Acórdão n.º 19/2010, de 29 de Junho de 2010, do Plenário da 1.ª Secção do Tribunal de Contas (proc. n.º 1961/2009)

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ACÓRDÃO Nº 19 /2010 - 29/Junho - 1ª SECÇÃO/PL

RECURSO ORDINÁRIO Nº 02/2010

(PROCESSO Nº 1961/2009 - 1.ª SECÇÃO)

I. RELATÓRIO

1. GAIASOCIAL - Entidade Empresarial Municipal de Habitação, E.E.M., inconformada com o teor do Acórdão n.º 173/2009, de 21.12, que recusou o visto ao contrato de empreitada de Obra Pública de Reabilitação do Empreendimento Balteiro III e Arranjos Exteriores, em Vilar de Andorinho - Vila Nova de Gaia, celebrado em 09.04.2009 entre a recorrente e o Consórcio constituído pelas empresas "FDO - Projectos, Lda." e "FDO - Construções, S.A." veio do mesmo interpor recurso jurisdicional, concluindo, com relevância, como segue:
(...)
"I) Por Acórdão proferido em 22 de Dezembro de 2009, deliberaram os Ex.mos Senhores Juízes Conselheiros da 1.ª Secção deste Tribunal, recusar o visto ao "Contrato de Empreitada de Obra Pública de Reabilitação do Empreendimento Balteiro III e Arranjos Exteriores - Vilar de Andorinho - Vila Nova de Gaia", remetido a este Tribunal para fiscalização prévia;
II) Consideraram os Senhores Juízes Conselheiros que "[a] s circunstâncias em que foi lançado e decorreu o procedimento [pré-contratual subjacente ao Contrato] são tais que é seguro afirmar que, por força da violação de lei (...), existe uma forte probabilidade de ter sido alterado o resultado financeiro do procedimento e do correspondente contrato (...)";
III) A alegada situação de violação de lei enquadra-se, no entender dos Senhores Juízes Conselheiros, na norma constante da alínea c)do n.º 3 do artigo 44.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (LOPTC);
IV) Entendeu, não obstante, o colégio de Ilustres Senhores Juízes Conselheiros que "face às circunstâncias em que decorreu o procedimento não é possível fazer uso da faculdade que ao Tribunal é dada pelo n.º 4 do artigo 44.º da LOPTC";
V) No Acórdão recorrido não é apontado ao procedimento pré-contratual qualquer vício que seja ao nível do cumprimento da tramitação legalmente exigida;
VI) Sendo, não obstante, referido o incumprimento pela Recorrente de uma norma referente à habilitação pré-contratual dos concorrentes, o qual, porém, não se verificou in casu;
VII) Pelo que, as "circunstâncias em que foi lançado e decorreu o procedimento" visaram o estrito cumprimento da lei e das exigências de publicidade, transparência e concorrência;
VIII Por outro lado, o resultado financeiro do procedimento não foi alterado, não correspondendo por isso aquela afirmação à realidade;
IX A decisão de não concessão do visto não se suporta em quaisquer factos concretos;
X) O Acórdão recorrido não indica as concretas razões de facto ou de direito que estão na base da escolha operada;
XI) Não faz a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela entidade que decide;
XII) Não indica os motivos por que resolve de certa maneira e não de outra, não demonstra as razões que levaram a escolher uma solução em vez de outras, de entre as que lhe estavam facultadas;
XIII) É, assim, nulo o Acórdão recorrido por falta absoluta de fundamentação - cfr. artigos 158.º, 659.º e 668.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil e artigos 123.º, n.º 2, alínea d), 125.º e 133.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo;
XIV) Não se verifica a ilegalidade apontada no Acórdão recorrido, de violação do disposto no n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro;
XV) Consta da matéria factual da decisão recorrida que o ponto III.2.1 do anúncio do concurso e o ponto 6.2 do programa do concurso fizeram referência directa às exigências constantes do citado n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro;
XVI) Não obstante, de tais elementos concursais consta, não apenas a única subcategoria respeitante ao tipo de trabalhos mais expressivo mas várias de tais subcategorias;
XVII) Verifica-se, assim, não uma ilegalidade, mas uma mera irregularidade, aliás assumida pela própria Recorrente, cuja gravidade não se afigura decisiva para a decisão de recusa do visto;
XVIII A exigência de habilitações superiores às legalmente exigíveis não restringiu o universo de potenciais candidatos, já que, de acordo com os dados oficiais, encontram-se inscritas no Instituto Nacional da Construção e do Imobiliário 127 empresas com alvará de classe 7, 43 com alvará de classe 8 e 86 empresas com alvará de classe 9, o que corresponde a um universo de 256 empresas que poderiam ter apresentado propostas no presente concurso;
XIX) A própria Recorrente já recebeu propostas - noutros concursos por si lançados - de 5 empresas com alvará de classe igual ou superior a 7;
XX) Não se verifica, assim, a apontada "restrição - e muito menos flagrante - do universo dos potenciais candidatos";
XXI) Refira-se, por outro lado, que a concreta estipulação da classe que deverá cobrir o valor global da obra em questão se situa na esfera de discricionariedade da entidade adjudicante - a qual se exclui do âmbito dos poderes de pronúncia jurisdicionais -, tendo esta in casu pretendido socorrer-se de maiores garantias ao contratar um empreiteiro com alvará mais elevado;
XXII) Não padece, assim, o contrato "sub Judice" de qualquer ilegalidade susceptível de alterar o seu resultado financeiro, não podendo, por via disso ser enquadrado na hipótese prevista na alínea c) do n.º 3 do artigo 44.º, da LOPTC;
Ainda que assim se não entenda, sempre se dirá que:
XXIII) Entendendo-se que se verifica in casu a hipótese prevista no artigo 44.º n.º 3 c) da LOPTC, sempre deveriam os Senhores Juízes feito uso da faculdade concedida pelo n.º 4 do referido artigo;
XXIV) A fundamentação para o seu não uso constante da decisão recorrida é manifestamente insuficiente;
(...)
XXIX) Não se encontra provado, no caso dos autos, o agravamento do resultado financeiro do contrato;
XXX) A Recorrente nunca foi objecto de qualquer recomendação por parte deste tribunal no âmbito do citado normativo Legal;
XXXI) Razão pela qual se impõe a utilização da faculdade prevista no n.º 4 do artigo 44.º da LOPTC, devendo o contrato em causa ser visado, porventura, com as recomendações julgadas necessárias."
(...)
Termina, peticionando, por um lado, a declaração da nulidade do acórdão recorrido por ausência de fundamentação e a consequente substituição por um outro que conceda o visto ao contrato em apreço e, por outro lado, e em alternativa, o recurso à faculdade contida no art.º 44.º, n.º 4, da L.O.P.T.C., concedendo o visto ao contrato, embora com recomendações.

2. Aberta Vista ao Ministério Público o ilustre Procurador-Geral Adjunto, em sede de Parecer, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

3. Foram colhidos os vistos legais.
 

II. FUNDAMENTAÇÃO
 

Ao longo do acórdão recorrido considerou-se estabelecida, com relevância para a análise em curso, a factualidade inserta no intróito deste aresto e ainda a seguinte:

1. O contrato em apreço, celebrado em 09.04.2009, foi precedido da realização de concurso público de âmbito nacional, cujo aviso foi publicado em Diário da República, II Série, de 22.07.2008 e nas demais publicações a que se reporta o art.º 52.º, do Decreto-Lei n.º 59/99, de 02.03;
2. O prazo de execução da obra estende-se por um período de 240 dias e a respectiva consignação teve lugar em 11.05.2009;
3. O preço-base fixado nas especificações do concurso e tornado público no Aviso de Abertura foi de €890 000,00, acrescido de IVA;
4. Em matéria de habilitação dos concorrentes, no ponto III. 2.1 do anúncio do concurso e no ponto 6.2 do programa de concurso, são exigidas as 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª, 7.ª e 8.ª subcategorias da 1.ª categoria, as 6.ª e 9.ª subcategorias da 2.ª categoria e as 4.ª, 10.ª e 12.ª subcategorias da 5.ª categoria, da classe 7;
5. Apenas o consórcio adjudicatário apresentou propostas, assumindo-se uma destas como proposta-base e uma outra condicionada relativamente ao prazo de execução estabelecido no caderno de encargos;
6. O consórcio adjudicatário apresentou alvarás de construção que, designadamente, continham as autorizações seguintes:

§ De empreiteiro-geral de edifícios e património construído, da 1.ª categoria, nas classes 8 e 9, mas nas subcategorias 2, 7 e 8, na classe 5;

§ De empreiteiro-geral de obras rodoviárias e de obras de urbanização da 2.ª categoria, na classe 6, e nas subcategorias 6 e 9 nas classes 5 e 3, respectivamente;

§ Na 5.ª categoria, nas subcategorias 4.ª [na classe 2] e 10.ª [na classe 6];

7. Em fase anterior à recusa do visto ora impugnada, a recorrente foi questionada quanto às exigências feitas em matéria de habilitações dos concorrentes, tendo a mesma respondido o seguinte:
"A propósito deste ponto, desde já se reconhece que não devia ter sido dada indicação de qualquer classe, mas sim exigida uma única subcategoria em classe que cobrisse o valor global da proposta. Não obstante, a referência à classe não teve qualquer efeito prático, uma vez que o consórcio adjudicatário se apresentou, de acordo com o preceito legal, com alvará de empreiteiro geral com classe que cobria o valor global da obra e com classe que cobria o valor dos trabalhos para as restantes categorias e subcategorias exigidas. Mais se esclarece que esta questão não suscitou qualquer esclarecimento por parte dos concorrentes.
Contudo, sempre se dirá que, em futuros procedimentos, tal não voltará a suceder e será dada especial atenção ao imposto pelo Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01". 
 

III. DIREITO 
 

Ao longo das conclusões extraídas em sede de alegações do recurso interposto pela recorrente Gaiasocial, E.M., e delimitadoras do objecto deste, equacionam-se questões de que importa conhecer e que sumariamos desta forma:

§ De um lado, o acórdão recorrido carecerá de absoluta falta de fundamentação, facto que, ao abrigo doa art.os 659.º e 668.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, o fere de nulidade e, do outro, o incumprimento da norma contida no art.º 31.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, enforma uma mera irregularidade [que não ilegalidade!], cuja gravidade, por ser insusceptível de alterar o resultado financeiro do contrato, não se mostra decisiva para a recusa do visto.  

Cumpre analisar.

1. Da Fundamentação do Acórdão recorrido.
Questão Prévia. 

a. Da natureza do Acórdão impugnado.

Certamente por lapso, a recorrente admite que as decisões do Tribunal de Contas e, particularmente, o acórdão sob recurso configura uma decisão de carácter administrativo. E, embora não rejeitando que o mencionado acórdão substancie uma "autêntica sentença Jurisdicional" [expressão da recorrente], verifica-se, sintomaticamente, que a recorrente sustenta a ausência de fundamentação bastante em legislação [art.os 268.º, n.º 3, da C.R.P., e art.os 123.º, 125.º, 133.º e 214.º, do Código de Procedimento Administrativo], doutrina [ Santos Botelho, in C.P.A. Anotado, Esteves de Oliveira, in C.P.A. comentado, Vieira de Andrade, in "O dever de fundamentação expressa dos Actos Administrativos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in C.R.P. Anotado, e Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, 10.ª Ed. ] e jurisprudência [ Acórdão do S.T.A., de 26.06.1991, Acórdão do Pleno do S.T.A., de 27.05.1982, e Acórdão do S.T.A., de 04.03.1987] reportada ao acto administrativo.

Importa esclarecer a matéria aduzida, que reputamos de prévia.

a.1.
Nesse sentido e como é sabido [vd. art.º 1.º, da Lei n.º 98/97, de 26.08], sublinha-se que ao Tribunal de Contas compete fiscalizar a legalidade e regularidade das receitas e das despesas públicas, apreciar a boa gestão financeira e efectivar responsabilidades por infracções financeiras.
Ainda no domínio da administração da justiça, incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados [vd. art.º 202.º, da C.R.P.]. E, mais especificamente e por força do ordenamento constitucional [vd. art.º 214.º, da C.R.P.], o Tribunal de Contas, agora integrado na organização dos tribunais em geral, assume-se como o órgão supremo de fiscalização da legalidade da despesa pública e de julgamento das contas, erradicando-se também, e decorrentemente, qualquer dúvida sobre a sua natureza jurisdicional.
Por outro lado, a função jurisdicional surge constitucionalmente identificada com a tarefa da administração da justiça, a qual, conforme já referimos, se projecta em tríplice direcção:

§ A defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, repressão da violação da legalidade democrática e diminuição dos conflitos de interesse públicos e privados [neste sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, C.R.P. Anotada, Tomo III].

E, adentro das posições doutrinárias concernentes ao esclarecimento dos momentos fundamentais da caracterização material da função jurisdicional, entende-se que os actos da função jurisdicional dirigidos à resolução de uma questão jurídica por via da declaração do direito são praticados segundo perspectiva exclusivamente jurídica e prosseguem o interesse público da realização da justiça [vd., ainda, Jorge Miranda e Rui Medeiros, in obra citada].
O acórdão sob recurso integra-se no âmbito da função jurisdicional acima referida, pois, inequivocamente, corporiza um acto juridicamente norteado e dirigido à declaração do direito no âmbito da resolução de uma questão jurídica e, com o mesmo, prossegue o interesse público identificado com a realização da justiça.
O acórdão recorrido, provindo de um Tribunal também beneficiário da reserva de competência para o exercício da função jurisdicional [vd. art.os 202.º e 214.º, da C.R.P.], distingue-se, assim e definitivamente, de um qualquer acto administrativo, o qual, em boa verdade, e na melhor definição que lhe é concedida pelo Código de Procedimento Administrativo [vd. art.º 120.º], tem por finalidade exclusiva ou principal a satisfação de necessidades públicas, a qual não se confunde com a consecução da paz social sobrevinda à declaração do direito pelos tribunais.
A natureza jurisdicional da decisão sob recurso obrigar-nos-á, pois, a atentar na "fundamentação" invocada pela recorrente, mas, obviamente, reportando tal exigência às decisões judiciais que não são de mero expediente [vd. art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa].

b. Da Fundamentação

Segundo o art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas segundo a forma prevista na Lei. Um dever que, segundo motivação indicada pelo legislador constitucional, cumpre uma função de carácter objectivo - pacificação social, legitimidade e auto-controlo das decisões - e uma função de carácter subjectivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários. Ou seja, a fundamentação das decisões dos tribunais constitui condição indispensável do exercício esclarecido do direito ao recurso, o que pressupõe o conhecimento pelo destinatário dos fundamentos de facto e de direito daquelas [vd. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 689].
Por outro lado, e na valoração dos subsídios já desenvolvidos a propósito do dever de fundamentação do acto administrativo, adiantar-se-á que a fundamentação das decisões judiciais deverá ser expressa, clara e coerente e suficiente. Ou seja, uma decisão judicial adequadamente fundamentada não deve deixar ao destinatário o ónus de indagar as razões da decisão, não pode ser obscura ou padecer de vícios lógicos que a tornam ininteligível e, por fim, deve ajustar-se à importância e circunstancialismo a que a mesma se acolhe.
Na densificação da norma contida no citado art.º 205.º, da Constituição da República Portuguesa, o legislador, no âmbito da Lei Processual Civil, aqui aplicável subsidiariamente, sanciona com o vício da nulidade a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão [vd. art.º 668.º, nº 1, al. b)] do Código de Processo Civil].
Enquadrado, normativa e doutrinariamente, o dever de fundamentação das decisões judiciais e delimitado o respectivo conteúdo, importará agora indagar se o acórdão recorrido deu ou não bom cumprimento a tal injunção legal.

b.1.
Analisado o acórdão recorrido, logo se constata que aí se inclui [vd. I.] a enunciação da factualidade dada como assente e relevante para a decisão então proferida, materialidade que, sublinhe-se, a recorrente não colocou em causa e sob qualquer forma. O que se compreende, pois, para além do mais, a mesma encontra-se suportada documentalmente.
Por outro lado, e sob o título "Apreciação" [no domínio do direito], o acórdão recorrido começa por transcrever as normas contidas no art.º 31.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, acervo normativo que disciplina e regula matéria habilitacional no âmbito dos concursos para a realização de empreitadas de obras públicas e no licenciamento municipal. E fá-lo com adequação e oportunidade, pois, indiscutivelmente, aquela regra ocupa lugar central e necessário no âmbito da presente análise que, como bem se intui, incide, básica e essencialmente, sobre a violação ou não daquela disposição legal.
De seguida, e recuperando o percurso efectuado pelo decisor, o acórdão recorrido identifica as exigências decorrentes do mencionado art.º 31.º, n. os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, em matéria habilitacional e, de modo claro e expresso, procede à subsunção da factualidade tida por apurada [e, repete-se, não questionada pela recorrente!] àquela norma, concluindo, a final, que o procedimento a viola ou infringe [vd. II. n. os 4,5 e 10, do acórdão recorrido].

Mais:

Contrariamente ao alegado pela recorrente, o acórdão recorrido clarificou, com suficiência, as razões que ditaram o não uso da faculdade a que se reporta o art.º 44.º, n.º 4, da LOPTC.
Na verdade, e a propósito, aí se refere que da factualidade violadora do art.º 31.º, n. os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, resultou, de modo flagrante, a restrição do universo dos potenciais candidatos ou concorrentes, para, de seguida, se concluir que tal ilegalidade detém, assim, aptidão para alterar o resultado financeiro do contrato. E, finalmente, aí se sublinha, também, que, na melhor interpretação do art.º 44.º, n.º 3, al. c), da LOPTC, a expressão "ilegalidade que possa alterar o respectivo resultado financeiro" significa que "basta o simples perigo ou risco de que da ilegalidade constatada possa resultar a alteração do respectivo resultado financeiro".
Mostra-se, assim, adequadamente fundado o não apelo à faculdade prevista no citado art.º 44.º, n.º 3, al. c), da LOPTC. E, inerentemente, indicada a razão que, de modo essencial, conduziu à recusa do Visto.
Em face do exposto, afigura-se-nos que o acórdão recorrido, enformando uma decisão expressa, clara e coerente e suficiente, não se mostra obscura ou ininteligível e também não desloca para o destinatário a tarefa de indagar as razões do sentido decisório aí contido. E, no reforço do afirmado, adiantaremos que a fundamentação do acórdão, com indicação dos factos e do direito que o suportam, revela-se adequada e bastante e permite ao destinatário a reconstituição fácil do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo decisor.
Improcede, assim, a invocada ausência de fundamentação do acórdão recorrido e, por consequência, a nulidade suscitada e a que se reporta o art.º 668.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, aqui aplicável subsidiariamente.

2. Do art.º 31.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01 -
- Eventual violação desta norma

Tal como já sublinhámos, a recusa do visto assentou na violação da norma contida no art.º 31.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, pois, conforme consta do acórdão impugnado, foram exigidas habilitações técnicas bem superiores às legalmente estabelecidas, restringindo, assim, de modo marcante, o universo dos potenciais concorrentes. Ou seja, e particularizando, não foi exigida a única subcategoria relativa ao tipo de trabalhos mais expressivo, mas sim onze subcategorias em três categorias, sendo que para todas aquelas subcategorias foi exigida autorização na classe 7.
A propósito, a recorrente alega, com relevância e em resumo, que o procedimento adoptado não conduziu à redução do universo dos potenciais candidatos, o eventual incumprimento da norma contida no n.º 1, do art.º 31.º, do Decreto-Lei n.º 12/2004, apenas substanciará uma mera irregularidade [e não ilegalidade], a concreta estipulação da classe que deverá cobrir o valor global da obra contem-se na esfera da discricionariedade da entidade adjudicante e, por fim, entende que se verificam os pressupostos legitimadores do uso da faculdade constante do art.º 44.º, n.º 4, da LOPTC, o que determinaria a concessão do visto.
Equacionadas as posições sob confronto, cumpre conhecer.

a.
O art.º 31.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, sob a epígrafe "Exigibilidade e Verificação de Habilitações", dispõe o seguinte:
1. Nos concursos de obras públicas e no licenciamento municipal, deve ser exigida uma única subcategoria em classe que cubra o valor da obra, a qual deve respeitar ao tipo de trabalhos mais expressivo, sem prejuízo da eventual exigência de outras subcategorias relativas aos restantes trabalhos a executar e nas classes correspondentes.
2. A habilitação de empreiteiro geral ou construtor geral, desde que adequada à obra em causa e em classe que cubra o seu valor global, dispensa a exigência a que se refere o número anterior.

A melhor interpretação das normas ora transcritas, aliás, na esteira de abundante e uniforme jurisprudência (1) deste Tribunal, impõe, como bom entendimento, o seguinte:

§ Caso o dono da obra exija apenas os requisitos indicados no n.º 1, do mencionado art.º 31.º, não violará alguma normação referente às habilitações exigidas a empreiteiros;

§ Exigindo, tão-só, as habilitações técnicas indicadas no n.º 2, do art.º 31.º, violará o disposto no n.º 1, desta mesma norma (art.º 31.º);

§ Prevendo-se no programa de concurso a possibilidade de os empreiteiros com a habilitação mencionada no n.º 1, do art.º 31.º e bem assim os empreiteiros possuidores da habilitação referida no n.º 2, de igual norma, poderem concorrer, não ocorrerá a violação de algum dispositivo legal regulador das habilitações exigidas aos empreiteiros;

§ E, por último, caso o dono da obra, em procedimento próprio, exigir mais do que uma única subcategoria em classe que cubra o valor global da obra, ou, de modo cumulativo, exigir ainda os pressupostos previstos nos n.os 1 e 2, da citada norma, violará o n.º 1, desta.  

Eis, em resumo, o sentido extraído da literalidade da norma (art.º 31.º) acima transcrita e que, adiante, influenciará, necessariamente, a componente dispositiva do presente acórdão.

a.1.
Da factualidade tida por fixada [vd. II.4] resulta que a recorrente e também adjudicante, em matéria de habilitações técnicas, fez constar do anúncio do concurso [vd. III.2.1.] e do programa do procedimento [vd. 6.2.] que eram exigidas as 1.ª, 2.ª, 4.ª, 5.ª, 7.ª e 8.ª subcategorias da 1.ª categoria e as 4.ª, 10.ª e 12.ª subcategorias da 5.ª categoria, da classe 7.
Ora, tal exigência, ponderada à luz do entendimento vertido em III.2.a. [demonstrativo do sentido que conferimos à literalidade das normas contidas nos n.os 1 e 2, do art.º 31.º, do Decreto-Lei n.º 12/2004], viola as disposições constantes do citado art.º 31.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 12/2004, pois, e sem equívoco, não foi exigida uma única subcategoria respeitante ao tipo de trabalhos mais expressivo, sendo que tal subcategoria conter-se-ia em classe que cobrisse o valor global da obra.
Acresce ainda que para todas aquelas subcategorias constantes do programa do procedimento foi ainda exigida autorização na classe 7. Facto que, atento o teor da Portaria n.º 6/2008, de 02.01, vigente à data da publicação do aviso de abertura do concurso, e que fixa àquela classe [7] o valor de € 9 600 000,00, não pode deixar de entender-se como uma exigência claramente excessiva, tendo em conta, nomeadamente, o valor base do procedimento [€ 890 000,00] e até o valor da adjudicação, que se cifrou em € 1 112 493, 57.

a.2.
O demonstrado incumprimento do art.º 31.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 12/2004, plasmado no Anúncio de Abertura do Concurso e Programa de Procedimento, constitui não uma mera irregularidade [como sustenta a recorrente], mas sim uma ilegalidade em sentido próprio.
Com efeito, e precisando conceitos, importa adiantar o seguinte:

§ Sustentados na doutrina mais autorizada [vd., entre outros, Mário E. Oliveira, in C.P.A. Comentado, II edição] e desenvolvida a propósito do conceito jurídico de "irregularidade", verifica-se que este é reconduzido ao universo das designadas formalidades não essenciais. Ou seja, e segundo aquele autor, a irregularidade identifica-se com a inobservância de normas procedimentais e, amiúde, de carácter burocrático, inobservância essa que não impede a realização da finalidade que as mesmas visavam garantir. Tal incumprimento normativo, deslocado agora para o acto administrativo, melhor definido no art.º 120.º, do C.P.A., também não obstaria ao aproveitamento destes, nem afectaria a sua estabilidade e respectiva consistência jurídica;

§ Por sua vez, a ilegalidade substancia-se pela prática de um acto desconforme com o ordenamento jurídico, por ofensa dos princípios gerais do direito, de normas jurídicas de natureza constitucional, legal ou regulamentar, ou ainda por ofensa de vinculações derivadas de acto administrativo ou contrato administrativo anterior;  

E, ao invés do que ocorre com a "irregularidade" acima caracterizada, o acto administrativo ferido de ilegalidade padece de invalidade, que é sancionada, em regra, com a correspondente anulabilidade [vd. art.º 135.º, do C.P.A.].
Ora, partindo da explicitação conceptual acima realizada, é indubitável que a demonstrada violação do art.º 31.º, do Decreto-Lei n.º12/2004, configura inequivocamente, uma ilegalidade, pois, ao incumprir-se a injunção aí prevista, frustrou-se a realização da finalidade perseguida com tal norma e que, afinal, se traduz em assegurar a salvaguarda dos princípios da sã e ampla concorrência e da boa gestão dos recursos públicos. E tal ilegalidade até constitui fundamento de anulabilidade do acto administrativo correspondente ["in casu", o acto de adjudicação].

a.3.
Em razão do que resta exposto, é indubitável que as exigências habilitacionais técnicas exigidas pela entidade adjudicante e ora recorrente violam o disposto no art.º 31.º, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, sendo que esta ilegalidade restringe, com evidência, o universo dos potenciais oponentes ao concurso. De resto, e sintomaticamente, só um concorrente apresentou propostas. E tal circunstância induz, por sua vez, a possibilidade séria de alteração do resultado financeiro do procedimento e do subsequente contrato.

a.4.
A recorrente alega ainda que a concreta estipulação da classe em sede de programa de concurso se contem na esfera de discricionariedade da entidade adjudicante, apodando, assim, de legais as exigidas habilitações técnicas.
A propósito, diremos que, neste domínio, a actividade da entidade adjudicante é vinculada quanto à procura e ao conhecimento dos pressupostos legais da decisão do procedimento, não havendo lugar a juízos de conveniência ou oportunidade administrativa.
Nesta parte, e salientando, a entidade adjudicante não dispunha, pois, de liberdade de apreciação e decisão, seja no plano da oportunidade de agir, seja no âmbito da forma do acto.
E, correspondendo os poderes discricionários a uma "delegação" do legislador no órgão administrativo para, dentro de certas limitações [pressupostos da competência e fim], proceder em cada caso pelo modo mais adequado às circunstâncias, cedo se intui que, no caso em apreço, a Lei não atribui tais poderes à entidade adjudicante e ora recorrente.
Daí que, e com propriedade, se deva afirmar que a legalidade do procedimento em apreço sempre exigiria o cumprimento escrupuloso da prescrição contida no art.º 31.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, repercutindo esta norma no Anúncio de abertura do Concurso e bem assim no respectivo Programa. 

b. Do Visto

O art.º 44.º, n.º 3, da Lei n.º 98/97, de 26.08, dispõe que a recusa do visto se basta com a desconformidade dos actos e contratos com as leis em vigor e que implique:

§ Nulidade;

§ Encargos sem cabimento em verba orçamental própria ou violação directa de normas financeiras;

§ Ilegalidade que altere ou possa alterar o respectivo resultado financeiro.  

Considerada a natureza da ilegalidade cometida e acima evidenciada, é de concluir que esta não consubstancia alguma nulidade, por não subsunção à previsão normativa do art.º 133.º, do Código de Procedimento Administrativo.
Também não ocorre a assunção de encargos sem a necessária cabimentação.
Contudo, a demonstrada violação do disposto no art.º 31.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 09.01, nas circunstâncias já descritas e analisadas [o que se dá aqui por inteiramente reproduzido], funda uma forte possibilidade de alteração do resultado financeiro do procedimento e subsequente contrato.
Acresce que a melhor interpretação da norma contida no art.º 44.º, n.º 3, al. c), da Lei n.º 98/97, de 26.08, obriga a considerar que para a verificação dos pressupostos legitimadores da sua aplicação bastará o simples perigo ou risco de que à ilegalidade evidenciada sobrevenha a alteração do respectivo resultado financeiro.
Neste contexto, e pese embora a ausência de recomendações prévias, também não se revela ajustado o uso da faculdade prevista no art.º 44.º, n.º 4, da LOPTC.
Subsiste, pois, o fundamento da recusa do Visto, constante do art.º 44.º, n.º 3, al. c), da Lei n.º 98/97, de 26.08.
 

IV. DECISÃO 
 

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter o acórdão recorrido.
Emolumentos legais.
Registe e notifique.
Lisboa, 29 de Junho de 2010 

Os Juízes Conselheiros, - (Alberto Fernandes Brás - Relator) - (José Luís Pinto Almeida) - (António Augusto dos Santos Carvalho)

Fui presente,

(Procurador-Geral Adjunto) - (Daciano Pinto)


(1) Acd. N.ºs 25/2009, de 29/06, 1.ª Secção/PL, 33/09-14/07 - 1.ª Secção /PL e n.º 2/2010, de 17/02, 1.ª Secção/PL, entre outros).