Acórdão n.º 40/2010, de 3 de Novembro de 2010, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1303/2010)

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ACÓRDÃO Nº 40 /10 - 03.NOV.-1ª S/SS

Processo nº 1303/2010

I. RELATÓRIO

O Hospital de S. João, E.P.E. remeteu a este Tribunal, para fiscalização prévia, o contrato para realização de obras de infraestruturas na ampliação da Ala Nascente (Serviços de Medicina Interna e Cirurgia Geral) do Hospital, celebrado entre aquela entidade e a sociedade Teixeira Duarte, S.A, pelo preço de €1.974.930,99.
 

II. DOS FACTOS 
 

Para além do referido no número anterior e nos pontos subsequentes, são dados como assentes e relevantes para a decisão os seguintes factos:

a) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital de 20 de Maio de 2010 foi autorizada a escolha do procedimento por aquisição directa à Teixeira Duarte, S.A.;
b) A escolha do referido procedimento foi fundamentada no disposto na alínea c) do artigo 6.º do Regulamento Interno de Compras do Hospital de S. João, invocando-se que "as condições em que se irão realizar as obras de infra-estruturas a que tende a contratação pretendida, determinam, do ponto de vista técnico, que o objecto do contrato seja confiado à mesma entidade que desenvolve trabalhos na área a intervencionar";
c) Em 25 de Maio de 2010 foi enviado convite à Teixeira Duarte S.A. para apresentação de proposta;
d) Por deliberação do Conselho de Administração do Hospital, de 16 de Julho de 2010, a obra foi adjudicada à proposta apresentada pela Teixeira Duarte, S.A., no valor indicado em I, pelo qual veio a ser celebrado o contrato;
e) Nos itens 1.2, 2.3.1.8, 2.3.2.6, 2.3.3.8 e 3.4 do mapa de quantidades de trabalhos constante do caderno de encargos é pedido que na obra se incorporem materiais de específicas marcas comerciais.
 

III. FUNDAMENTAÇÃO 
 

1. Do procedimento de formação do contrato.

A primeira questão que importa resolver é a de saber se o contrato em apreciação podia ser adjudicado directamente à Teixeira Duarte, S.A.

1.1. Do princípio da concorrência

O princípio da concorrência é, de há muito, um dos princípios axilares da contratação pública, tanto no âmbito nacional como no comunitário.
Tal sucede, aliás, na generalidade dos Estados de Direito, como não podia deixar de ser, já que se apresenta como imprescindível à protecção do princípio fundamental da igualdade, que lhes é inerente, e, simultaneamente, como a melhor forma de proteger os interesses financeiros públicos.
Na ordem jurídica portuguesa, e, tal como tem sido expresso na doutrina e na jurisprudência, estão constitucionalmente estabelecidos os princípios da igualdade e da concorrência e a obrigação de a Administração Pública os respeitar na sua actuação (1), seja em que circunstâncias for, em nome simultaneamente dos valores fundamentais, da ordem económica e da prossecução do interesse público.
Estes princípios constitucionais aplicam-se a qualquer actuação da Administração Pública, mesmo que de gestão privada (2) e têm uma especial incidência em matéria de Contratação Pública.
Nessa linha, o Código dos Contratos Públicos (3) estabelece, no n.º 4 do seu artigo 1.º, que à contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência.
Estes princípios estão também claramente estabelecidos na ordem jurídica comunitária a que nos encontramos vinculados.
Os tratados europeus afirmam um objectivo de integração económica, a realizar através do respeito pelas «liberdades fundamentais» (livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais), de onde deriva a obrigatoriedade de os Estados Membros da União Europeia legislarem e agirem de modo a assegurarem a mais ampla concorrência possível e a prevenirem quaisquer favorecimentos.
Como se referiu, entre outros, nos processos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) n.ºs C-458/03, Parking Brixen, e C-324/98, Telaustria, quando uma autoridade pública confia o exercício de uma actividade económica a terceiros, aplica-se o princípio da igualdade de tratamento e as suas expressões específicas, nomeadamente o princípio da não-discriminação, bem como os artigos 43.º e 49.º do Tratado CE (4), sobre a liberdade de estabelecimento e a livre prestação de serviços. O TJCE afirma ainda que estes princípios implicam uma obrigação de transparência, que consiste em assegurar a todos os potenciais concorrentes um grau de publicidade adequado, que permita abrir o mercado de bens e serviços à concorrência.
Ainda que as directivas emitidas para a coordenação dos procedimentos nacionais de adjudicação de contratos públicos excluam do seu âmbito algumas áreas da contratação bem como contratos que não atinjam determinados montantes, o TJCE tem sido claro e afirmativo no sentido de que os princípios referidos se aplicam mesmo que não sejam aplicáveis as directivas relativas aos contratos públicos, uma vez que derivam directamente dos Tratados (5).
Os princípios da igualdade e da concorrência impõem-se, pois, à actividade contratual pública, tanto por via constitucional como por via comunitária.
Ora, o respeito pelos princípios em causa, e, em particular, pelo princípio da concorrência, implica que se garanta aos interessados em contratar o mais amplo acesso aos procedimentos, através da transparência e da publicidade adequada.
É também esse o modo de garantir a melhor protecção dos interesses financeiros públicos, já que é em concorrência que se formam as propostas competitivas e que a entidade adjudicante pode escolher aquela que melhor e mais eficientemente satisfaça o fim pretendido.
As teorias dos jogos e dos leilões demonstram matematicamente que assim é, sendo que, nos termos do artigo 42.º, n.º 6, da Lei de Enquadramento Orçamental (6), nenhuma despesa pode ser autorizada ou paga sem que satisfaça os princípios da economia e da eficiência.
Em suma, o respeito pelo princípio da concorrência e seus corolários subjaz a qualquer actividade de contratação pública, por força de imperativos comunitários, por directa decorrência de normas constitucionais, por previsão da lei aplicável à contratação e por imposição da legislação financeira e dos deveres de prossecução do interesse público e de boa gestão.
Donde resulta que para a formação de contratos públicos devem ser usados procedimentos que promovam o mais amplo acesso à contratação dos operadores económicos nela interessados.

1.2. Dos procedimentos de contratação pública

As Directivas europeias de contratação pública (em especial a Directiva n.º 2004/18/CE) e, no plano nacional, o Código dos Contratos Públicos, estabelecem um conjunto de procedimentos a seguir, consoante as situações, para a formação de contratos públicos.
Em ambos os casos são estabelecidos como regra procedimentos concorrenciais abertos.
No entanto, ambos os diplomas estabelecem também excepções à utilização desses procedimentos concorrenciais abertos, admitindo que há situações em que não se justifica ou não é possível desenvolvê-los.
A este respeito importa ter presentes dois aspectos bem clarificados na jurisprudência do TJCE, os quais são também plenamente transponíveis e aplicáveis no plano exclusivamente nacional.
Em primeiro lugar, as directivas comunitárias de contratação pública (tal como a Parte II do Código dos Contratos Públicos), procedendo à definição de procedimentos a utilizar na adjudicação de contratos públicos, têm de ser vistos como meros instrumentos de realização dos princípios e objectivos mais amplos referidos no ponto anterior. Donde resulta que, mesmo quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
Por outro lado, sempre que a lei estabeleça excepções aos procedimentos concorrenciais mais abertos deve ser-se muito rigoroso e exigente na interpretação e na aplicação dessas excepções, procurando sempre a salvaguarda máxima do princípio da concorrência e admitindo a realização de procedimentos fechados apenas quando não haja alternativa concorrencial possível.
O ajuste directo, tal como foi aplicado no caso, constitui um procedimento completamente fechado, que não integra qualquer nível de concorrência.
Só deve, pois, aceitar-se a sua utilização quando se demonstre inviável qualquer outra solução procedimental que melhor salvaguarde a concorrência. 

1.3. Do regime legal de pré-contratação aplicável no âmbito dos Hospitais E.P.E.

O Hospital de S. João foi transformado em Entidade Pública Empresarial (E.P.E.) por força do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro.
De acordo com o artigo 13.º deste diploma, a aquisição de bens e serviços por ele efectuada reger-se-ia pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação do regime do direito comunitário relativo à contratação pública. Nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, os regulamentos internos dos hospitais E.P.E. deviam garantir aquela prescrição, "bem como, em qualquer caso, o cumprimento dos princípios gerais da livre concorrência, transparência e boa gestão, designadamente a fundamentação das decisões tomadas".
O referido artigo 13.º foi revogado pelo artigo 14.º, n.º 1, alínea o), do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos.
Um Hospital E.P.E. é uma pessoa colectiva que foi criada para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral, que, não obstante a sua designação, não tem uma natureza empresarial, no sentido em que não tem carácter industrial ou comercial, e tem um modelo de financiamento e controlo de gestão que preenche os critérios referidos na alínea c) do n.º 9 do artigo 1.º da Directiva 2004/18/CE e na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos.
Deve, assim, ser considerado um organismo de direito público e uma entidade adjudicante para efeitos da aplicação daquela Directiva e daquele Código.
Ora, nos termos do artigo 19.º do Código dos Contratos Públicos, a adjudicação de contratos de empreitada de valor igual ou superior a € 1.000.000,00 pelas entidades adjudicantes referidas no n.º 2 do artigo 2.º tem de ser precedida da realização de concursos públicos ou concursos limitados por prévia qualificação.
No entanto, o artigo 5.º, n.º 3, do mesmo Código determina que a parte II do Código, relativa aos procedimentos pré-contratuais, não se aplica à formação dos contratos a celebrar pelos hospitais E.P.E de valor inferior aos montantes estabelecidos nos termos das alíneas b) e c) do artigo 7.º da Directiva n.º 2004/18/CE (como é o caso).
O n.º 6 do mesmo artigo estabelece que à formação destes contratos se aplicam os princípios gerais da actividade administrativa, as normas que concretizem preceitos constitucionais constantes do Código do Procedimento Administrativo e, eventualmente, as normas desse Código.
Ou seja, determina-se expressamente que os princípios referidos nos pontos III.1.1.e III.1.2. deste Acórdão se aplicam aos contratos celebrados pelos Hospitais E.P.E., mesmo nos casos dos contratos cujos valores estejam abaixo dos limiares fixados para aplicação da directiva comunitária e aos quais não se apliquem as regras pré-contratuais estabelecidas no Código dos Contratos Públicos.
O Conselho de Administração do Hospital de S. João, E.P.E., homologou, em 18 de Dezembro de 2008, um "Regulamento Interno de Compras", junto a fls. 38 e seguintes dos autos.
Do referido Regulamento extraem-se as seguintes normas, com relevância para o presente caso:

§ Artigo 1.º:
"Âmbito de aplicação
O presente Regulamento aplica-se aos procedimentos tendentes à formação de contratos de empreitadas de obras públicas, de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços do Hospital de S. João, E.P.E., excluídos nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, do âmbito do Código de Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro."

§ Artigo 2.º:
"Objecto
O presente Regulamento estabelece as regras a que obedecem os procedimentos tendentes à formação dos contratos mencionados no artigo anterior."

§ Artigo 3.º:
"Princípios
Os procedimentos destinados à formação dos contratos abrangidos pelo presente Regulamento respeitarão os princípios da actividade administrativa, especialmente os princípios da Transparência, Igualdade e Concorrência."

§ Artigo 4.º:
"Tipos de Procedimentos
1.A contratação relativa à aquisição de bens e serviços e à realização de empreitadas é precedida de um dos seguintes procedimentos:
a)Processo com publicitação;
b) Processo com convite;
c) Aquisição directa.
2. O processo com publicitação é tornado público mediante publicitação de anúncio no site do Hospital na Internet, podendo ainda ser publicitado na plataforma electrónica que vier a ser definida pelo Hospital, destinada aos procedimentos desencadeados ao abrigo do Código dos Contratos Públicos.
3. No processo com publicitação, qualquer interessado que reúna os requisitos estabelecidos no anúncio poderá apresentar a sua proposta.
4. No processo com convite, o Hospital convida directamente as entidades a apresentar proposta, mediante envio de convite por qualquer meio escrito, não podendo o número de entidades ser inferior a três.
5. O processo de aquisição directa não está sujeito a qualquer formalidade especial, podendo a adjudicação recair directamente sobre proposta solicitada pelo Hospital ou factura apresentada pelo fornecedor ou prestador.
(...)"

§ Artigo 5.º:
"Escolha de Processo
1. A escolha do tipo de procedimento a adoptar cabe à entidade competente para a decisão de contratar e para autorizar a realização da respectiva despesa.
2.(...)
3. O Processo com publicitação permite celebrar contratos para a realização de empreitadas e aquisições de bens e serviços, cujo valor não exceda os limiares fixados nas Directivas Comunitárias, para cada um dos referidos tipos de contrato.
4. O Processo com convite permite celebrar contratos para a realização de empreitadas até ao valor de 2.000.000,00 € e de aquisição de bens e serviços até ao limite fixado na Directiva Comunitária.
5. O processo de Aquisição Directa permite celebrar contratos de realização de empreitadas até ao limite de 125.000,00 € e de aquisição de bens e serviços até ao limite de 25.000,00 €."

§ Artigo 6.º:
"Escolha de Processo independentemente do valor do contrato
1. Qualquer que seja o valor do contrato a celebrar, poderá ser adoptado o processo de aquisição directa quando:
a) Em anterior processo com publicitação não tenha sido apresentada qualquer proposta ou todas as propostas apresentadas tenham sido excluídas;
b) Por motivos de urgência imperiosa e na medida do estritamente necessário, não possa ser seguido qualquer um dos outros tipos de procedimento;
c) Por motivos de aptidão técnica, artística ou relacionados com a protecção de direitos exclusivos;
d) Quando se trate de aquisição de bens ou serviços complementares que, por razões técnicas ou económicas, não devam ser separados do contrato inicial."

§ Artigo 22.º:
"Dúvidas e Omissões
As dúvidas e omissões suscitadas pelo presente Regulamento serão supridas por recurso ao Código dos Contratos Públicos."

Como acima referimos, à formação dos contratos em causa aplicam-se os princípios constitucionais e legais da actividade administrativa e contratual, tanto nacionais como comunitários.
As normas do Regulamento Interno de Compras do Hospital de S. João, E.P.E. são de natureza regulamentar e não legal, e, portanto, enquanto expressão da vontade administrativa da entidade adjudicante, são integralmente condicionadas, na sua validade, pelo respeito dos referidos princípios. 

1.4. Do procedimento por aquisição directa

Nos termos do Regulamento acima referido, o procedimento por aquisição directa não está sujeito a qualquer formalidade especial, podendo a adjudicação recair directamente sobre proposta solicitada pelo Hospital.
Conforme decorre das várias alíneas do probatório, foi isso mesmo que sucedeu no caso, tendo o Hospital solicitado proposta a um único fornecedor e adjudicado a realização da obra a essa proposta.
Não houve, pois, qualquer concorrência.
A obra representa uma despesa próxima de 2.000.000,00 €.
Para esta ordem de valores o Código dos Contratos Públicos exige a realização de concursos que garantam a mais ampla concorrência.
Ora vimos acima que, mesmo quando os procedimentos típicos estabelecidos nas directivas ou na legislação nacional não sejam aplicáveis, a entidade pública está autorizada a adoptar procedimentos mais flexíveis mas está vinculada a adoptar práticas de contratação que salvaguardem a concorrência.
No que concerne a contratos não abrangidos pelas directivas de contratação pública, o TJCE, no acórdão tirado no processo T-258/06, refere-se à admissibilidade de não realização de um concurso público formal, de a entidade adjudicante apreciar as especificidades de um contrato na perspectiva da sua adequação às possíveis modalidades de recurso à concorrência e à flexibilidade dos meios de publicidade admitidos. Mas é inequívoco na afirmação reiterada de que os princípios impõem uma publicitação prévia antes da adjudicação do contrato público, por forma a que os eventuais interessados em concorrer possam manifestar o seu interesse em aceder à contratação.
A decisão de que um determinado contrato deve ser excepcionalmente subtraído às regras da concorrência tem de ser efectuada em função das circunstâncias concretas de cada caso e fundamentada numa justificação clara e aceitável à luz desses princípios.
Ora, o que sucedeu no caso foi que, ao abrigo de uma norma geral de natureza regulamentar, se entendeu que o caso permitia a subtracção total à concorrência por "motivos de aptidão técnica".
A norma regulamentar admite que seja possível adjudicar directamente uma obra a um determinado fornecedor, qualquer que seja o seu valor, por esse fornecedor revelar uma determinada "aptidão técnica", que não se qualifica nem determina.
Tanto na directiva comunitária como no Código dos Contratos Públicos só se admite que a "aptidão técnica" de um fornecedor fundamente uma negociação ou um ajuste directo, quando essa aptidão, essencial à realização de uma concreta prestação, só seja detida por um único prestador.
No fundo, o que nesses diplomas se afirma é que só não haverá lugar à abertura à concorrência quando essa concorrência não faça sentido, por não existir senão um fornecedor tecnicamente apto a prestar o serviço.
Ora, a norma constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do Regulamento Interno de Compras do Hospital de S. João, invocada para a aquisição directa ora efectuada, estende o conceito de aptidão técnica como fundamento de uma atribuição directa de um contrato público a todas as situações em que a entidade adjudicante considere estar perante motivos de aptidão técnica, sem explicitar verdadeiramente em que consiste essa excepção.
É, pois, uma norma, que não justifica a razão de ser para o relevante desvio que admite relativamente ao princípio vinculante da concorrência.
Mas vejamos se a decisão concreta nos fornece a necessária justificação para esse desvio.
A entidade adjudicante, no acto de escolha do procedimento, entendeu que se verificavam motivos de aptidão técnica, por se tratar de obras de infra-estruturas especializadas a realizar numa área do Hospital cujas obras de ampliação já estão cometidas a um determinado empreiteiro, considerando que, do ponto de vista técnico, a empreitada deveria ser confiada ao mesmo empreiteiro que já desenvolve os trabalhos na área a intervencionar.
Ora, nada mais tendo sido explicitado, afigura-se-nos que a situação descrita nada tem a ver com aptidão técnica.
O facto de um determinado empreiteiro já se encontrar em obra não significa que só ele é tecnicamente apto para desenvolver os trabalhos especializados agora pretendidos, nem significa sequer que ele é tecnicamente mais apto do que qualquer outro para desenvolver esses trabalhos.
Também não se pode afirmar genericamente que, numa situação dessas, só existam condições de realização técnica dos trabalhos se o empreiteiro for o mesmo. Pode admitir-se que as condições de realização dos trabalhos se facilitem, mas a verdade é que todos os dias se verificam inúmeras e viáveis situações de coexistência de vários empreiteiros em obra, como sucede, por exemplo, no caso de subempreitadas para trabalhos especializados.
Em suma, não se demonstram nem verificam quaisquer motivos de aptidão técnica ou outros que impeçam o acesso de outros concorrentes à realização das obras em causa.
Como acima estabelecemos, a opção por um procedimento de adjudicação directa só seria legítimo face aos princípios aplicáveis se se demonstrasse que não era possível adoptar qualquer outra solução procedimental que melhor acautele a concorrência, ou seja, se se demonstrasse que um procedimento aberto era inviável ou injustificado.
Ora, nem a norma regulamentar invocada nem as circunstâncias concretas do caso fornecem uma justificação razoável nesse sentido ou demonstram que o recurso a uma solução concorrencial não era possível. 

2. Das especificações técnicas.

Das liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços e dos princípios da igualdade e da concorrência decorre também o princípio da não-discriminação.
Uma das áreas chave de respeito por este princípio é a proibição de especificações técnicas discriminatórias.
Através da fixação de especificações técnicas discriminatórias são favorecidos ou desfavorecidos determinados operadores económicos ou determinados produtos, ofendendo-se o princípio da concorrência.
Conforme se referenciou na alínea e) do ponto II deste Acórdão, em vários itens constantes do mapa de quantidades consta a exigência do fornecimento de materiais com uma marca específica. Considerando essas especificações e por, ao contrário de outros, esses itens não conterem a referência "do tipo (...) ou equivalente", afigura-se-nos que o concorrente não se sentiria à vontade para, naqueles itens, apresentar propostas de outras marcas ou modelos, sendo até provável que, se o fizesse, visse a sua proposta excluída por incumprimento do caderno de encargos.
As especificações em causa têm, pois, um efeito discriminatório e devem considerar-se proibidas por directa aplicação dos princípios já invocados. 

3. Da relevância das ilegalidades verificadas

Conforme decorre do exposto, na contratação em causa verificaram-se as seguintes ilegalidades:

§ Contratação da obra por aquisição directa, com violação dos princípios da igualdade, concorrência e transparência, resultantes dos Tratados europeus e da Constituição e lei portuguesas e dos artigos 1.º, n.º 4, e 5.º, n.º 6, do Código dos Contratos Públicos;

§ Introdução no caderno de encargos de especificações técnicas discriminatórias, em violação dos mesmos princípios e normas.

As ilegalidades verificadas implicam a susceptibilidade de alteração do resultado financeiro dos procedimentos.
Isto é, se não tivessem ocorrido as violações de lei referidas, é possível que tivessem sido obtidos resultados diferentes, com melhor protecção dos interesses financeiros públicos.
Enquadram-se, pois, tais violações no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da LOPTC, quando aí se prevê, como fundamento para a recusa de visto, "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro."
Sublinhe-se que, para efeitos desta norma, quando aí se diz "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro" pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro.
Para além disso, a realização de procedimentos concorrenciais e não discriminatórios protege ainda o interesse financeiro de escolha das propostas que melhor e mais económica e eficientemente se ajustam às necessidades públicas, dessa forma acautelando a adequada utilização da despesa pública envolvida e sendo instrumento da realização do disposto nos artigos 42.º, n.º 6, e 47.º, n.º 2, da Lei de Enquadramento Orçamental.
A não observância de procedimentos que acautelem a concorrência e a não discriminação implica, assim, também a violação das normas financeiras acabadas de referir.
Há pois fundamentos para recusa do visto.
 

IV. DECISÃO 
 

Pelos fundamentos indicados, e nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 44.º da Lei nº 98/97, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificados.
São devidos emolumentos nos termos do artigo 5º, n.º 3, do Regime Jurídico dos Emolumentos do Tribunal de Contas (7). 

Lisboa, 3 de Novembro de 2010

Os Juízes Conselheiros, - (Helena Abreu Lopes - Relatora) - (Alberto Fernandes Brás) - (João Figueiredo)

Fui presente - (Procurador Geral Adjunto) - (Daciano Pinto)


(1) Cfr. artigos 81.º, alínea f), 99.º, alínea a), e 266.º da Constituição.
(2) Cfr. artigo 2.º, n.º 5, do Código do Procedimento Administrativo.
(3) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março, e alterado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 223/2009, de 11 de Setembro, pelo Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de Outubro, e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de Abril.
(4) Hoje artigos 49.º e 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
(5) O recente acórdão de 20 de Maio de 2010, tirado no processo T-258/06, é bastante esclarecedor nessa matéria.
(6) Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2002, de 28 de Agosto, pela Lei n.º 23/2003, de 2 de Julho, pela Lei n.º 48/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 48/2010, de 19 de Outubro.
(7) Aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/96, de 31 de Maio, com as alterações introduzidas pela Lei nº 139/99, de 28 de Agosto, e pela Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril.