Acórdão n.º 35/2010, de 19 de Outubro de 2010, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1229/2010)

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ACÓRDÃO Nº 35 /2010 - 19.Out.10-1ª S/SS

Processo nº 1229/2010

 

I - OS FACTOS

1. A Câmara Municipal de Viana do Castelo (doravante designada por CMVC ou por CM) remeteu, para efeitos de fiscalização prévia, o contrato de empreitada para "Remodelação e Ampliação do Centro Escolar de Alvarães - Viana do Castelo", celebrado entre o Município de Viana do Castelo e a sociedade "Valentim José Luís & Filhos, Lda.", em 27 de Agosto de 2010, pelo valor de 976 442,07 €, ao qual acresce o correspondente valor em IVA, à taxa legal aplicável.

2. Para além dos factos referidos no número anterior, são dados ainda como assentes e relevantes para a decisão os seguintes:
a) O contrato acima referido foi precedido de concurso público urgente, ao abrigo do disposto no artigo 52.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho, e dos artigos 155.º e seguintes, do CCP (1);
b) Na proposta apresentada pelo Presidente da CMVC para decisão deste órgão diz-se:
« (...) Por acórdão do Tribunal de Contas de 6 de Julho de 2010, foi recusado o visto ao contrato da empreitada relativo à obra de "Remodelação e ampliação do Centro Escolar de Alvarães - Viana do Castelo", com os fundamentos que do mesmo melhor constam, o que obriga esta Câmara Municipal a, em execução do mesmo acórdão, sanear o procedimento dos vícios apontados pelo Tribunal de Contas e a lançar novo concurso para adjudicação da referida empreitada. Considerando, todavia, que a obra em questão é co-financiada por Fundos Comunitários, concretamente pelo Programa ON2  - Novo Norte, tornando-se urgente dar execução física e financeira à respectiva obra, sob pena de ser posto em risco tal financiamento (...)».

Na acta da reunião da CMVC em que a proposta foi apresentada e aprovada diz-se ainda:
"O Presidente da Câmara esclareceu que todo este processo foi dado conhecimento às empresas concorrentes e as mesmas concordaram com esta opção sendo que as mesmas têm hipótese de voltar a ser-lhes adjudicada a empreitada" (2).
c) O critério de adjudicação foi o do mais baixo preço;
d) Foi fixado um prazo de apresentação das propostas de 24 horas;
e) O anúncio de concurso público urgente foi publicado no D.R. n.º 150, II Série, de 4 de Agosto de 2010, tendo sido utilizado o modelo de anúncio de concurso público (não urgente);
f) Questionou-se a CMVC quanto à não observância neste procedimento do disposto no nº 2 do artigo 157º do CCP. A CMVC referiu:
"Aquando da publicação do anúncio do presente concurso urgente de empreitada no Diário da República, ainda não estava acessível o respectivo modelo na INCM, tendo-se utilizado o modelo de concurso público normal.
Por isso, e conforme se pode verificar pelo anúncio publicado, no ponto 14, o prazo de 24 horas contava-se após o lançamento do procedimento na plataforma electrónica, na qual foram disponibilizadas todas as peças do procedimento, nomeadamente projecto (peça essencial para a preparação da proposta), programa de procedimento e caderno de encargos";
g) O prazo de 24 horas, nos termos do nº 9 do anúncio, contava-se a partir da data e hora do envio do anúncio, mas nos termos do seu nº 14 contava-se após o lançamento do procedimento na plataforma electrónica utilizada pela CMVC (3);
h) O anúncio foi enviado para publicação no dia 4 de Agosto de 2010, pelas 11:30:04 (11h 30min 04seg) (4) e foi disponibilizado na plataforma às 15h 54min 43seg (5);
i) No concurso apresentaram propostas cinco empresas: Valentim José Luís & Filhos, S.A. (a adjudicatária), Predilhetes - Construções. Lda., Sociedade de Construções do Bico, Lda. E Habigranja -Construções e Obras Públicas, Lda.

Foram excluídos do concurso quatro concorrentes;

j) Dois concorrentes foram excluídos por terem entregado as propostas fora do prazo (às 16:01:12 e às 16:02:11);
k) Dois concorrentes que, no entender do júri, entregaram a proposta dentro do prazo (às 14:24:20 e às 15:44:51) foram excluídos, um por ter apresentado na sua proposta valor superior ao preço base, e o outro por não ter apresentado plano de segurança e saúde da empreitada;
l) O procedimento de formação do contrato sub judicio, seguiu a seguinte cronologia:

§ Deliberação para a abertura do procedimento - 26 de Julho de 2010;
§ Publicação do anúncio - 4 de Agosto de 2010;
§ Apresentação de propostas - 5 de Agosto de 2010;
§ Elaboração do relatório de avaliação - 9 de Agosto de 2010;
§ Adjudicação pelo Presidente da CM - 11 de Agosto de 2010;
§ Ratificação da adjudicação pela CM - 23 de Agosto de 2010;
§ Celebração do contrato - 26 de Agosto de 2010;

m) O prazo de execução da obra é de 12 meses.

II - FUNDAMENTAÇÃO

3. Estabelece o nº 2 do artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de Junho:
"Pode adoptar-se o procedimento do concurso público urgente, previsto nos artigos 155.º e seguintes do Código dos Contratos Públicos (CCP), na celebração de contratos de empreitada, desde que:
a)Se trate de um projecto co-financiado por fundos comunitários;
b)O valor do contrato seja inferior ao referido na alínea b) do artigo 19.º do CCP; e
c)O critério de adjudicação seja o do mais baixo preço."

4. Como se sabe, nos artigos 155.º e seguintes do CCP, estabelece-se um procedimento de concurso público urgente para, em caso de urgência, se proceder à celebração de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis ou de serviços de uso corrente.
Entendeu o legislador alargar a possibilidade de se recorrer ao mesmo procedimento, para a celebração de contratos de empreitada, durante a vigência do Decreto-Lei n.º 72-A/2010, desde que se verifiquem os pressupostos fixados nas alíneas a) a c) do nº 2 do seu artigo 52º.
O recurso a esta possibilidade pressupõe, naturalmente, face ao disposto no artigo 155º do CCP, que se esteja em caso de urgência.

5. Tenha-se ainda presente que  o artigo 157º do CCP estabelece que o anúncio do concurso público urgente deve seguir modelo  a aprovar por portaria e que o programa do concurso e o caderno de encargos devem constar do anúncio.
Relembre-se ainda que o artigo 158º do mesmo código dispõe que o prazo mínimo para apresentação de propostas é de 24 horas.

6. Analisado o processo, pode concluir-se que os pressupostos fixados nas alíneas a) a c) do nº 2 do citado e transcrito artigo 52º se encontram verificados: trata-se de um projecto co-financiado por fundos comunitários, o seu valor é inferior ao limiar que releva no caso, e o critério de adjudicação foi o do mais baixo preço.

7. Verificados os pressupostos do citado artigo 52º, impõe-se saber se se está perante um caso de urgência. Para esse efeito, releva o que foi dito na proposta para decisão de autorização do procedimento e que acima foi transcrito na alínea b) do nº 2: tornava-se urgente dar execução física e financeira à  obra, sob pena de ser posto em risco o financiamento comunitário.
As questões do financiamento comunitário surgem assim, no presente processo, invocadas na verificação de dois pressupostos. No da alínea a) do nº 2 do artigo 52º (é um  projecto co-financiado por fundos comunitários) e no do artigo 155º do CCP (o risco de se perderem os financiamentos comunitários, tornava o procedimento de formação deste contrato um caso de urgência).
Se o pressuposto da alínea a) está objectivamente verificado, numa primeira abordagem podemos admitir estar igualmente perante um  caso de urgência,  pese embora a urgência invocada não esteja factual e documentalmente demonstrada.
Continuemos, pois.

8. O anúncio publicado obedeceu ao modelo de concurso público (não urgente), dado que a portaria prevista no nº 1 do artigo 157º do CCP ainda não foi publicada. Nada de censurável existe nessa solução adoptada pela CMVC. Contudo, o nº 2 do mesmo artigo é peremptório na exigência de que os documentos do procedimento devem constar do anúncio. É compreensível a razão de tal exigência. Havendo urgência, os potenciais interessados no procedimento devem de imediato aceder aos seus documentos. Tanto mais que, por força do disposto no nº 2 do artigo 156º do CCP, não se aplica neste procedimento o artigo 133º que trata precisamente da consulta e fornecimento das peças do procedimento. Argumenta a CMVC (6) de que fez constar do anúncio a referência de que o prazo se contava a "após o lançamento do procedimento na plataforma electrónica, na qual foram disponibilizadas todas as peças do procedimento".
Acontece, pois, que não se fez expressamente constar do anúncio a notícia de que as peças estavam assim disponibilizadas. Dir-se-á que um interessado mediano, na medida em que tinha de saber qual o fim do prazo, consultaria necessariamente a plataforma e aí descobriria então os documentos.
Porém, relembre-se que o anúncio era ambíguo nessa matéria, pois como acima se viu na alínea g) do nº 2, se nos termos do seu nº 14 o prazo se contava após o lançamento do procedimento na plataforma electrónica utilizada pela CMVC, nos termos do nº 9, contava-se a partir da data e hora do envio do anúncio.
Isto é: a contradição constante do anúncio em matéria de fixação do prazo, neste concreto contexto de concurso urgente, com um prazo curtíssimo para apresentação de propostas, pode ter contribuído para a redução do universo de potenciais concorrentes, confundidos com indicações diferentes em matéria de contagem do prazo. E por via desse facto, dificultou-se o acesso aos documentos concursais.
Acontece ainda que o artigo 135º do CCP estabelece como momento inicial de contagem dos prazos para apresentação das propostas o do envio do anúncio. Um conhecedor mediano das disposições do CCP pode ter sido ou poderia ter sido pois levado a atender ao disposto no nº 9 do anúncio e não ao nº 14. E seria só por via deste, que descobriria os documentos do procedimento. Também, por aqui se deve concluir que não se facilitou o acesso aos documentos. E como já se disse o legislador quis que tal acesso fosse imediato a quem acedesse ao anúncio.

Ocorreu pois violação do disposto no nº 2 do artigo 157º.

9. Veja-se ainda uma outra questão: foi fixado um prazo de 24 horas para apresentação de propostas.
Relembre-se que se trata de um concurso para a celebração de um contrato de empreitada. Sublinhe-se que o valor do contrato ronda um milhão de euros. Tenha-se em conta que o prazo de execução da obra é de 12 meses. Isto é: trata-se de uma obra com alguma dimensão.
Não pode deixar de perguntar-se: é aceitável que para a formação de um contrato com estas características se estabeleça um prazo de 24 horas para apresentação de propostas? Propostas para uma empreitada, que têm de corresponder a um determinado projecto e a um concreto caderno de encargos?

Dir-se-á: a lei admite que o prazo mínimo nos concursos urgentes seja esse.

É verdade. Contudo, a lei estabeleceu tal prazo como mínimo. Isto é: aos responsáveis administrativos compete estabelecer o concreto prazo respeitando tal mínimo, mas também as necessárias condições de observância de outras disposições legais e dos princípios básicos da contratação pública. Designadamente, os princípios da igualdade e da concorrência, fixados no nº 4 do artigo 1º do CCP, mas igualmente na Constituição (7).
Ora, é evidente que para a formação de um contrato de empreitada, é impossível num prazo de 24 horas para apresentação de propostas estarem asseguradas condições de igualdade e de leal concorrência entre os potenciais interessados em apresentar propostas.
Aliás, da cronologia do procedimento que acima se destacou na alínea l) do nº 2 - e que poderia igualmente suscitar alguma reflexão sobre se se estava efectivamente perante um caso de urgência - resulta que entre a deliberação para abertura do procedimento e a celebração do contrato decorreu um mês. E nesse mês, só um dia (24 horas) foi destinado à publicitação do procedimento e à apresentação de propostas. É manifestamente desequilibrado!
A fixação de um prazo de 24 horas, para apresentação de propostas, neste concreto procedimento, viola pois os princípios da igualdade e da concorrência, fixados no nº 4 do artigo 1º do CCP.

10.O estabelecimento de um prazo curtíssimo para a apresentação de propostas, associado à contradição existente no anúncio em matéria de contagem do prazo e às dificuldades que daí podem ter resultado no acesso aos documentos concursais, contribuem para se perceber por que de cinco candidatos vieram a ser excluídos quatro.
E note-se: estes quatro candidatos nem se contavam de entre os que concorreram ao procedimento anterior de que resultou o contrato com o mesmo objecto, que não teve decisão favorável em sede de fiscalização prévia (8).
Não surpreende por isso que o adjudicatário, neste procedimento, seja o mesmo que constava no anterior contrato.
Só formalmente decorreu um procedimento concursal: substancialmente não houve um processo concorrencial. E as explicações que acima se registaram na alínea b) do nº 2 (9) e os resultados obtidos militam a favor desta conclusão.

11.As violações de lei acima identificadas ofendem os princípios da concorrência e da igualdade de oportunidades dos operadores económicos. Princípios cuja observância permitem também obter as melhores propostas para melhor prossecução dos interesses públicos.
Tais violações, podendo ter restringido o universo de potenciais interessados e concorrentes, são igualmente susceptíveis de terem alterado o resultado financeiro do procedimento e consequentemente do contrato.
Enquadram-se, pois, tais violações no disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44º da LOPTC (10), quando aí se prevê "ilegalidade que ... possa alterar o respectivo resultado financeiro."
Refira-se, a propósito, que quando se diz "[i]legalidade que (...) possa alterar o respectivo resultado financeiro"  pretende-se significar que basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração dos resultados financeiros. 

III - DECISÃO

12.Pelos fundamentos indicados, por força do disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 44.º da LOPTC, acordam os Juízes do Tribunal de Contas, em Subsecção da 1.ª Secção, em recusar o visto ao contrato acima identificado.
13. São devidos emolumentos nos termos do artigo 5.º,  n.º 3, do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio, e respectivas alterações. 
Lisboa, 19 de Outubro de 2010                                             

Os Juízes Conselheiros, - (João Figueiredo - Relator) - (António Santos Soares) - (Helena Abreu Lopes) 

Fui presente - (Procurador Geral Adjunto) - (Daciano Pinto)


(1)  Código dos Contratos Públicos aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 18-A/2008, de 28 de Março e alterado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, pelos Decretos-Lei nºs 223/2008, de 11 de Setembro, 278/2009, de 2 de Outubro, e pela Lei nº 3/2010, de 27 de Abril. 
(2) No procedimento anterior foram admitidas as propostas apresentadas por: Valentim José Luís & Filhos, S.A. (a então adjudicatária), Sá Machado & Filhos, S.A., Vodul - Sociedade de Construções, S.A., Habitilima - Sociedade de Construções e José Gomes Borlido, Lda. (vide processo nº 543/2010, ps. 127). 
(3) No nº 7 do programa estabeleceu-se também esta regra. 
(4) Vide nº 11 do anúncio publicado. 
(5) Vide relatório de avaliação a p. 15 do processo. 
(6) Vide acima a alínea f) do nº 2. 
(7) Vide nº 2 do artigo 266º e a alínea f) do artigo 81º da CRP. 
(8) Vide acima a alínea i) do nº 2 e a nota de rodapé 2. 
(9) Relembre-se que "foi dado conhecimento às empresas concorrentes e as mesmas concordaram com esta opção sendo que as mesmas têm hipótese de voltar a ser-lhes adjudicada a empreitada".  
(10) Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas: Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 87-B/98, de 31 de Dezembro, 1/2001, de 4 de Janeiro, 55-B/2004, de 30 de Dezembro, 48/2006, de 29 de Agosto, 35/2007, de 13 de Agosto, e 3-B/2010, de 28 de Abril.