa do Concurso que exige que os concorrentes preencham o campo K do anexo VI "Outros Custos Relevantes", e prevê a exclusão das propostas que não contenham os elementos do primeiro dos artigos, considera que o artigo aplicável - 104.º n.º 3 al. b) do DL 197/99 comina com a exclusão as propostas que não contenham os elementos exigidos nos termos do art.º 47.º entre os quais se contam os exigidos no programa do concurso. Ainda refere que também o artigo 70.º n.º 2 al. b) do CCP determina idêntica exclusão.
Considera a recorrente que ao decidir de modo diferente o Acórdão do TCA viola a lei.
E, sustenta que esta é uma questão jurídica cuja clarificação é necessária para uma melhor aplicação do direito, sendo que a intervenção do Supremo pode acabar com a incerteza na respectiva resolução, pelo que, embora excepcional, neste caso é justificada a admissão da revista.
O IEFP contra alega, no que agora importa, que o recurso não deve ser admitido, porque a única questão relevante nestes autos é saber se o preenchimento obrigatório do campo "Outros Custos Relevantes" do anexo VI do Programa do Concurso se mostra cumprido com a indicação do montante pecuniário ou se é também necessária a descrição qualitativa de tais custos. E, assim devidamente limitada a questão controvertida nos autos, ela não apresenta dificuldade especial nem relevância que justifique a admissão da revista.


II - Pressupostos da Revista Excepcional. Apreciação concreta.
1. Para apreciar e decidir da admissão da revista, como premissa maior, devemos interpretar o texto e o sentido da lei.
A este propósito temos referido que o recurso de revista de decisões proferidas pelos TCA em segunda instância - terceira apreciação jurisdicional de uma causa administrativa - é, em geral, rejeitado pela lei de processo (CPTA), embora seja permitido, a título excepcional, que o STA admita esta terceira apreciação num recurso relativo a matéria de direito, exclusivamente naqueles casos em que estejam reunidos certos pressupostos que o artigo 150.º n.º 1 do CPTA aponta como índices de que a causa tem uma relevância superior ao comum.
Tais pressupostos respeitam à natureza das questões sobre as quais versa o litígio, que devem atingir, de uma perspectiva jurídica ou social, o grau de importância fundamental, ou mostrar-se claramente necessária a intervenção do STA para uma melhor aplicação do direito.
Assim, é mantido e aprofundado o princípio da apreciação jurisdicional das causas administrativas, apenas em duas instâncias, como regra. Na consecução deste objectivo concorrem com o disposto no art.º 150.º do CPTA, a previsão de revista "per saltum" do artigo 151.º, e a transformação do recurso para uniformização de jurisprudência num recurso do tipo acção revisiva, a ser interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, o STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º n.º 1 se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, de ser necessário compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como casos em que a questão além de relevante se reveste de novidade, isto é, não tenha havido oportunidade de o STA se pronunciar sobre ela, ou formar uma orientação estável.
Quanto à relevância social fundamental, o STA tem entendido que este requisito se verifica, designadamente, nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão no tecido social, ou atinja interesses respeitantes a comunidades ou grupos de pessoas que os valorizam de forma especial, ou quando seja de antever que a intervenção do Supremo pode orientar a jurisprudência relativamente a casos análogos ou apenas do mesmo tipo, por estarem pendentes, ou ser de prever que venham a ser submetidos à jurisdição, isto é, os casos em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto e dos interesses das partes envolvidas no litígio.
A admissão de revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, cuja decisão nas instâncias suscita fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e existe incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, fazendo as circunstancias antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema, ou seja, tendo como finalidade conseguir através do bom funcionamento do contencioso administrativo, uma melhor administração da justiça.
2. No caso sub juditio o Acórdão do TCA decidiu que tendo a B... preenchido o item 19 do campo "Outros custos relevantes" lançando "61,60 €, enquanto a A... lançou o mesmo valor, mas acrescentou o descritivo "lucro", ambas as propostas satisfazem a exigência do Programa cuja exigência era dirigida ao montante e não à descrição, sendo por isso as propostas comparáveis (vd. fls. 7 do Acórdão do TCA).
Sendo assim, a questão que foi decidida não corresponde a nenhuma questão geral ou transponível outro procedimento, ou situação, antes se restringe ao concreto circunstancialismo em que foi estabelecido o programa deste concurso e foram preenchidos os campos do formulário pelos concorrentes e a interpretação neste estrito contexto do significado do que se escreveu em conotação com o que era imposto que se escrevesse.
Portanto, a questão é, em importante medida, de interpretação não jurídica da declaração, isto é, sem recurso a regras ou critérios jurídicos, apenas no contexto dialógico comum em que se insere o preenchimento de um campo de um verbete que se reporta a uma matéria pré-definida no programa do concurso.
E de todo o modo mostra-se, claramente de importância limitada ao assunto deste concurso e da controvérsia particular a que deu azo, sem capacidade de interessar a um número considerável de outros casos, isto é, em que se não prevê expansão da controvérsia para além da relação inter partes.
E assim reduzida à sua verdadeira dimensão a questão não tem relevância social, nem apresenta particular complexidade, nem se vê necessidade de intervenção do Supremo em recurso de revista para orientar a jurisprudência e contribuir decisivamente para uma melhor aplicação do direito, pelo que se não verificamos requisitos de admissão da revista excepcional.


III - Decisão.
Em conformidade com o exposto acordam em não admitir a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2011. - Rosendo Dias José (relator) - Santos Botelho - Pais Borges.