Acórdão n.º 61/2011, de 28 de Setembro de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1266/2011)

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ACÓRDÃO Nº 61/2011 - 28/09/2011 - 1ª SECÇÃO/SS

PROCESSO Nº 1266/2011 - 1ª SECÇÃO

 

I. RELATÓRIO

O Município de Vila Franca de Xira remeteu a este Tribunal, para fiscalização prévia, o contrato de empreitada para a obra de "Pavimentações e Recargas de Pavimentos 2011- Póvoa de Santa Iria, São João dos Montes, Vialonga e Vila Franca de Xira", celebrado entre aquela entidade e a sociedade Construções Pragosa, Sociedade Anónima, pelo preço de € 576.665,37, acrescido de IVA.

II. DOS FACTOS

Para além do referido no número anterior, são dados como assentes e relevantes para a decisão os seguintes factos:

a) Em 25 de Março de 2011, a Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira aprovou a abertura de um concurso público para a adjudicação da obra acima referida, bem como as respectivas peças procedimentais, incluindo o Caderno de Encargos e o Programa de Concurso (1);

b) Em Diário da República, de 1 de Abril de 2011, foi publicado o anúncio de abertura do concurso público (2);

c) Em 6 de Abril de 2011, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira ratificou o despacho referido em a) (3);

d) No n.º 11.3. do Programa de Concurso estabeleceu-se que os concorrentes deveriam apresentar, como documentos da proposta, "documentos relativos a aspectos de execução do contrato não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, aos quais a entidade adjudicante pretende que o concorrente se vincule", entre os quais:
"11.3.2. Certificados emitidos por organismos independentes, nacionais ou estabelecidos noutros estados membros da União Europeia, que atestem que o concorrente respeita determinadas normas de garantia de qualidade e de segurança ou normas de garantia de qualidade e gestão ambiental."

e) Nos termos do n.º 16 do Programa de Concurso e do n.º 12 do anúncio, a adjudicação seria feita segundo o critério do mais baixo preço;

f) Foram apresentadas a concurso as seguintes 10 propostas (4):

N.º

Concorrente

Valor da proposta (€)

1

Estrela do Norte, Engenharia e Construção, Lda.

469.876,94

2

José Marques Gomes Galo, S.A.

680.957,50

3

Armando Cunha, S.A.

497.267,00

4

Sanestradas

599.800,00

5

Construções Pragosa, S.A.

576.665,37 (5)

6

Alves Ribeiro, S.A.

696.638,23

7

Topbet

521.493,47

8

Constradas, S.A.

476.410,00

9

Pavilancil,S.A.

609.855,59

10

Asibel, S.A.

575.328,97

 

g) Foram excluídas as propostas acima referenciadas com os n.ºs 1, 2, 3, 4, 7, 8, 9 e 10, tendo sido apreciadas apenas as correspondentes aos n.ºs 5 e 6 (6);

h) As propostas n.ºs 1, 3, 4, 7, 8, 9 e 10 foram excluídas, nos termos do disposto "na alínea d) do n.º 2 do artigo 146.º em articulação com o estipulado na alínea c) do n.º 1 do artigo 57.º" do CCP, por não integrarem o documento referido no ponto 11.3.2 do Programa de Concurso (7);

i) Por despacho de 30 de Junho de 2011, da Presidente da Câmara, ratificado em 27 de Julho de 2011 pela Câmara, foi adjudicada a obra à proposta

acima identificada com o n.º 5, por ser a de valor mais baixo das duas apreciadas (8).

III. FUNDAMENTAÇÃO

1. Das exigências de certificação e da exclusão das propostas

A questão que importa resolver no presente processo é a de saber se, no procedimento de pré-contratação realizado foi legal a exclusão de propostas referida na alínea h) do ponto anterior. Uma vez que essa exclusão resultou da não junção às propostas dos documentos exigidos no n.º 11.3.2. do Programa de Concurso, analisaremos em primeiro lugar esta exigência.

1.1. Da exigência de junção de certificados relativos ao cumprimento de normas de garantia de qualidade, segurança e gestão ambiental

Como se apontou na alínea d) do probatório, o Programa de Concurso do procedimento em causa exigiu que fossem juntos às propostas "Certificados emitidos por organismos independentes, nacionais ou estabelecidos noutros estados membros da União Europeia, que atestem que o concorrente respeita determinadas normas de garantia de qualidade e de segurança ou normas de garantia de qualidade e gestão ambiental".
Deve, desde logo, observar-se que, nos termos em que foi formulada a regra, os documentos exigidos mais parecem respeitar à aptidão dos concorrentes do que às qualidades das propostas.
De facto, nos termos do Programa, não se exige a prova de que serão aplicados em obra processos certificados mas sim a prova de que o concorrente detém determinadas certificações, independentemente dos processos que aplique.
Deve, aliás, assinalar-se a semelhança entre os termos da exigência feita no n.º 11.3.2. do Programa de Concurso e o teor do n.º 2 do artigo 164.º do CCP. Este preceito refere: "Quando, nos termos do disposto na alínea j) do número anterior, o programa do concurso exigir a apresentação de certificados emitidos por organismos independentes, nacionais ou estabelecidos noutros Estados membros da União Europeia, que atestem que o interessado respeita determinadas normas de garantia de qualidade ou normas de gestão ambiental, deve referir-se, respectivamente, aos sistemas de garantia de qualidade ou aos sistemas de gestão ambiental baseados no Sistema Comunitário de Ecogestão e Auditoria (EMAS) ou no conjunto de normas europeias, e certificados por organismos conformes com as séries de normas europeias respeitantes à certificação."
Prevê-se nesta norma legal que o Programa de Concurso possa exigir a apresentação destes certificados, nos termos do disposto na alínea j) do n.º 1 do mesmo artigo 164.º, ou seja, enquanto documentos destinados à qualificação dos candidatos no âmbito de um concurso limitado por prévia qualificação.
Atenta a sua formulação, parece estarmos, pois, em face de elementos destinados à avaliação dos concorrentes e não à avaliação das propostas.
Por outro lado, as certificações exigidas não estão referenciadas a qualquer exigência legal, e, consequentemente, não são documentos de habilitação. Os documentos de habilitação, na acepção do CCP, e como refere Margarida Olazabal Cabral(9), são apenas aqueles que se reportam à titularidade de documento legal que permita a execução de um determinado contrato, quando seja o caso, ou à demonstração de não se estar em qualquer situação de impedimento.
Assim sendo, a exigência feita só pode referir-se a requisitos ou aptidões de capacidade técnica, os quais não podem ser exigidos num concurso público, mas apenas no quadro de um concurso limitado por prévia qualificação.
Como refere aquela autora no texto já citado, no regime do CCP "[d]eixa de ser possível no novo concurso público exigir requisitos de capacidade técnica e económico-financeira aos concorrentes. A apresentação de uma proposta passa a ser uma possibilidade de qualquer interessado, sabendo que não irá ser analisada, ou de qualquer forma tida em conta, a respectiva capacidade, mas apenas as qualidades da sua proposta".
De qualquer modo, mesmo que estivéssemos perante um concurso limitado por prévia qualificação, que não estamos, e, nesse tipo concursal, perante a exigência de documentos destinados à qualificação dos candidatos, o que também não é o caso, ainda assim a formulação da exigência não se mostraria aceitável.
É que quando a lei (artigo 164.º, n.º 2, do CCP) fala na possibilidade de exigir a certificação de que o concorrente respeita determinadas normas de garantia de qualidade ou de gestão ambiental, obviamente está a referir que essas normas devem ser determinadas, ou seja, identificadas. O que também não sucedeu no caso.
Mas, na situação em análise, e ainda que textualmente referenciada às certificações do concorrente, não pode ignorar-se que a exigência aparece incluída no n.º 11.3 do Programa de Concurso, o qual expressamente se reporta a documentos da proposta, que sejam "Documentos relativos a aspectos de execução do contrato não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, aos quais a entidade adjudicante pretende que o concorrente se vincule".
É, então, possível que as certificações em causa digam respeito às qualidades da proposta?
O artigo 57.º, n.º 1, alínea c), do CCP permite que o programa do procedimento exija que as propostas sejam integradas por documentos "que contenham os termos ou condições, relativos a aspectos da execução do contrato não submetidos à concorrência pelo caderno de encargos, aos quais a entidade adjudicante pretende que o concorrente se vincule".
Significa isto que os cadernos de encargos definem determinados aspectos da execução dos contratos que têm de ser obrigatoriamente observados pelas propostas, sem qualquer possibilidade de solução alternativa. Quando assim seja, e nos termos da norma referida, o programa do concurso pode exigir documentos que comprovem essa observância.
Parece-nos que esta situação, reportada à conformidade das concretas propostas com as exigências do caderno de encargos, poderá envolver a necessidade de comprovar a detenção de certificações, mas apenas na medida em que o caderno de encargos refira que determinados processos ou métodos a aplicar na concreta obra devem estar certificados de acordo com determinadas normas (10).
Importa, então, saber se o caderno de encargos do procedimento em causa exige que o contrato seja executado de acordo com determinadas normas de garantia de qualidade e de segurança ou de garantia de qualidade ou gestão ambiental, especificando-as.
Se assim fosse, o programa de concurso poderia exigir a vinculação do concorrente ao cumprimento dessas normas, eventualmente através de uma certificação (11).
Ora, compulsado o caderno de encargos do presente procedimento, encontramos regras relativas a segurança e a gestão ambiental (cláusula geral 31, complementar 22, especiais 8, 9 e 11, e planos de prevenção e gestão de resíduos de construção e demolição e de segurança e saúde) mas não encontramos exigências relacionadas com quaisquer sistemas de gestão da qualidade. Por outro lado, constata-se que mesmo as regras que se podem reconduzir a matérias de segurança e gestão ambiental descrevem tão só objectivamente as condições a observar em obra e em parte alguma se reportam a sistemas normativos de garantia que devam ser certificados.
Deste modo, deve concluir-se que, no caso, o caderno de encargos não estabeleceu a necessidade de os concorrentes se vincularem a qualquer sistema normativo de gestão da qualidade, de gestão de segurança ou de gestão ambiental, que seja objecto de certificação.
Em consequência, e à luz do disposto no artigo 57.º, n.º 1, alínea c), do CCP, não era, no caso, legítimo que o Programa de Concurso exigisse a comprovação de uma certificação que o caderno de encargos não impunha.
Certificação que, aliás, nem sequer foi devidamente especificada.
No caso, e perante estas circunstâncias, pode mesmo dizer-se que nem os concorrentes tinham condições de identificar com precisão o que lhes estava a ser exigido nem o júri tinha critério para avaliar da adequação das certificações que lhe fossem presentes.
Em conclusão, a exigência constante do n.º 11.3.2. do Programa de Concurso foi ilegalmente formulada, por violação do disposto no artigo 57.º, n.º 1, alínea c), do CCP, uma vez que não tem correspondência com quaisquer exigências técnicas do caderno de encargos.
E, mesmo que fosse considerada como um requisito ou critério de qualificação técnica dos concorrentes (o que seria mais consentâneo com a sua formulação), ainda assim seria ilegal, por não ser possível no quadro de um concurso público (cfr. artigos 81.º e 132.º e seguintes do CCP).
Esta exigência traduziu-se numa redução do universo de concorrentes.
O princípio da concorrência, estabelecido no artigo 1.º, n.º 4, do CCP e trave-mestra dos procedimentos de contratação pública, determina que se deva proporcionar o mais amplo acesso de todos os interessados em contratar ao respectivo procedimento pré-contratual e que não se estabeleçam condições restritivas desse acesso sem base legal e justificativa. Inexistindo, no caso, essa base, a restrição à concorrência estabelecida no programa de concurso não tem legitimidade jurídica. 

1.2. Da exclusão de propostas

Como se referenciou acima, na alínea h) do ponto II, 7 das 10 propostas apresentadas foram excluídas por não integrarem o documento exigido no referido ponto 11.3.2 do Programa de Concurso.
A exclusão foi fundamentada "na alínea d) do n.º 2 do artigo 146.º em articulação com o estipulado na alínea c) do n.º 1 do artigo 57.º" do CCP.
O artigo 146.º, n.º 2, alínea d), refere que devem ser excluídas as propostas que não integrem todos os documentos exigidos nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 57.º do CCP.
Ora, concluímos acima que o documento em causa, embora exigido nos termos da alínea c) do n.º 1 desse artigo 57.º, não respeitou o disposto nesta norma.
Devendo entender-se que o documento exigido não se enquadra no referido artigo 57.º, n.º 1, falece o fundamento para a exclusão das referidas propostas, as quais deveriam ter sido admitidas e avaliadas para efeitos de adjudicação.
Ora, conforme decorre dos elementos incluídos no quadro constante da alínea f) da matéria de facto, de entre as 7 propostas ilegalmente excluídas, 5 apresentaram preço mais baixo do que o preço da proposta adjudicatária (as propostas referenciadas com os n.ºs 1, 3, 7, 8 e 10 são de valor inferior ao montante da proposta adjudicada, referenciada com o n.º 5).
Considerando que o critério de adjudicação era o do mais baixo preço (12), fácil é concluir que, a serem admitidas e avaliadas as propostas excluídas, com um elevado grau de probabilidade outra deveria ou poderia ter sido a adjudicação.

2. Da relevância das ilegalidades verificadas

Conforme decorre do exposto, na contratação em causa verificaram-se as seguintes ilegalidades:
- Fixação no Programa de Concurso de exigências de certificação, em violação do disposto no artigo 57.º, n.º 1, alínea c), do Código dos Contratos Públicos e do princípio da concorrência, estabelecido no artigo 1.º, n.º 4, do mesmo Código;
- Exclusão de 7 das propostas a concurso sem que se verificasse o pressuposto legal para essa exclusão, em desrespeito do fixado no artigo 146.º, n.º 2 do CCP.

As ilegalidades verificadas implicaram a não avaliação da maior parte das propostas a concurso e, se não se tivessem verificado, poderia, com elevada probabilidade, ter sido outra a adjudicação. Assim, se não tivessem ocorrido as violações de lei referidas, é muito provável que tivesse sido obtido um resultado financeiro diferente, com melhor protecção dos interesses financeiros públicos.
Ora, as ilegalidades que alterem, ou possam alterar, o resultado financeiro dos procedimentos e dos contratos constituem fundamento da recusa de visto a contratos sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto.
Refira-se, a propósito, que, para efeitos desta norma, quando aí se diz "Ilegalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende--se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro.
Ora, no caso, e como já vimos, a alteração seria praticamente certa  

IV. DECISÃO

Pelos fundamentos indicados, e nos termos do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da Lei nº 98/97, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
São devidos emolumentos nos termos do artigo 5º, n.º 3, do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas (13).
Lisboa, 28 de Setembro de 2011 

Os Juízes Conselheiros,
(Helena Abreu Lopes - Relatora)
(Manuel Mota Botelho)
(João Figueiredo)

Fui presente
(Procurador Geral Adjunto)
(Jorge Leal) 


(1)  Cfr. fls. 6 e seguintes do processo. 
(2) Cfr. fls. 9 e seguintes. 
(3) Cfr. fls 3 a 5.  
(4) Cfr. relatório final de análise das propostas, a fls.43 e seguintes. 
(5) Proposta adjudicatária. 
(6) Cfr. relatório final de análise das propostas, a fls.43 e seguintes. 
(7) Idem. 
(8) Cfr. fls 48 e seguintes dos autos. 
(9) In O Concurso Público no Código dos Contratos Públicos, Estudos de Contratação Pública- I, Coimbra Editora, pág. 186.  
(10) Quando dizemos determinadas, queremos obviamente dizer que estejam identificadas
(11) Ainda que possamos questionar se essa vinculação pressuporia necessariamente a certificação. 
(12) Cfr. alínea e) do probatório. 
(13) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/96, de 31 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 139/99, de 28 de Agosto, e pela Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril.