Acórdão n.º 31/2010, de 28 de Setembro de 2010, da Subsecção da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 772/2010)

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ACÓRDÃO Nº 31 /10 - 28.SET.2010 - 1.ª S/SS

Proc. nº 772/2010

  

I - RELATÓRIO

O Hospital Garcia de Orta, EPE, doravante também designado por Hospital, remeteu, para efeitos de fiscalização prévia, o "Contrato de aluguer de equipamento de angiografia digital directa" celebrado, em 26 de Maio de 2010, entre si e a empresa "SIEMENS, SA", pelo valor de € 1.347.470,96 acrescido de IVA.

II - MATÉRIA DE FACTO

Para além do facto referido em I, relevam para a decisão os seguintes factos, que se dão como assentes:

A) Por Despacho Conjunto do Secretário de Estado do Tesouro e Finanças e do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, datado de 10 de Agosto de 2009, foi autorizado um projecto de investimento apresentado pelo Hospital Garcia de Orta, EPE para aquisição de dois equipamentos de angiografia digital, pelo valor de 2.045.000,00 € acrescido de IVA;

B) O contrato supra referido foi precedido de concurso público, cujo aviso de abertura foi publicado na 2ª Série do Diário da República de 28 de Agosto de 2009, nos jornais Público e Diário de Notícias, ambos de 4 de Setembro de 2009, bem como no Jornal Oficial da União Europeia (JOUE), também de 4 de Setembro de 2009;

C) De acordo com o artigo 1º, do Programa de Concurso (PC), o procedimento que antecedeu o contrato, tinha em vista o aluguer, pelo Hospital, de 1 (um) equipamento de angiografia digital directa, através de um contrato de leasing operacional, ou, em alternativa, a aquisição deste equipamento, através de um contrato de aquisição de bens;

D) Nos termos do artigo 5º, nº2, do Caderno de Encargos (CE), no caso de o Hospital optar pela celebração de um contrato de leasing, ao fim de 6 (seis) anos, após a entrega do equipamento, o Hospital tinha a opção de compra do mesmo, pelo valor residual de € 1 (um euro);

E) Apresentaram-se ao concurso quatro concorrentes ("Philips Portuguesa, SA", ""Siemens, SA", "General Electrics, SA" e "Toshiba Medical Sistems, SA"), tendo sido excluído o concorrente "Toshiba Medical Sistems, SA";

F) De acordo com os artigos 1º, nº2 e 19º do Programa de Concurso (PC), o critério de adjudicação, para a "Opção Leasing Operacional" é o da proposta mais vantajosa e considera a ponderação dos seguintes factores:

FACTOR

SUB-FACTOR

DETALHES do SUB-FACTOR

PREÇO (P) 60%

P=(24xVc+V-Vr)-Vr

Sendo V=(Vd+Vm)

Vc - Valor trimestral apagar pelo equipamento especificado

Vd - Valor das obras de desmontagem do equipamento actual

Vm - Valor das obras e montagem do equipamento novo

Vr - Valor de retoma do equipamento existente

Vr - Valor residual de opção de compra por parte do Hospital após o fim do Leasing. Este valor é obrigatoriamente de €1.

CARACTERÍSTICAS TÉCNICAS (CT) 30%

CT=0,15r1+0,075r2+0,075R3

R1 - Relação dose/qualidade de imagem

R2 - Relação resolução/dimensão da matriz para as várias especialidades que utilizam o equipamento

R3 - Valorização do DQE>72%

PRAZO DE ENTRADA EM FUNCIONAMENTO DO EQUIPAMENTO (PF) 10%

(Tf-Tc) 5%

(Tf-Tp) 5%

Tc - Data da assinatura do contrato

Tf - Data da entrada em funcionamento normal do equipamento

Tp - Data de paragem do equipamento existente

 

G) Segundo o artigo 20º do PC, no factor "Preço" considera-se que "a máxima valorização corresponde à proposta com o preço mais baixo", sendo que "a valorização das restantes propostas será efectuada em relação à proposta mais baixa".
No que respeita ao factor "Características Técnicas" prevê-se que "a valorização será feita por comparação, de acordo com os critérios e subcritérios".
Quanto ao factor "Prazo de entrada em funcionamento do equipamento"prevê-se que "a valorização será feita por comparação, de acordo com os critérios e subcritérios";

H) Em 13 de Outubro de 2009, a entidade adjudicante procedeu à rectificação do anexo I ao Caderno de Encargos, informando, seguidamente, os concorrentes, por fax, de que, onde se lia "A distância do isocentro do arco C ao solo, assim como a distância foco-detector de imagem deverão ser variáveis" deveria ler-se "A distância foco-detector de imagem deverá ser variável";

I) A rectificação referida na alínea anterior, foi prestada, apenas por fax, a todos os candidatos ao concurso que haviam adquirido cópia do Caderno de Encargos;

J) De harmonia com o disposto no artigo 10º, nº1, do PC, o prazo para a apresentação das propostas, no âmbito do concurso público que antecedeu o contrato aqui em apreço, era de 47 dias, a contar da data do envio do anúncio ao Serviço de Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, e terminava às 16,30 horas do 20 de Outubro de 2009;

K) No Relatório final, datado de 23 de Outubro 2010, o Júri do procedimento considerou que a proposta que apresentava a ponderação mais elevada era a da empresa "SIEMENS, SA", quer na modalidade de aquisição, quer na modalidade de aluguer do equipamento, sendo que, através de um estudo comparativo entre as duas modalidades, a modalidade de aquisição (quanto ao concorrente "SIEMENS, SA") implicava um custo de € 1.249.309,20 e que a modalidade de aluguer (quanto ao mesmo concorrente) implicava um custo de 1.324.498,40 €.

L) Por deliberação tomada em 26 de Maio de 2010, o Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta, EPE adjudicou o fornecimento do equipamento (1) à empresa "SIEMENS, SA", na modalidade de aluguer, pelo valor de 1.345.298,48 acrescido de IVA;

M) Na sequência de devolução do contrato efectuada por este Tribunal, no âmbito da instrução do processo, o Hospital veio a reconhecer ter havido um erro no valor subjacente à deliberação de adjudicação e remeteu nova deliberação, tomada em 8 de Julho de 2010, referindo o valor de 1.347.470,96 €;

N) A decisão de adjudicação foi notificada apenas a três concorrentes, não tendo sido notificada ao concorrente cuja proposta havia sido excluída;

O) Nos termos da cláusula 1ª do contrato, ora em apreço, este tem em vista o aluguer de um equipamento de Angiografia Digital Directa Artis Zee Biplanar, munido da opção 3 constante da proposta da empresa "SIEMENS, SA", denominada "Mesa com Movimento Automático";

P) Nos termos dos nºs 3 e 4, da cláusula 3ª do contrato, o Hospital autoriza, desde logo, a empresa "SIEMENS, SA" a ceder a sua posição contratual ao Banco Português de Investimento, SA (BPI, SA), sendo que esta cessão é parcial e limitada à obrigação de financiamento do equipamento, que, para este efeito, é vendido pela empresa "SIEMENS, SA" ao Banco BPI, SA;

Q) De acordo com nº 6, da mesma cláusula 3ª do contrato, em consequência da cessão de posição contratual, o Hospital aceita expressamente que a sua obrigação de pagamento do aluguer do equipamento seja transmitida para o Banco BPI, SA;

R) De acordo com a cláusula 4ª do contrato, o prazo de vigência deste é de 6 (seis) anos, acrescido do período que medeia entre a sua assinatura e a entrada em funcionamento do equipamento;

S) Nos termos da cláusula 7ª do contrato, pelas obras de desmontagem do equipamento actual - a cargo da empresa "SIEMENS, SA" - o Hospital pagará a esta empresa a quantia de 3.640,00 €, acrescida de IVA;

T) De acordo com a cláusula 8ª do contrato, pelas obras de montagem do equipamento novo - a cargo da empresa referida na alínea anterior - o Hospital pagará à empresa "SIEMENS, SA", a quantia de 38.129,20 €, acrescida de IVA;

U) Nos termos da cláusula 10ª do contrato, e até ao termo da vigência deste, a empresa "SIEMENS, SA" tem o dever de suportar todos os custos de manutenção do equipamento, garantindo esta empresa uma taxa de disponibilidade do equipamento de 95%, aferida anualmente e na qual se contabilizam apenas os dias úteis;

V) De acordo com a cláusula 12ª do contrato, ao fim de 6 (seis) anos após a entrada em funcionamento do equipamento, o Hospital tem a opção de compra do mesmo, pelo valor residual de 1 €;

W) Nos termos da cláusula 18ª do contrato, pela utilização do equipamento é devida uma prestação trimestral, constituída por duas partes, com os seguintes montantes, a que acresce o IVA:
a) Componente financeira - 39.262,57 €;
b) Componente manutenção - 15.141,67 €;

X) Ainda nos termos da mesma cláusula 18ª do contrato, os juros, incluídos na componente financeira, foram calculados à taxa Euribor a três meses, em vigor no dia 13-10-2009, ou seja, 0,742%, acrescida de um spread fixo de 2,5%, ajustados em função da variação dessa taxa;

Y) De acordo com a cláusula 19ª do contrato, a revisão do valor da componente financeira do aluguer, a partir e incluindo a que se vence no final do 1º período, será indexada trimestralmente à Euribor a três meses em vigor na data do início do respectivo período;

Z) Segundo a cláusula 20ª do contrato, aos 30 dias de cada mês, o Banco BPI, SA facturará ao Hospital o aluguer devido nos termos da cláusula 18ª;

AA) De acordo com a cláusula 21ª do contrato, a prestação trimestral devida nos termos da cláusula 18ª, será paga pelo Hospital aos 30 dias de cada mês, com início no final do mês seguinte, do segundo trimestre após o início do contrato;

III - O DIREITO

Suscitam-se, no presente processo, as seguintes questões:

a) Uma questão relacionada com o modelo de avaliação das propostas, no que se refere aos factores do critério de adjudicação "Preço", "Características técnicas" e "Prazo de entrada em funcionamento do equipamento";
b) Uma outra questão relacionada com a notificação da decisão de adjudicação;
c) Uma terceira questão relativa ao tempo e ao modo como foi efectuada uma rectificação ao Caderno de Encargos;
d) Uma quarta questão relacionada com a configuração do contrato como um contrato de locação financeira e a (im) possibilidade legal de o mesmo ser celebrado entre as partes que o subscreveram

2. Veremos, em primeiro lugar, a questão atinente ao modelo de avaliação das propostas, no que se refere aos factores do critério de adjudicação "Preço", "Características técnicas" e " Prazo de entrada em funcionamento do equipamento", tendo em conta o que consta da matéria de facto dada por assente na alínea G) do probatório.
Recorde-se que, na pontuação do factor "Preço", do critério de adjudicação, foi estabelecido que se considera que a máxima valorização corresponde à proposta com o preço mais baixo e que a valorização das restantes propostas será efectuada em relação à proposta mais baixa.
No que concerne aos factores "Características técnicas" e "Prazo de entrada em funcionamento do equipamento" foi, por seu lado, fixado que a valorização será feita por comparação de acordo com os critérios e subcritérios.
A este respeito, há que ponderar o que dispõe o artigo 139º, nº 4, do Código dos Contratos Públicos (CCP):

Artigo 139º
Modelo de avaliação das propostas
1 - ......................................................................
2 - ......................................................................
3 - ......................................................................
4 - Na elaboração do modelo de avaliação das propostas não podem ser utilizados quaisquer dados que dependam, directa ou indirectamente, dos atributos das propostas a apresentar, com excepção dos da proposta a avaliar.
.........................................................................

Resulta, assim, deste normativo, que não é permitida a definição de fórmulas de avaliação de factores do critério de adjudicação que determinem que a pontuação a atribuir será estabelecida em função da relação com outras propostas, quer por aproximação, quer por distanciamento de cada uma das outras propostas, neste caso relativamente às propostas de mais baixo preço.
Assim, face ao que fica referido e à matéria de facto dada por assente na alínea G) do probatório, mostra-se violado o disposto no artigo 139º, nº4 do Código dos Contratos Públicos.
3. No se refere à questão da notificação da decisão de adjudicação, importa recordar que, como se deu por assente na alínea N) do probatório, tal decisão apenas foi notificada a três concorrentes, sem que o tenha sido ao concorrente cuja proposta havia sido excluída.
Segundo dispõe o artigo 77º, nº1, do CCP, a decisão de adjudicação é notificada, em simultâneo, a todos os concorrentes, sendo que tal notificação deve ser acompanhada do relatório final de análise das propostas, tal como determina o nº 3, do mesmo artigo 77º.
Assim, com a actuação acima descrita, violou, pois, a entidade adjudicante o disposto nos nºs 1 e 3 do citado artigo 77º, do CCP.

4. Vejamos, de seguida, a questão relativa à rectificação efectuada ao Caderno de Encargos.
Como se deixou assente nas alíneas H), I) e J) do probatório, a entidade adjudicante efectuou, em 13 de Outubro de 2009, uma rectificação ao Anexo I ao Caderno de Encargos, sendo que o prazo para a apresentação das propostas era de 47 dias a contar da data do envio do anúncio do procedimento para o Serviço de Publicações Oficiais das Comunidades Europeias e terminava às 16,30 horas do dia 20 de Outubro de 2009.
Por outro lado, essa rectificação foi prestada apenas por fax dirigido aos candidatos que haviam adquirido cópia do Caderno de Encargos.
A este respeito atente-se, primeiramente, no que dispõem os nºs 2, 3 e 4 do artigo 50º, do CCP:

Artigo 50º
Esclarecimentos e rectificação das peças do procedimento
............................................................................
2 - Os esclarecimentos a que se refere o número anterior são prestados por escrito, pelo órgão para o efeito indicado no programa do procedimento, até ao termo do segundo terço do prazo fixado para a apresentação das propostas.
3 - O órgão competente para a decisão de contratar pode proceder à rectificação de erros ou omissões das peças do procedimento nos termos e no prazo previstos no número anterior.
4 - Os esclarecimentos e as rectificações referidos nos números anteriores devem ser disponibilizados na plataforma electrónica utilizada pela entidade adjudicante e juntos às peças do procedimento que se encontrem patentes para consulta, devendo todos os interessados que as tenham adquirido ser imediatamente notificados desse facto.
....................................................................................

Ora, como resulta da matéria de facto dada por assente nas citadas alíneas H), I) e J) do probatório, a rectificação ao Caderno de Encargos, que ocorreu em 13-10-2009, foi efectuada para além do segundo terço do prazo fixado para a apresentação das propostas.
Por outro lado, tal rectificação apenas foi notificada, por fax,- mas, portanto, também para além do segundo terço do dito prazo - aos concorrentes que haviam adquirido cópia do mesmo Caderno de Encargos, não tendo sido disponibilizada na plataforma electrónica utilizada pela entidade adjudicante.
Deste modo, ao ter sido efectuada a referida rectificação na data atrás apontada, violado foi o disposto nos nºs 2 e 3 do mencionado artigo 50º, do CCP.
Por outra parte, deve assinalar-se que quando a rectificação prevista no citado artigo 50º, seja comunicada para além do prazo estabelecido para o efeito, naqueles nºs 2 e 3, o prazo fixado para a apresentação das propostas deve ser prorrogado, no mínimo, por período equivalente ao do atraso verificado, tal como estabelece o artigo 64º, nº1, do mesmo CCP:

Artigo 64º
Prorrogação do prazo fixado para a apresentação das propostas
1 - Quando as rectificações ou os esclarecimentos previstos no artigo 50º, sejam comunicados para além do prazo estabelecido para o efeito, o prazo fixado para a apresentação das propostas deve ser prorrogado, no mínimo, por período equivalente ao do atraso verificado.
...............................................................

A omissão desta formalidade tipifica a violação do disposto nos artigos 50º, nºs 2, 3 e 4 e 64º, nº1, ambos do CCP, circunstância que põe em causa o respeito pelos princípios da legalidade e da concorrência, uma vez que pode impedir o acesso ao concurso de eventuais interessados, e, nessa decorrência, alterar o resultado financeiro do contrato.

5. Vejamos, por fim, a última das questões acima elencadas, ou seja a da configuração do contrato como uma locação financeira, e que é aquela que suscita as consequências jurídicas mais relevantes.
Como resulta do probatório, designadamente da matéria de facto dada por assente nas alíneas O), P), Q) e V), o presente contrato - celebrado entre o "Hospital Garcia de Orta, EPE" e a empresa "SIEMENS, SA" - tem em vista o aluguer, por esta empresa, de um equipamento de Angiografia Digital Artis Zee Biplanar com "Mesa com Movimento Automático".
Por outro lado, segundo a cláusula 3ª do contrato, o Hospital autoriza e aceita que a dita empresa ceda a sua posição contratual ao banco "BPI, SA.", cessão esta limitada à obrigação de financiamento do equipamento que, para este efeito, é vendido pela empresa ao citado banco.
Além disso, em consequência da cessão de posição contratual, o Hospital aceita também, expressamente, que a sua obrigação de pagamento do aluguer do equipamento seja transmitida em favor do "BPI, SA.".
Por outra parte, e segundo o estabelecido na cláusula 12ª do contrato, ao fim de seis anos após a entrada em funcionamento do equipamento, o Hospital tem a opção de compra deste, por €1 (um euro).
Com os factos atrás descritos, estamos aqui perante um contrato de locação de bens móveis, cuja noção consta do artigo 431º, do CCP:

Artigo 431º
Noção
1 - Entende-se por locação de bens móveis o contrato pelo qual um locador se obriga a proporcionar a um contraente público o gozo temporário de bens móveis, mediante retribuição.
2 - Para efeitos do presente capítulo, a locação de bens móveis compreende a locação financeira e a locação que envolva a opção de compra dos bens locados.
Como se refere no nº2, deste artigo 431º, entre os contratos de locação de bens móveis, encontram-se a locação financeira e a locação que envolve a opção de compra dos bens locados.
Ora, perante os factos dados por assentes, vejamos se devemos caracterizar este contrato, como um contrato de locação financeira.


5. 1. A regulamentação do contrato de locação financeira surge com a publicação de legislação relativa às sociedades de locação financeira e foi efectuada através do DL nº 171/79 de 6 de Junho.
Este diploma legal veio a ser revogado pelo DL nº 149/95 de 24 de Junho, (2) o qual veio a introduzir significativas alterações no regime jurídico do contrato de locação financeira, com o objectivo - definido no seu preâmbulo - de adaptá-lo às exigências de um mercado caracterizado pela crescente internacionalização da economia portuguesa e pela sua integração no mercado único europeu.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 1º do DL nº 149/95 de 24 de Junho, o contrato de locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.
Para melhor descortinar as motivações e os objectivos deste tipo contratual, importará efectuar uma breve excursão histórica.
Como se disse no Acórdão nº 49/99, de 21 de Dezembro de 1999, deste Tribunal, em Plenário, (3) a locação financeira surge nos Estados Unidos da América no início da década de 50, com a constituição, em San Francisco, da primeira sociedade de "leasing". (4)
A figura chegou à Europa no início da década de 60, igualmente com a constituição das primeiras sociedades de "leasing", em Inglaterra, na França e na Itália.
Em todas as situações, a locação financeira apresenta-se como uma forma de financiamento das empresas, diversa quer do simples recurso ao crédito (crédito bancário, emissão de obrigações ou outros tipos de empréstimo), quer da utilização de lucros, quer ainda do aumento do capital social. (5)
Uma outra vantagem da locação financeira - que é unanimemente reconhecida - é a de proporcionar às empresas e serviços, que a ela recorrem, o acompanhamento da evolução tecnológica através da substituição de equipamentos que, em pouco tempo, se tornam obsoletos.
Esta forma de financiamento apresenta, por outro lado, grandes vantagens quer para o locador, quer para o locatário e, especialmente, para este.
Desde logo porque, como salientou o aresto atrás referido, e que, nesta parte seguiremos de perto, lhe aumenta a capacidade de endividamento sem que figure, como tal, no balanço ou nas contas. Depois, porque a sua obtenção é mais rápida, dado serem, em regra, menores as exigências das sociedades financeiras autorizadas a celebrar esse tipo de contratos.
Além disso, permite ao locatário uma gestão financeira mais flexível e planeada, já que, normalmente, a locação financeira se configura como um crédito de médio ou longo prazo.
Para o locador, as vantagens situam-se, fundamentalmente, ao nível das garantias, pois que é sua a propriedade dos bens locados.

5. 2. Nos termos do disposto no artigo 2º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92 de 31 de Dezembro (6) são instituições de crédito as empresas cuja actividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria, mediante a concessão de crédito.
De acordo com o artigo 3º, als. a) e g) do referido Regime Geral, entre as instituições de crédito contam-se os bancos e as sociedades de locação financeira.
Entre outras actividades, os bancos podem efectuar locação financeira, nos termos do artigo 4º, nº1, al. b) do citado Regime Geral.
Por seu lado, as sociedades de locação financeira, nos termos do artigo 1º, do DL nº 72/95 de 15 de Abril, na redacção dada pelo DL nº285/2001 de 3 de Novembro, são instituições de crédito que têm por objecto principal o exercício da actividade de locação financeira.
De acordo com previsto no artigo 8º, nº2, do Regime Geral aprovado pelo mencionado DL nº 298/92 de 31 de Dezembro, só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as actividades referidas nas alíneas b) a i) (salvo a consultoria em gestão de patrimónios não constituídos por valores mobiliários) do artigo 4º, do mesmo diploma legal, e entre as quais se encontram a concessão de garantias, a locação financeira e o factoring.

5. 3. Vejamos, de seguida, se da noção de contrato de locação financeira estabelecida no artigo 1º do já citado DL nº 149/95, resulta como finalidade do contrato, a concessão de crédito.
As partes, num contrato de locação financeira, são, de um lado, o locador (banco ou sociedade de locação financeira) e, do outro, o locatário (empresas, particulares ou o Estado).
Quando o locatário carece de um determinado bem (móvel ou imóvel) e não dispõe de meios financeiros que lhe permitam adquiri-lo, depois de o escolher, dirige-se ao locador com o objectivo de que este o adquira ou construa e lhe ceda temporariamente o gozo, mediante uma retribuição (renda).
Aceite o negócio, o locador compra o bem em causa ao proprietário, e mediante um contrato de locação financeira, cede o gozo do bem ao locatário, reservando para si a propriedade do mesmo, propriedade esta que, desde logo, promete transmitir para o locatário, através de um contrato de compra e venda, e por um preço fixado (valor residual), caso este manifeste essa opção no final do período temporal contratado.
Deste modo, apesar de o locatário poder vir a comprar o bem no final do contrato, a opção de compra não é uma imposição que recai sobre o locatário, mas ao invés, uma faculdade de que este dispõe e que pode, ou não, exercer.
Nisto se distingue a locação financeira, do contrato de compra e venda: através deste adquire-se, de imediato, a propriedade do bem objecto do contrato (vide os artigos 874º e 876º, al. a), do Código Civil).
O que se pretende com o contrato de locação financeira é, afinal, a obtenção dos meios financeiros necessários para conseguir o uso de um bem, para cuja compra não se dispõe, no imediato, dos suficientes meios de pagamento.
Assim, não há dúvida de que o contrato de locação financeira, tanto para o locador, como para o locatário, encerra a prestação de um serviço financeiro.

6. No caso que nos ocupa, e tendo em conta a matéria de facto dada por assente, designadamente nas alíneas O) a R), V) a W e AA) do probatório, o que acontece é que o "Hospital Garcia de Orta, EPE" carece de um equipamento de angiografia digital directa e não dispõe dos meios financeiros que lhe permitam adquiri-lo através de um contrato de compra e venda.
Depois de escolhido, quer o equipamento, quer o respectivo fornecedor (a empresa "SIEMENS, SA"), o Hospital contrata com este, o seu aluguer.
Porque o fornecedor carece de obter, de imediato, o valor do equipamento, o Hospital autoriza a empresa "SIEMENS, SA" (fornecedor do equipamento) a ceder a sua posição contratual ao banco "BPI, SA.", apenas quanto à obrigação de financiamento do equipamento, que, para este efeito, é vendido ao citado banco.
A empresa "SIEMENS, SA" vende, portanto, ao "BPI, SA.", o equipamento, aceitando o Hospital, expressamente, que a sua obrigação de pagamento do aluguer se transmita ao referido banco.
Por outro lado, e ainda de acordo com a matéria de facto dada por assente (vide alínea V) do probatório), ao fim de seis anos após a entrada em funcionamento do equipamento, o Hospital tem a opção de compra do mesmo pelo valor residual de €1 (um euro).
Estamos, pois, perante um verdadeiro contrato de locação financeira, em que o locatário (o Hospital) obtém a cedência, por seis anos, do gozo de um bem móvel (o equipamento médico), mediante retribuição, bem móvel esse que o Hospital pode adquirir, no final do contrato, através da compra do mesmo, pelo valor residual de um euro.
Só que, no contrato ora submetido a fiscalização prévia, os contratantes são o Hospital e a empresa "SIEMENS, SA", e, nesse instrumento contratual, se estipula o aluguer do equipamento - e respectivo pagamento - nas condições previstas nas cláusulas 3ª, 12ª e 18ª a 21ª do dito contrato (vide as alíneas P), Q), V), W), Z) e AA) do probatório).
Ora, como vimos, e tendo em conta o disposto no artigo 8º, nº2, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92 de 31 de Dezembro, só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, a actividade de locação financeira.
Nesta conformidade, por não ser uma instituição de crédito, nem uma sociedade financeira, não está a empresa "SIEMENS, SA", - parte no contrato celebrado com o "Hospital Garcia de Orta, EPE", - legalmente autorizada a celebrar contratos de locação financeira.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 294º do Código Civil, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal imperativa, são nulos.

7. Além disso, há que observar que a assunção da posição de locadora, pelo "BPI, SA.", ocorreu na sequência da cessão da posição contratual que lhe foi transmitida pela "SIEMENS, SA".
Porém, para salvaguarda dos princípios da legalidade, da igualdade, da concorrência e da transparência - princípios estes com assento nos artigos 81º, al. f), 266º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 3º, 5º e 6º-A do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e 1º, nº4, do Código dos Contratos Públicos (CCP) - a celebração de um contrato de locação financeira, devia ter sido antecedida da realização do adequado procedimento pré-contratual, para que se garantisse, por um lado, o mais amplo acesso ao procedimento, pelos interessados, e, por outro, a igualdade de tratamento e a transparência, no que concerne à escolha da melhor proposta, entre as apresentadas pelos concorrentes, além de uma equilibrada concorrência entre as empresas.
Ora, no caso presente, e atendendo ao respectivo valor, deveria ter sido seguido um concurso público ou um concurso limitado por prévia qualificação, face ao disposto nos artigos 20º, nº1, al. b), 432º e 437º do CCP, pelo que, omitindo-se a realização de um concurso, restringiu-se o universo dos potenciais candidatos.
Assim, no caso em apreço, poderá dizer-se que, pretendendo o Hospital adquirir o equipamento, em regime de locação financeira, deveria ter adoptado um dos seguintes procedimentos:

a) Mediante a realização de concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, com publicação de anúncio no JOUE, seleccionar o fornecedor do equipamento e, de seguida, mediante o procedimento pré-contratual adequado, seleccionar a instituição financeira locadora, sendo que seria a locadora seleccionada, por indicação do Hospital, que compraria à "SIEMENS, SA" (empresa fornecedora) e outorgaria o contrato de locação com o Hospital, ou
b) No âmbito do mesmo concurso público, ou concurso limitado por prévia qualificação, com publicação de anúncio no JOUE, seleccionar quer o fornecedor do equipamento, quer a instituição de crédito ou a sociedade financeira que financiaria a operação, procedendo à análise das propostas em cada uma das vertentes (fornecimento do equipamento e financiamento).

8. A falta de concurso público, ou de concurso limitado com prévia qualificação, quando legalmente exigíveis, como é o caso dos autos, torna nulo o acto de adjudicação e o subsequente contrato, por preterição de um elemento essencial (artigos 133º, nº1 do CPA e 284º, nº2 do CCP).
A nulidade é, nos termos do artigo 44º, nº3, al. a), da Lei nº 98/97 de 26 de Agosto, fundamento de recusa de visto.
Perante a existência de nulidade - com as consequências supra referidas - prejudicada está a análise e a caracterização dos efeitos jurídicos decorrentes da violação das normas mencionadas nos pontos 2. a 5. deste acórdão.  

IV - DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal de Contas, em subsecção, em recusar o visto ao contrato.
São devidos emolumentos (Artigo 5.º, nº3, do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei n.º 66/96, de 31 de Maio). 

Lisboa, 28 de Setembro de 2010.

Os Juízes Conselheiros - (António M. Santos Soares - relator) - (Helena Abreu Lopes) - (Alberto Fernandes Brás)

Fui presente - O Procurador-Geral Adjunto - (Daciano Pinto)


(1) Incluindo uma mesa com movimento automático no valor de 20.800 €, acrescido de IVA.
(2) Este diploma foi objecto das alterações que lhe foram introduzidas pelos DL nºs 265/97 de 2 de Outubro, 30/2008 de 25 de Fevereiro e 285/2001 de 3 de Novembro. 
(3) In Recurso Ordinário nº 19/99. 
(4) Veja-se DIOGO LEITE DE CAMPOS, "A Locação Financeira", Lex, Lisboa, 1994, págs. 46 e segs.. 
(5) Cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, ob. e loc. cits.; PEDRO ROMANO MARTINEZ, "Contratos em Especial", ed. Universidade Católica, 1996, págs. 309 e segs. e SEBASTIÃO NÓBREGA PIZARRO e MARGARIDA MENDES CALIXTO, "Contratos Financeiros", ed. Almedina, Coimbra, 1991, págs. 14 e segs.. 
(6) Diploma que sofreu as alterações introduzidas pelos DL nºs 246/95 de 14 de Setembro, 232/96 de 5 de Dezembro, 222/99 de 22 de Junho, 250/2000 de 13 de Outubro, 285/2001 de 3 de Novembro, 201/2002 de 26 de Setembro, 319/2002 de 28 de Dezembro, 252/2003 de 17 de Outubro, 145/2006 de 31 de Julho, 104/20078 de 3 de Abril, 357-A/2007 de 31 de Outubro, 1/2008 de 3 de Janeiro, 126/2008 de 21 de Julho, 162/2009 de 20 de Julho, pela Lei nº 94/2009 de 1 de Setembro, pelo DL nº 317/2009 de 30 de Outubro e pela Lei nº 36/2010 de 2 de Setembro.