Acórdão n.º 41/2010, de 12 de Novembro de 2011, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 907/2010)

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ACÓRDÃO Nº 41 /2010 - 12.NOV- 1.ª S/SS

Processo nº 907/2010

 

I - OS FACTOS

1. A Câmara Municipal da Covilhã (doravante designada por Câmara Municipal ou CMC) remeteu em 8.07.2010, para fiscalização prévia, o contrato de prestação de serviços celebrado em 15 de Junho de 2010 com a PARKURBIS - Parque de Ciência e Tecnologia da Covilhã, S.A. (doravante designada por Parkurbis), no valor de € 365.840,00 acrescido de IVA, à taxa legal aplicável.

2. Além do referido no número anterior, relevam para a decisão os seguintes factos, evidenciados por documentos constantes do processo:
a) O Município da Covilhã celebrou com diversas entidades locais um protocolo de parceria para a implementação do programa de acção "Covilhã XXI - Parcerias para a Regeneração Urbana", relativo à área de intervenção no centro histórico da Covilhã (1);
b) O desenvolvimento desse programa de acção exige a constituição de uma estrutura de apoio técnico (2);
c) O contrato em apreciação tem como objecto a prestação de serviços relativa à constituição e funcionamento da referida estrutura de apoio técnico (3);
d) A Parkurbis foi convidada a apresentar proposta para a referida prestação de serviços, o que fez (4);
e) Com fundamento no nº2 do artigo 5º do CCP (5), por deliberação de 7 de Maio de 2010, a Câmara adjudicou a prestação de serviços de criação da estrutura de apoio técnico à implementação do programa de acção "Covilhã XXI - Parcerias para a Regeneração Urbana" à empresa Parkurbis, pelo valor de 365.840,00, acrescido do IVA (6);
f) Na cláusula 12ª do contrato diz-se que "o presente contrato consubstancia uma "contratação in house" uma vez que a entidade adjudicante, Câmara Municipal da Covilhã, detentora da maioria do capital do Parkurbis, exerce sobre a actividade dessa entidade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços; e, por outro lado, o Parkurbis desenvolve o essencial da sua actividade em benefício do Município da Covilhã";
g) A sociedade anónima Parkurbis foi constituída em 17 de Setembro de 2001, com o capital social de € 2.500.000, distribuído por 500.000 acções (7);
h) Os estatutos da Parkurbis encontram-se publicados na III Série do Diário da República de 21 de Janeiro de 2004 consagrando como seu objecto (8) "a instalação, o desenvolvimento, a promoção e a gestão de um parque de ciência e tecnologia, bem como a prestação dos serviços de apoio necessários à sua actividade";
i) Actualmente, a estrutura accionista é a seguinte (9):

Accionista

Nº de acções

%

Município da Covilhã

393.000

78,6

IAPMEI, Instituto Apoio as PME

50.000

10

Auto Jardim da Covilhã, SA

13.000

2.6

PT Comunicações, SA

10.000

2

Universidade da Beira Interior

5.000

1

Caixa Capital - Grupo CGD

5.000

1

Fundação Luso Americana

5.000

1

ANIL - Associação Nacional Industria Lanifícios

5.000

1

FRULACT Sociedade Participações sociais, SA

5.000

1

Credito Agrícola do Fundão e

5.000

1

Sabugal

 

 

AECBP - Associação Empresarial da Covilhã

1.000

0.2

NERCAB - Associação Empresarial de Castelo Branco

1.000

0.2

Município de Manteigas

1.000

0.2

Município de Belmonte

1.000

0.2

Total

500.000

100

j) Solicitou-se à Câmara Municipal para que se pronunciasse (10) sobre o recurso à excepção da contratação in house prevista no nº2 do artigo 5º do CCP;
k) O Município respondeu nos seguintes termos, em 16 de Setembro de 2010 (11):
 "Em face dos requisitos previstos no nº2 do artigo 5º do CCP (...) a escolha da Parkurbis, SA como entidade adjudicatária sustentou-se no facto desta sociedade comercial integrar o sector empresarial da Câmara Municipal, e a ela se aplicar, por esse motivo, o regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei nº 53-F/2006, de 29 de Dezembro. Ou seja, a Parkurbis, SA não obstante ser uma sociedade comercial, é controlada conjuntamente por diversas entidades públicas, sendo a Câmara Municipal da Covilhã, no conjunto das participações do sector público, a titular de maior participação.
Assim, e porque a CMC exerce sobre a PARKURBIS, SA de forma directa, uma influência dominante, em virtude de deter a maioria do capital, dos direitos de voto e o direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração dessa sociedade, aqui entidade adjudicatária, os requisitos previstos no nº 2 do artº 5º do CCP, encontram-se inteiramente verificados nesta contratação";

l) Sobre a mesma matéria ainda disse a CMC (12), em 9 de Novembro de 2010:
"Reiteram-se os esclarecimentos prestados em 16 de Setembro último, considerando-se verificados os requisitos previstos no nº2 do artigo 5º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 478/2009, de 9 de Setembro, para a escolha da Parkurbis, S.A. como entidade adjudicatória, uma vez que se trata de uma sociedade comercial integrada no sector empresarial do Município da Covilhã, cujo fim último é a realização de uma missão de serviço público, e a ela se aplicar, por esse motivo, o regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei nº 53-F/2006, de 29 de Dezembro.
Ou seja, a Parkurbis, S.A. não obstante ser uma sociedade comercial, é controlada conjuntamente por diversas entidades públicas, sendo a Câmara Municipal da Covilhã, no conjunto das participações, a titular da maior participação: mais de 75%. Por outro lado, e de forma comprovativa, face aos Estatutos da sociedade publicados na III Série do Diário da República em 21 de Janeiro de 2004, é o Município da Covilhã que nomeia o Conselho de Administração da Sociedade Parkurbis, S.A., sendo que o seu Presidente é o Presidente da Câmara Municipal.
Assim sendo, dúvidas não há quanto ao facto do Município da Covilhã, através do seu órgão executivo, exercer sobre a sociedade Parkurbis, S.A., de forma directa, uma influência dominante, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços, em virtude de deter a maioria do capital, dos direitos de voto e o direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração dessa sociedade, aqui entidade adjudicatária.
Pelo que, os requisitos previstos no nº2 do artigo 5º do Código dos Contratos Públicos encontram-se inteiramente verificados nesta contratação."  

II - O DIREITO

3. A questão que deve ser suscitada no presente processo, é a de saber se o contrato acima identificado poderia ter sido formado e celebrado ao abrigo do nº 2 do artigo 5º do CCP que consagra, como se sabe, uma excepção à aplicação da parte II do Código, com o fundamento de se estar no âmbito da "contratação interna" ou de "relações internas" (ou "in house providing", na linguagem corrente comunitária) entre a entidade adjudicante e a adjudicatária.
4. Relembre-se o que a referida disposição legal estabelece:

"Artigo 5º
Contratação excluída
(...)
2 - A parte II do presente código também não é aplicável à formação dos contratos, independentemente do seu objecto, a celebrar por entidades adjudicantes com uma outra entidade, desde que:
a) A entidade adjudicante exerça sobre a actividade desta, isoladamente ou em conjunto com outras entidades adjudicantes, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços; e
b) Esta entidade desenvolva o essencial da sua actividade em benefício de uma ou de várias entidades adjudicantes que exerçam sobre ela o controlo análogo referido na alínea anterior.
(...)".

5. Face a esta disposição legal, é importante precisar que não se pode falar de uma não subordinação, em bloco, ao regime do CCP. O que o n.º 2 do artigo 5.º estabelece é que, caso os pressupostos da contratação in house se verifiquem, ao contrato não será aplicável a parte II do Código, que se reporta aos procedimentos de formação do contrato.
No mais, poderá ser aplicável o regime constante das restantes partes do Código.
A verificação cumulativa dos dois pressupostos referidos, permite excepcionar os contratos do princípio geral da concorrência, que enforma o regime de formação dos contratos públicos.

6. A tese da "contratação in house", surgida no âmbito da aplicação das directivas comunitárias sobre contratação pública, assenta na ideia de que uma entidade adjudicante está dispensada de cumprir as regras de concorrência quando escolhe realizar ela mesma as operações económicas de que necessita, no âmbito da sua autonomia organizativa, através de uma outra entidade que funciona como um seu prolongamento administrativo. Será, então, essa especial relação de prolongamento que, integrando, no plano substantivo, uma relação de dependência entre os entes em causa, elimina a autonomia de vontade de um deles e permite considerar que o contrato não é celebrado com um terceiro (13). Assim, enquanto o regime da contratação pública pressupõe a necessidade de recurso a contratantes externos, no caso da "contratação in house" há recurso a meios organizativos que substancialmente são internos, pese embora constituam uma entidade jurídica diferente, que pode assumir as mais diversas formas.

7. Foi na Directiva 92/50/CEE (relativa à prestação de serviços) que se abordou pela primeira vez a possibilidade de celebração de contratos públicos entre entidades adjudicantes a ela sujeitas. Referia-se na alínea c) do seu artigo 1º que "os prestadores de serviços são qualquer pessoa singular ou colectiva, incluindo organismos de direito público, que ofereçam serviços". E no artigo 6º estabelecia-se que a directiva não era aplicável à celebração de contratos de serviços "atribuídos a uma entidade que seja ela própria uma entidade adjudicante na acepção da alínea b) do artigo 1º, com base num direito exclusivo estabelecido por disposições legislativas, regulamentares, ou administrativas publicadas". Esta disposição suscitou diversas interpretações, admitindo alguma doutrina que os contratos celebrados entre entidades adjudicantes estavam excluídos da aplicação daquela directiva (14).

É no contexto dessa polémica que a jurisprudência comunitária se pronunciou várias vezes, concluindo que as directivas comunitárias eram aplicáveis aos contratos celebrados entre entidades adjudicantes.

8. A jurisprudência comunitária sobre esta matéria é afirmada sobretudo a partir do acórdão Teckal de Novembro de 1999 que dispôs (15) que as directivas comunitárias em matéria de contratação pública são aplicáveis quando uma entidade adjudicante, como uma autarquia local ou regional, pretende celebrar por escrito, com uma entidade dela distinta no plano formal e dela autónoma no plano decisório, um contrato oneroso, quer esta seja ela própria uma entidade adjudicante quer não. No entender do Tribunal, só pode ser de outro modo na hipótese de, simultaneamente, a autarquia exercer sobre a pessoa em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e de essa pessoa realizar o essencial da sua actividade com a ou as autarquias que a controlam.
Esta jurisprudência foi depois aprofundada por inúmeros acórdãos, designadamente os proferidos nos processos C-26/03 (Stadt Halle) em Janeiro de 2005, C-84/03 (Comissão v. Espanha) também de Janeiro de 2005, C-231/03 (Coname), de Julho de 2005, C-458/03 (Parking Brixen), de Outubro de 2005, C-29/04 (Comissão v. Áustria), de Novembro de 2005, C-340/04 (Carbotermo e Consorcio Alisei), de Maio de 2006, C-410/04 (ANAV), C-295/05 (Asemfo/Tragsa), de Abril de 2007, C-337/05 (Comissão v. Itália), de Abril de 2008, C-573/07 (Sea Srl contra Comune di Ponte Nossa), de Setembro de 2008, C-324/07 (Coditel), de Novembro de 2008 e C-480/06 (Comissão vs República Federal da Alemanha), de Junho de 2009.

9. É útil proceder-se a uma leitura global de tais decisões para se descobrirem algumas linhas de tendência que possam ser úteis na presente decisão.
De tal leitura, e com utilidade para a presente decisão, podem destacar-se as seguintes conclusões:
a) As directivas comunitárias em matéria de contratação pública não são aplicáveis quando uma entidade pública adjudicante pretende celebrar por escrito, com uma entidade dela distinta no plano formal e dela autónoma no plano decisório, um contrato oneroso, quer esta seja ela própria uma entidade adjudicante quer não, quando aquela exercer sobre esta um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços e quando esta realizar o essencial da sua actividade para aquela ou aquelas entidades que a controlam (16);
b) O controlo exercido pela entidade adjudicante, ou pelo conjunto das entidades públicas/adjudicantes, sobre a entidade adjudicatária deve revelar que a adjudicatária pode ser considerada uma "estrutura de gestão interna de um serviço público", sobre a qual se exerce uma influência determinante, tanto sobre os objectivos estratégicos, como sobre as decisões importantes desta entidade;
c) Dado que o objectivo principal das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos é a livre circulação de serviços e a abertura à concorrência não falseada em todos os Estados-Membros, a não aplicação das regras comunitárias à luz do que agora se referiu na alínea a) só pode ser considerada como resultado de uma interpretação estrita, cabendo o ónus da prova de que se encontram efectivamente reunidas as circunstâncias excepcionais que justificam a derrogação a quem delas pretenda prevalecer-se;
d) Nessa interpretação e consequente aplicação estritas, deve ter-se em conta todas as disposições legislativas e circunstâncias pertinentes;
e) De entre as circunstâncias pertinentes a ter em conta cumpre considerar, em primeiro lugar, a detenção do capital da entidade adjudicatária, em segundo lugar, a composição dos órgãos de decisão desta e, em terceiro lugar, a extensão dos poderes reconhecidos ao seu conselho de administração;
f) A participação, ainda que minoritária, de capitais privados na entidade adjudicatária do contrato exclui de qualquer forma que a entidade adjudicante possa exercer sobre aquela um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços. A relação entre uma autoridade pública e os seus próprios serviços rege-se por considerações e exigências específicas da prossecução de objectivos de interesse público. Ao invés, a participação de capitais privados na entidade adjudicatária faz com que esta obedeça a considerações inerentes a interesses não públicos. Deve ter-se em conta que nenhuma empresa privada deve ser colocada numa situação privilegiada relativamente aos seus concorrentes.

10. Os aspectos essenciais da tese defendida nos referidos acórdãos do Tribunal de Justiça, embora não tendo sido explicitamente vertida no texto das directivas de 2004 (17), foi, à semelhança do que sucedeu noutros Estados-Membros da União Europeia, expressamente incorporada no Código dos Contratos Públicos português. Consta, hoje, como se viu, do seu artigo 5.º, n.º 2.

11. A invocação da orientação jurisprudencial do Tribunal de Justiça é incontornável, dada não só a relação necessária que, nesta matéria, existe entre direito comunitário e direito nacional, como o facto das normas do CCP terem como origem aquela orientação jurisprudencial. Considerando a unidade da ordem jurídica comunitária, relembre-se ainda que "[n]as decisões a proferir o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito" (18).

12. Como resulta evidente da matéria de facto acima referida nos nºs 1 e 2, o contrato foi celebrado directamente entre a CMC e a Parkurbis, sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos.
Sublinhe-se que a referida Parkurbis tem capital detido por entidades notoriamente privadas e com fins lucrativos. Designadamente: a Auto Jardim da Covilhã, SA, a FRULACT, Sociedade Participações Sociais, SA, o Crédito Agrícola do Fundão e Sabugal.

13. Ora, como se viu, é jurisprudência constante do Tribunal de Justiça (19) que a participação, ainda que minoritária, de uma empresa privada no capital de uma sociedade no qual participa também a entidade adjudicante em causa exclui, de qualquer forma, que esta entidade adjudicante possa exercer sobre esta sociedade um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços (20).
Como se refere no acórdão relativo ao processo C-231/03 (Coname), uma sociedade aberta, pelo menos em parte, ao capital privado, não pode ser considerada uma estrutura de gestão "interna" de um serviço público.
Isto porque "a relação entre uma autoridade pública, que seja uma entidade adjudicante, e os seus próprios serviços se rege por considerações e exigências específicas da prossecução de objectivos de interesse público. Ao invés, o capital privado numa empresa obedece a considerações inerentes a interesses privados e prossegue objectivos de natureza diferente.
Em segundo lugar, a atribuição, sem concurso, de um contrato público a uma empresa de economia mista colide com o objectivo da concorrência livre e não falseada e com o princípio da igualdade de tratamento dos interessados a que se refere a Directiva (...), na medida em que, designadamente, esse procedimento permite a uma empresa privada com capital nessa empresa uma vantagem relativamente aos seus concorrentes.
Por conseguinte, (...), na hipótese de a entidade adjudicante pretender celebrar um contrato a título oneroso para serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação material da Directiva (...), com uma sociedade juridicamente distinta, em cujo capital detém uma participação com uma ou várias empresas privadas, devem ser sempre aplicados os procedimentos de adjudicação de contratos públicos previstos nesta directiva. (21)"

14. Subscreve-se este entendimento que é consequência de que nas excepções à observância dos princípios e regras da contratação pública se deve ter uma interpretação estrita.

15. Perante estas posições reiteradas do Tribunal de Justiça europeu e de idênticas posições que este Tribunal de Contas tem tomado noutros processos, os argumentos produzidos pela CMC e que acima nas alíneas k) e l) do nº2 se reproduziram:

§ A sociedade comercial integra o sector empresarial do município;
§ O fim último da sociedade é a realização de uma missão de serviço público;
§ A CMC, no conjunto das participações do sector público, é a titular de maior comparticipação;
§ A CMC tem influência dominante, em virtude de deter a maioria do capital, dos direitos de voto e o direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração dessa sociedade; e
§ É o Município da Covilhã que nomeia o Conselho de Administração da Sociedade Parkurbis, S.A., sendo que o seu Presidente é o Presidente da Câmara Municipal, não colhem, perante o facto incontestável de parte do capital da sociedade ser detido por entidades privadas que, por via da sua participação, obtêm uma vantagem, relativamente a suas concorrentes. Vantagem que obtêm por via de um contrato que é adjudicado por ajuste directo, sem concorrência alguma. Neste caso não só a celebração não concorrencial do contrato afasta a possibilidade de a ele poderem aceder outros concorrentes, como se beneficia em especial as entidades privadas participantes no capital da adjudicatária. Há pois uma clara violação dos princípios da concorrência e da igualdade.

16. Assim, em face do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código dos Contratos Públicos, da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e dos princípios que enformam as regras de contratação pública, em especial os da concorrência e da igualdade, não pode, pois, considerar-se que a relação entre a CMC e a sociedade adjudicatária seja uma relação "interna", equiparada à que é estabelecida pela entidade adjudicante com os seus próprios serviços.
Consequentemente, não pode aplicar-se ao caso a excepção prevista no artigo 5.º, n.º 2, do CCP, não sendo necessário abordar-se a questão de saber se o segundo requisito previsto na lei (o consagrado na alínea b) do nº2 do artigo 5º) se verifica.
É também claro que não foi estabelecido a favor da Parkurbis qualquer direito exclusivo de prestação do serviço em causa (cfr. artigo 5.º, n.º4,alínea a)). Não se vislumbra outra qualquer excepção à aplicação das regras de contratação pública ao caso.

17. Sendo o contrato em causa um contrato público de aquisição de serviços,
Sendo o contrato celebrado por um Município e de valor superior ao referido na alínea b) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE (22),   
Não estando o mesmo abrangido por qualquer excepção à aplicação do regime da contratação pública,
É-lhe aplicável o Código dos Contratos Públicos, incluindo a sua parte II, nos termos do disposto nos seus artigos 1.º, n.º 2, 2.º, n.º 2, alínea c), e 5.º, n.º 3, alínea b).
De acordo com o estipulado no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, o contrato deveria ter sido precedido de concurso público ou de concurso limitado por prévia qualificação, com publicação dos respectivos anúncios no Jornal Oficial da União Europeia.
Não tendo sido realizado nenhum destes procedimentos, resulta desta norma legal que o contrato não podia ter sido celebrado.
A ausência do concurso, obrigatório no caso, implica a falta de um elemento essencial da adjudicação, o que determina a respectiva nulidade, nos termos do artigo 133.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, como tem sido entendimento deste Tribunal.
Esta nulidade, que pode ser declarada a todo o tempo, origina a nulidade do contrato, nos termos do estabelecido no artigo 283.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos.

A nulidade é fundamento de recusa de visto, como estabelece a alínea a) do n.º 3 do artigo 44º da LOPTC (23).

III - DECISÃO

18. Pelos fundamentos indicados, e por força do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
19. São devidos emolumentos nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio. 

Lisboa, 12 de Novembro de 2010

Os Juízes Conselheiros, - (João Figueiredo, relator) - (António Santos Soares) -(Helena Abreu Lopes)

Fui presente - O Procurador-Geral Adjunto - (António Cluny)


(1) Vide cláusula 1ª do contrato.
(2) Vide cláusula 2ª do contrato.
(3) Vide preâmbulo do contrato.
(4) Vide informação da Divisão de Planeamento da CMC de 14.04.2010, a fls 27 e ss. dos autos.
(5) Código da Contratação Pública, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março e alterado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, pelos Decretos-Lei nºs 223/2008, de 11 de Setembro, 278/2009, de 2 de Outubro, e pela Lei nº 3/2010, de 27 de Abril. 
(6) Vide fls. 37 dos autos.
(7) Vide fls. 129 e ss. dos autos.
(8) Vide artigo 3º.
(9) Vide fls. 129 e ss. dos autos. 
(10) Vide oficio DECOP/UATII/4348/10 de 30 de Julho
(11) Vide fls 75 e ss. do processo.
(12) Vide o ofício nº 6404, de 09 de Novembro de 2010.
(13) Daí que a expressão "contratação interna" ou "in house" seja fortemente ambígua, para não dizer incorrecta, pois se é "contratação" não pode ser "interna" e se é "interna" não pode haver "contratação". 
(14) Sobre estas questões vide Gonçalo Guerra Tavares e Nuno Monteiro Dente, "Código dos Contratos Públicos - âmbito da sua Aplicação".
(15) Vide, em especial, os seus nºs 50 e 51.
(16) No essencial, como se sabe, foram estas as circunstâncias excepcionais que vieram a ser consideradas no nº 2 do artigo 5º do CCP. 
(17) Por falta de acordo quanto à redacção da norma.
(18) In nº 3 do artigo 8º do Código Civil
(19) Cfr., designadamente, acórdãos proferidos nos processos C-26/03 (Stadt Halle), C-231/03 (Coname), C-29/04 (Comissão v. Áustria), e C-410/04 (ANAV).
(20)
Para Rui Medeiros esta qualificação restritiva significa, na prática, que a jurisprudência exige um terceiro requisito para que se possa afirmar uma relação in house: a inexistência de participações privadas na entidade adjudicatária.
(21) Do acórdão Stadt Halle.
(22)
O qual é, de acordo com o Regulamento (CE) n.º 1177/2009, de € 193.000,00.
(23) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, 35/2007, de 13 de Agosto, e 3-B/2010, de 28 de Abril.