Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 3 de Fevereiro de 2010 (proc. 5786/09)

Imprimir

Sumário:

I. As questões submetidas à apreciação do tribunal não se confundem com os argumentos de facto ou de direito que as partes invocam para as suportar;
II. Só o absoluto desconhecimento dessas questões, e não o de algum dos seus argumentos, é que origina a nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Cód. Proc. Civil.
III. Igualmente, só a absoluta falta de fundamentação dá origem à nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 668º do Cód. Proc. Civil, e não a fundamentação deficiente, insuficiente ou ambígua, que apenas redunda em eventual erro de julgamento.
IV. Em sede de recurso jurisdicional não pode ser conhecida questão nova, que o recorrente não tenha oportunamente alegado nos seus articulados, designadamente a invocação de um novo vício do acto impugnado, por essa matéria integrar matéria extemporaneamente invocada sobre a qual a sentença impugnada não se pronunciou nem podia pronunciar-se.
V. Na análise dos esclarecimentos prestados pelos concorrentes quanto ao preço anormalmente baixo que propuseram, previstos no art.º 71.º, n.º 4, do Código dos Contratos Públicos, o júri do procedimento goza de discricionariedade técnica, que em princípio é insindicável pelo tribunal, a não ser em caso de erro grosseiro, crasso ou palmar.

 

Texto Integral:

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

I - Relatório

A G....... - Companhia .........................., S.A. interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada acção de contencioso pré-contratual contra a Secretaria Regional da Educação e Formação, pedindo a anulação da deliberação de 18-06-2009 do Conselho Administrativo da Escola Básica e Secundária .........., que excluiu a sua proposta e adjudicou à contra-interessada S.............. - ............, S.A., o serviço objecto do concurso público n.º 1/2009/EBS................., e a condenação da entidade demandada em abster-se de celebrar o contrato com a S.......... ou a anulação do mesmo caso já tenha sido celebrado, e ainda condenada a admitir a sua proposta e a adjudicar-lhe o serviço.

Indicou como contra-interessadas, além da S......., U......... - Sociedade..............

Por sentença de 21-10-2009 a acção foi julgada improcedente.

É desta decisão que a recorrente interpõe recurso, em cujas alegações conclui como segue:
1. A douta sentença recorrida não se pronuncia sobre o vício de violação do Art.° 10° n.° 1 al. a) do Programa do Concurso alegado pela Autora na sua p.i. 2.º
2. É, assim, nula a douta sentença recorrida porque não se pronunciou sobre uma questão - violação do Art.° 10° n.° 1 al. a) do Programa do Concurso - que devia ter apreciado (cfr. Art.° 668° n.° 1 al. d) do CPC).
3. No que concerne à violação do Art.° 71° n.° 4 do CCP, da douta sentença recorrida não constam as razões pelas quais decidiu que as justificações aduzidas pela autora não são explicação plausível para o preço anormalmente baixo que apresentou a concurso.
4. É, assim, nula a douta sentença recorrida por falta de fundamentação (cfr. Art.° 668° n.° al. c) do CPC).
5. O Júri do Concurso excluiu a proposta da G...... porquanto entendeu não considerar os esclarecimentos justificativos do preço anormalmente baixo apresentados pela G........ na sua proposta e em sede de audiência prévia.
6. Os motivos de exclusão prendem-se exclusivamente com os factores em que se decompõe o preço unitário das refeições completas e ligeiras e não com o preço global da proposta. Ora,
7. Conforme entendimento do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 03-04-2008, no processo n.° 01274/07.1BEPRT, in www.dgsi.pt, " o conceito de preço anormalmente baixo não se relaciona com cada um dos elementos componentes do preço proposto, de per si, mas com o preço proposto globalmente considerado".
8. Assim, ao considerar como não justificado o preço global proposto pela G........ por considerar que os elementos em que se decompõem os preços unitários das refeições completas e ligeiras não são credíveis nem aceitáveis, o júri do concurso e, consequentemente, a entidade adjudicante, violaram o disposto no Art.° 71° n.os l, 3 e 4 do CCP;
9. Ao não entender assim violou a douta sentença recorrida a disposição do Art.° 71° n.os l, 3 e 4 do CCP.
10. Do Art.° 10° n.° 1 alínea a) do Programa do Concurso resulta apenas que o preço por refeição completa não pode exceder €2,76 e o preço por refeição ligeira não pode exceder 2,17€.
11. Ou seja, esta disposição do Programa do Concurso estabelece os preços máximos da refeição completa e da refeição ligeira.
12. Não impõe que o preço da refeição ligeira tem que corresponder a menos 21,37770% do preço da refeição completa.
13. Pelo que ao propor a exclusão da proposta da G.......... com fundamento no facto de o valor da refeição ligeira por ela proposto ser inferior em 80,797% relativamente ao valor da refeição completa, violou o júri do concurso e, consequentemente, a entidade adjudicante a disposição do Art.° 10° n.° 1 alínea a) do Programa do Concurso.
14. Em sede de audiência prévia, a G........... alegou factos demonstrativos de que o preço que propôs suporta a totalidade dos custos inerentes à prestação dos serviços e de que a imputação dos custos de pessoal e matéria-prima não alimentar é meramente matemática e relacionada com a organização da contabilidade por centros de custos e que não tem qualquer influência no que respeite aos requisitos de qualidade e cumprimento do serviço.
15. Os factos alegados pela G.......... em sede de audiência prévia, nomeadamente os custos que discriminou e a forma como fez a respectiva imputação, não foram infirmados pelo júri do concurso.
16. O júri do concurso apenas desvalorizou tais factos entendendo que os mesmos não justificavam o preço proposto.
17. Da mesma forma, e na contestação por si apresentada na presente acção, a entidade demandada também não impugnou os factos alegados pela G........ em sede de audiência prévia e constantes dos artigos 107°, 110° e 111° da p.i..
18. Atenta a falta de impugnação pela entidade demandada, os factos constantes dos artigos 107°, 110° e 11 Io da p.i. devem considerar-se assentes.
19. Porém, o tribunal a quo considerou que os mesmos "não são explicação plausível" para o preço proposto.
20. Ora, se o Tribunal a quo tinha dúvidas sobre se os referidos factos justificam ou não o preço proposto pela G........, deveria ter procedido à audição das testemunhas arroladas pela G....... na sua p.i..
21. A omissão da diligência de inquirição de testemunhas, quando existem factos controvertidos que possam relevar para a decisão da causa, afecta, sem dúvida, o julgamento da matéria de facto e, consequentemente, acarreta a anulação da sentença (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 03-02-2009, processo n.° 02089/07, www.dgsi.pt.).

Não foram produzidas contra-alegações.

O Mm.º Juiz a quo sustentou não existir qualquer nulidade na sentença.

Sem vistos, vem o processo à conferência.


II - Fundamentação

II.1 - De facto(1)
a) Pelo Despacho n.° 221/2009, publicado no Jornal Oficial, II Série, de 17 de Fevereiro de 2009, a Secretaria Regional de Educação e Formação autorizou a abertura de concurso público para fornecimento de refeições ligeiras e completas a todos os estabelecimentos da Escola Básica e Secundária .......... para o ano escolar de 2009/2010 (concurso público n.° 1/2009/EBS...........), fixou o preço base em € 211.190,00 e delegou no Conselho Administrativo da Escola Básica e Secundária ............. os poderes para aprovar as peças do procedimento, nomear o júri e decidir sobre a aprovação de todas as propostas contidas no relatório final para efeitos de adjudicação, adjudicar, outorgar no contrato e praticar todos os actos subsequentes que, no âmbito do mesmo procedimento, sejam cometidos à entidade adjudicante.
b) O referido concurso público foi publicitado pelo Anúncio n.º 956/2009, publicado no Diário da República, II série, n.º 50, de 12 de Março de 2009.
c) E rege-se pelo Programa e Caderno de Encargos junto com a p. i. (doc n.º 1), [estabelecendo como preço máximo para a refeição completa € 2,76 e para a refeição ligeira € 2,17].
d) Nos termos do Artigo 2o desse programa, "a entidade adjudicante é a Região Autónoma dos Açores - Secretaria Regional da Educação e Formação - EBS ............".
e) O art.º 12.º do PC estabelece que se considera preço anormalmente baixo o preço inferior a € 158.392,50, sem IVA;
f) A G........ - Companhia ...................., S.A., a S........ - ............, S.A., a U......... - Sociedade ...................., S.A. e a P............, Lda, apresentaram proposta no identificado concurso.
g) [O valor global da proposta da G........ é de € 153.790,00 (€ 166.093,00 com IVA incluído), sendo o preço da refeição completa de € 2,98, com IVA incluído, e o da refeição ligeira de € 0,57, com IVA incluído].
h) No Relatório Preliminar, o júri propôs a exclusão da proposta da G....., porquanto entendeu não considerar os esclarecimentos justificativos do preço anormalmente baixo [referindo não aceitar a "diferença registada, sem a mínima justificação, entre a refeição completa e a ligeira, nem como é possível, assim, fornecer a refeição ligeira ao preço proposto, tendo-se em consideração a composição dessa refeição ligeira,..." nem o valor na rubrica Pessoal "para a refeição completa de €1,09 e para a refeição ligeira de € 0,01, o que não é minimamente credível nem aceitável, (...) e "em termos de M.P. Não-Alimentar temos mais uma vez um valor, para a refeição completa de € 0,15 e para a refeição ligeira de € 0,01, o que não é minimamente credível nem aceitável..." (cfr. relatório preliminar)].
i) [O relatório preliminar foi enviado à recorrente a coberto do ofício registado n.º 588, de 12-05-2009, fixando em 5 dias o prazo da audiência prévia];
j) No dia 19 de Maio de 2009, a G...... enviou para a Secretaria Regional de Educação e Formação, por fax e por correio registado com aviso de recepção, escrito no qual exercia o seu direito de audiência prévia, pronunciando-se contra a pretendida exclusão da sua proposta, nos termos do documento n.º 3 junto com a p.i.;
k) No dia 25 de Maio de 2009, a G...... foi notificada do Relatório Final do Júri, no qual este propõe a adjudicação à S........... e a exclusão da proposta da G.......
l) No referido relatório, o júri não ponderou a pronúncia feita no exercício do direito de audiência prévia, considerando que "nenhum dos concorrentes de pronunciou sobre o mencionado Relatório Preliminar".
m) Nesse dia 25 de Maio, a G...... enviou por fax para a Escola Básica e Secundária .............., ao cuidado do Júri do Concurso, o comprovativo do envio por fax da sua pronúncia no referido dia 19 de Maio.
n) No dia 26 de Maio, o júri do concurso reuniu, deliberando rejeitar liminarmente a pronúncia da G......, porque só chegou à escola a 25 de Maio, entendendo o júri que a mesma deu entrada, injustificadamente, para além do prazo fixado para a audiência prévia.
o) Não obstante ter rejeitado a pronúncia da G...... por a considerar extemporânea, o júri do concurso acabou por se pronunciar sobre o respectivo mérito, rejeitando a argumentação expendida pela G.......
p) A acta com o teor dessa deliberação (acta n.º 2) foi notificada à requerente no dia 28 de Maio de 2009.
q) Por deliberação de 18 de Junho de 2009 do Conselho Administrativo da Escola Básica e Secundária ..........., o serviço objecto do concurso público n.º 1/2009/EBS ........... foi adjudicado à S..........., após concordância total com o Relatório Final do júri do concurso, que foi dado por integralmente reproduzido.
r) Tal deliberação foi notificada à G....... no dia 22 de Junho de 2009.

II.2 - O direito

1. Da nulidade por omissão de pronúncia

O presente recurso versa sobre a sentença do TAF de Ponta Delgada que considerou improcedente a acção de contencioso pré-contratual instaurada pela recorrente, através da qual pretendia reagir contra a sua exclusão do concurso público para fornecimento de refeições ligeiras e completas a todos os estabelecimentos da Escola Básica e Secundária da.......... para o ano escolar de 2009/2010 (concurso público n.° 1/2009/EBS............), motivada por apresentação de um preço que o júri do concurso considerou anormalmente baixo e não justificado.

A recorrente começa por se insurgir contra a sentença afirmando que esta padece de nulidades por não se ter pronunciado "sobre o vício de violação do Art.° 10° n.° 1 al. a) do Programa do Concurso alegado pela Autora na sua p.i. ", e porque "no que concerne à violação do Art.° 71° n.° 4 do CCP, da douta sentença recorrida não constam as razões pelas quais decidiu que as justificações aduzidas pela autora não são explicação plausível para o preço anormalmente baixo que apresentou a concurso".

Nos termos do art.º 660.º, n.º 2, do CPC, "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras". Esta norma interliga-se com o art.º 668.º, n.º 1, al. d), primeira parte, do mesmo diploma, gerando a sua inobservância nulidade por omissão de pronúncia.

Para a doutrina e a jurisprudência as questões, porém, não se confundem com os argumentos que as partes aduzem para suportar a solução que para elas defendem; assim, o desconhecimento de algum desses argumentos não origina nulidade por omissão de pronúncia. ANTUNES VARELA é categórico a este respeito: "E não pode confundir-se de modo nenhum, na boa interpretação da alínea d) do n.º 1 do artigo 668º do Cód. Proc. Civil, as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão"(2).

Por outro lado é pacífico o entendimento de que só a absoluta falta de conhecimento da questão é que redunda em nulidade; se o juiz analisou superficialmente a questão ou não a conheceu em todas as suas vertentes, não há omissão de pronúncia mas, eventualmente, erro de julgamento.

Volvendo os olhos, sob este prisma, para o caso em concreto constata-se que a sentença não padece de omissão de pronúncia. Refere a este propósito o Mm.º Juiz a quo no seu despacho de fls. 348:

"A recorrente imputa nulidades à sentença recorrida.

Quanto à pretensa omissão de pronúncia, não colhe a mesma, já que a questão suscitada da alegada violação do disposto no artigo 10o, n.º 1, a), do programa do concurso e do artigo 71°, n.º 4, do CCP é analisada no ponto 3. da sentença, na parte em que conhece de direito.

No que concerne à alegada falta de fundamentação relativa à decisão sobre a autora não explicar plausivelmente o preço anormalmente baixo que apresentou a concurso, também não assiste razão à recorrente, que parece continuar a pretender estar dispensada de explicar, por forma a que todos entendamos, como é que uma sopa enriquecida pode custar só 0,05 €."

De facto, a apreciação das questões suscitadas pela recorrente na p.i. foi efectuada pela sentença recorrida, nos termos mencionados no citado despacho.

Por conseguinte, não se verifica a apontada nulidade.


2. Da nulidade por falta de fundamentação:

O dever de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente decorre do n.º 1 do art.º 205º da Constituição e é conformado pelo art.º 158.º, n.º 1, do CPC, normativo a que o art.º 668.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma atribui efeitos a nível processual.

Mas também se entende, pacificamente, na doutrina e na jurisprudência, que a sanção prevista neste último preceito apenas se aplica aos casos de omissão total dos fundamentos de facto ou de direito, não bastando para tanto uma incompleta ou deficiente fundamentação.

Ora, analisando a sentença sob recurso pode dizer-se, independentemente do acerto ou não da decisão, que a fundamentação é coerente com a decisão e, pelo menos, aflorou todas as questões que importava debater.

Portanto, existindo um perfeito silogismo entre as premissas maior e menor, ou seja, entre o direito invocado na sentença e os factos que a ele foram subsumidos, que permitiu extrair a conclusão (decisão) a que a sentença chegou, não parece que possa falar-se de falta de fundamentação, tanto mais que esta (bem ou mal não importa agora), permite a um destinatário médio imbuído de normal capacidade de discernimento e conhecimento apreender o raciocínio que lhe está subjacente.

Por outro lado, a falta de fundamentação suscitada pela recorrente não é tanto a prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC; é mais uma alegada falta de fundamentação relativa à questão a que reporta a conclusão 2.ª.

Só que, não só a sentença se lhe refere nestes termos: "Também parece falaciosa a argumentação da autora, no que concerne à alegação de que os motivos de exclusão se prendem com os factores em que se decompõe o preço unitário das refeições completas e ligeiras e não com o preço global da proposta", como essa apontada falta de fundamentação se reconduz, ao fim e ao cabo, à já apreciada questão da nulidade por omissão de pronúncia. Na verdade, se há absoluta falta de fundamentação, então verifica-se omissão de pronúncia, na medida em que a fundamentação serve para discutir a solução dada às questões. Faltando aquela obviamente que não se conhece destas. Se a fundamentação é insuficiente, ligeira, mal ajustada, cai-se na mesma situação da questão superficialmente apreciada: pode existir erro de julgamento mas não há omissão de pronúncia, o que implica que se tenha forçosamente de admitir que não há falta de fundamentação.

Em suma, a sentença não padece de nulidade em consequência de omissão de pronúncia, resultante de alegado silêncio sobre questão suscitada expressamente na p.i, nem por falta de fundamentação autónoma sobre outra questão, visto que em ambos os casos a sentença delas conhece através da exteriorização de um discurso argumentativo suficientemente densificado, perceptível e coerente com a solução que acabou por acolher.


3. Sobre a questão nova, suscitada no recurso, relativa ao preço "anormalmente baixo"

Alega a recorrente que "os motivos de exclusão prendem-se exclusivamente com os factores em que se decompõe o preço unitário das refeições completas e ligeiras e não com o preço global da proposta.

Ora,

Conforme entendimento do douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 03-04-2008, no processo n.° 01274/07.1BEPRT, in www.dgsi.pt, "o conceito de preço anormalmente baixo não se relaciona com cada um dos elementos componentes do preço proposto, de per si, mas com o preço proposto globalmente considerado".

Assim, ao considerar como não justificado o preço global proposto pela G...... por considerar que os elementos em que se decompõem os preços unitários das refeições completas e ligeiras não são credíveis nem aceitáveis, o júri do concurso e, consequentemente, a entidade adjudicante, violaram o disposto no Art.° 71° n.os l, 3 e 4 do CCP".

A análise das propostas, através da verificação dos respectivos atributos e dos termos e condições, visa a eventual exclusão das mesmas, designadamente por motivos materiais [cfr. n.° 2 do artigo 70.° do Código dos Contratos Públicos (CCP)], quando, v.g., propõem um preço total anormalmente baixo, cuja justificação não tenham sido apresentada ou não tenha sido considerada.

Os preços anormalmente baixos suscitam sempre um forte juízo de reserva, não só por razões históricas ligadas ao regime da adjudicação ao preço "mais baixo", que não raras vezes se converteu em preço muito superior para as entidades adjudicantes, mas também pela própria natureza das coisas, visto que o preço anormalmente baixo anda quase sempre associado a compressão de custos e a esmagamento de margens de lucro com directo reflexo na qualidade final da obra, produto ou serviço proposto.

Como bem refere a recorrente no art.º 112.º da p.i. a ratio do art.º 71.º do CCP "é a de evitar a degradação do serviço prestado, contrariando práticas empresariais que pretendam, a qualquer custo, obter vencimento de procedimentos e prevenindo adjudicações que ponham em causa o nível do serviço pretendido e, em consequência, a prossecução do interesse público".

O CCP consagra, no seu art.º 71.º, o regime do preço anormalmente baixo, que pode verificar-se em três vertentes:
- Por auto-limitação da entidade adjudicante;
- Por imposição legal ou, 
- Por decisão discricionária da entidade adjudicante.

No caso vertente ocorreu auto-limitação da entidade adjudicante (n.º 2 do art.º 132.º), já que esta fixou o limiar do que entendeu ser o preço anormalmente baixo, em concreto € 158.392,50 (sem IVA). Ora, como o preço da proposta da recorrente era inferior, de € 153,790,00, verifica-se uma situação objectiva de preço anormalmente baixo.

A discordância da recorrente reside, porém, na circunstância do júri não ter discutido este preço na sua globalidade mas ter-se detido, apenas, na sindicância aos preços parcelares das refeições completa e, sobretudo, ligeira.

Não nos parece, porém, que a conduta do júri neste domínio seja passível de censura.

Não obstante o conceito de preço anormalmente baixo estar ligado ao preço global, repugna ao bom-senso não admitir que o júri do procedimento não possa pedir e discutir as justificações para preços parcelares que directamente se repercutem no preço global anormalmente baixo. Aliás, é o que resulta do n.º 3 do art.º 71.º: "Nenhuma proposta pode ser excluída com fundamento no facto de dela constar um preço total anormalmente baixo sem antes ter sido solicitado ao respectivo concorrente, por escrito, que, em prazo adequado, preste esclarecimentos justificativos relativos aos elementos constitutivos da proposta que considere relevantes para esse efeito" (negrito nosso).

Em todo o caso, esta questão não integra o elenco de questões submetidas ao escrutínio do tribunal a quo, visto que em matéria de preço anormalmente baixo a recorrente se limitou a alegar na p.i. a violação do art.º 10.º, n.º 1, al. a), do PC e art.º 71.º, n.º 4, do CCP, sem contudo aflorar sequer a questão que ora coloca nas conclusões 6.ª, 7.ª e 8.ª.

Ora, como o objectivo do recurso jurisdicional é a modificação da decisão impugnada, não tendo esta conhecido de determinada questão por não ter sido oportunamente alegada, não pode a recorrente vir agora suscitá-la perante o tribunal superior, porque o objecto do recurso são os vícios da sentença e não novos vícios que o recorrente imputa ao acto impugnado.


4. A análise dos esclarecimentos em matéria de preço anormalmente baixo: poderes do júri do procedimento

Quanto à alegada violação do art.º 10.º, n.º 1, al. a), do Programa do Concurso (PC) e art.º 71.º, n.º 4, do CCP:

O primeiro respeita à indicação dos preços máximos das refeições completa e ligeira, conforme referido supra em II.1-c), bem como o preço total das refeições.

O argumento da recorrente é de que o júri não podia estabelecer um referencial percentual de preço da refeição ligeira tendo por base o preço da refeição completa.

Alega, por isso, que ao propor a sua exclusão com fundamento na proposta estabelecer um preço da refeição ligeira inferior em 80,797% da refeição completa o júri incorreu na violação desta disposição do PC.

Lendo o que o júri diz a este respeito constata-se que a alusão a essa diferença percentual pretende apenas demonstrar a falta de justificação para o preço da refeição ligeira, considerado não plausível.

Portanto não é exacto que o júri tenha deliberado a exclusão da recorrente com fundamento da sua proposta prever um preço da refeição ligeira inferior em 80,797% ao da refeição completa.

E o que diz a sentença a este respeito?

"Na verdade, essa motivação reporta-se ao preço global que, à partida e nos termos do programa do concurso, é anormalmente baixo. O que nela se ilustra, com evidente pertinência, é que as justificações apresentadas pela requerente nunca explicarão a apresentação de determinados custos parcelares que, no entender do júri, são impossíveis de atingir (v.g., o custo da matéria prima para a sopa "enriquecida" - 0,05 €). Assim se explicando outrossim a anormalidade do preço global".

A referência à invocada violação do art.º 10.º, n.º 1, al. a) do PC, ainda que não explicita, é perceptível no trecho acima reproduzido.

Por outro lado, não se mostra violado o art.º 71.º, n.º 4, do CCP, sendo que neste aspecto a sentença entendeu que "a ponderação efectuada [pelo júri] respeitou inequivocamente os ditames do n.º 4 do artigo 71° do CCP", porque na sua óptica "as justificações aduzidas pela autora não são explicação plausível para o preço anormalmente baixo que apresentou a concurso".

O n.º 4 do art.º 71.º estabelece o catálogo exemplificativo das justificações admissíveis, mas não impõe que o júri deva extrair efeitos jurídicos favoráveis ao concorrente das explicações apresentadas por este.

Ora, sem embargo do CCP se propor (ou mesmo eliminar) a discricionariedade na fixação dos limiares dos preços anormalmente baixos, isso não impede que nesta matéria o júri goze de ampla margem de discricionariedade, podendo considerar como boas as justificações apresentadas e assim afastar a noção de preço anormalmente baixo, como também pode, no todo ou em parte, não concordar com as mesmas e concluir que o preço apresentado integra esse conceito.

Na verdade, o juízo sobre a formação de um preço assenta num processo intelectual de raiz essencialmente técnica, considerando as diversas variáveis e factores que influenciam a sua fixação.

E assim, se a fixação do limiar do preço anormalmente baixo escapa ao domínio da discricionariedade, o mesmo já não se passa com a análise das justificações apresentadas a esse propósito, em que a actividade do júri não pode ser judicialmente sindicada a não ser em caso de erro grave, ostensivo, grosseiro ou palmar.

Em resumo: não houve violação do art.º 10.º, n.º 1, al. a), do PC, ou do art.º 71.º, n.º 4, do CCP.

Improcedem, por isso, as conclusões 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª.


5. Produção probatória, conclusões ou juízos de valor e anulabilidade da sentença

A recorrente pretende que a sentença seja anulada para que seja efectuada prova sobre matéria contida em artigos da petição inicial, que em seu entender contêm factos com relevância para a decisão, partindo para tanto da invocada violação do art.º 10.º, n.º 1, al. a), do PC, dado que "ao propor a exclusão da proposta da G...... com fundamento no facto de o valor da refeição ligeira por ela proposto ser inferior em 80,797% relativamente ao valor da refeição completa, violou o júri do concurso e, consequentemente, a entidade adjudicante a disposição do Art.° 10° n.° 1 alínea a) do Programa do Concurso",

Mas, salvo o devido respeito, não é exacta esta afirmação. O que o júri quis vincar com esta alusão ao percentual acima referido foi a anormalidade do preço proposto para a refeição ligeira por comparação com o preço proposto para a refeição completa, sem que isso signifique que tenha proposto a exclusão com fundamento nesse percentual.

Nesta linha a sentença considerou também que não eram plausíveis as justificações apresentadas, sendo o preço proposto inverosímil, isto é, não ajustado à realidade.

Na verdade, a recorrente apresentou um valor de 0,49 para a matéria-prima alimentar da refeição ligeira. Na audiência prévia justifica esse valor deste modo:

Sandes 0,17
Mini-prato 0,24
Iogurte 0,16
Sopa 0,05
Água 0,08

Total 0,49

Verifica-se desde logo um erro, pois o somatório é € 0,70 e não € 0,49.

Mas de facto impressiona que a recorrente se proponha fornecer sopa ao inimaginável preço de 5 cêntimos (10 escudos na moeda antiga) ou água engarrafada (3) ao surpreendente preço de 8 cêntimos, quando em relação a esta, por exemplo, é sabido que o preço final no consumidor (na restauração) é superior ao da gasolina.

Perante estes factos, até num juízo de senso comum e de mediana experiência tem de concluir-se que o preço proposto é demasiado baixo, sendo manifestamente inverosímil. E portanto, nenhuma outra explicação se justifica nem sequer pareça que possa ser dada.

No entanto a recorrente sustenta que o júri (e a entidade adjudicante) não tomou em consideração factos que alegou para justificar o preço anormalmente baixo. E invoca até os factos dos artigos 107.º, 110.º e 111.º da p.i.

Lendo estes artigos constata-se que reproduzem em parte os argumentos aduzidos pela recorrente com tal propósito, que todavia não integram (artigos 107.º e 110.º) a categoria dos factos nus e crus a que se refere ANTUNES VARELA (4), mas antes mera argumentação valorativa e conclusiva que mesmo que não tenha sido impugnada não tem o alcance probatório que a recorrente lhe quer emprestar.

E ainda que no art.º 111.º da p.i. descrimine os custos com pessoal e matéria-prima não alimentar, não tendo feito igual discriminação quanto à matéria prima alimentar (art.º 110.º), não parece que o tribunal a quo devesse inquirir testemunhas para a sentença concluir, como concluiu, pela falta de plausibilidade do preço proposto para a refeição ligeira.

Não existe, assim, qualquer fundamento para a sentença ser anulada.

Aliás, repete-se o que já acima se referiu: neste domínio o júri gozava de ampla margem de discricionariedade, não sendo o juízo sobre as justificações apresentadas a título de preço anormalmente baixo judicialmente sindicável, visto que nele não se detecta nenhum erro supino, crasso ou palmar.

Não tem por isso aqui cabimento a doutrina do acórdão deste TCAS, de 03-02-2009 (5), que a recorrente chama à colação.

Em resumo e para concluir, o recurso improcede in tottum.

III - Dispositivo:

Nos termos expostos acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 21-01-2010
Benjamim Barbosa (Relator)
Carlos Araújo
Teresa de Sousa

(1) Entre [...]: matéria de facto aditada àquela que foi considerada provada na sentença.

(2) Na Rev. Leg. Jur., ano 122º, pág. 112

(3) Obrigatoriamente embalada, nos termos da al. g) do n.º 1 do art.º 1.º do PC)

(4) Manual..., 2.ª ed., pag. 404.

(5) Proc. n.° 02089/07