Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 18 de Novembro de 2010 (proc. 6524/10)

Imprimir

Sumário:

1. As peças do procedimento legalmente previstas para o concurso público são o caderno de encargos e o programa do concurso, devendo ser disponibilizadas desde o dia da publicação do anúncio no DR até ao termo do prazo fixado para a apresentação das propostas, prazo prorrogável em caso de atraso e pelo período mínimo desse mesmo atraso, a pedido do interessado, mediante decisão do órgão competente para a decisão de contratar, a notificar e publicitar - vd. artºs 40º nº 1 b) e 133º nºs. 1, 2, 6 e 7, CCP.
2. O art° 132° n° 3 CPTA torna extensivo às providências em matéria de contratação pública o regime geral da tutela cautelar assente nas disposições comuns (art°s. 112° a 127°) com as adaptações devidas por ressalva expressa dos n°s. 4 a 7 do citado normativo.
3. No domínio cautelar da formação de contratos o art° 132° n° 6 CPTA institui um regime específico, mas não a ponto de desconsiderar os requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora e elevar o critério da ponderação dos interesses em presença como pressuposto único de decisão.
4. Os critérios de existência do periculum in mora aferidos pela situação de facto consumado e de produção de prejuízos de difícil reparação nos termos do artº 120º nº 1 b) c) CPTA, não constituem tema probatório do processo cautelar em matéria de procedimentos de formação de contratos.

 

Texto Integral:

A...- Ambiente e Sistema de Informação Geográfica, Lda., Associação B...- Centro de Computação Geográfica e C...Sistemas Integrados SA, com os sinais nos autos, inconformadas com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada dela vêm recorrer. Concluindo como segue:

1. As peças do concurso devem ser integralmente disponibilizadas, de forma directa, na plataforma electrónica utilizada pela entidade adjudicante, desde o dia da publicação do anúncio do concurso (cfr. arts. 133°, n° l e n° 2, do CCP);
2. O prazo para a apresentação das propostas deve ser prorrogado pela entidade adjudicante, a pedido dos interessados, no mínimo por período equivalente ao do atraso verificado (cfr. art. 133°, n° 6, do CCP);
3. O limite temporal para o interessado requerer a prorrogação de prazo para apresentação de propostas é o termo deste prazo nos termos do art. 133°, n° 6, do CCP;
4. Enquanto o prazo para a apresentação de propostas estiver a correr, qualquer interessado, com fundamento na falta de disponibilização das peças do concurso na plataforma electrónica, pode requerer à entidade adjudicante a prorrogação desse prazo até que as referidas peças sejam disponibilizadas na plataforma electrónica ou lhe sejam remetidas;
5. O pedido formulado pelas autoras na p.i. foi o seguinte: «deverá ser julgado provado e procedente o presente procedimento e, consequentemente, ser suspenso o processo de concurso n° 3/2009/DRA, a que se refere o art. 7° e os documentos 7 e 2, até que seja facultado às requerentes cópia do projecto de execução do Sr. Arq. Nuno R. Lopes, devendo com a entrega efectiva do referido documento iniciar-se o prazo para apresentação da proposta» Este pedido, entre outros circunstâncias, decorre do alegado no art. 27°da p.i., onde se refere que «as requerentes têm direito a que seja prorrogado o prazo para apresentação de propostas até que lhe seja facultado cópia do projecto de execução do Sr. Arq. Nuno R. Lopes, que faz parte integrante do caderno de encargos, nos termos do art. 133°, n° 6 do CCP».
6. Em 23 de Novembro de 2009 as autoras não pediram qualquer prorrogação de prazo, pois solicitaram à ré apenas «o acesso às peças concursais»;
7. Do processo de concurso anexo aos autos resulta que o termo do prazo para apresentação de propostas por parte dos interessados ocorreu em 15 de Janeiro de 2010.
8. O tribunal recorrido considerou provado que o pedido de prorrogação de prazo por falta de entrega das peças desenhadas, formulado pelas autoras, ocorreu em 7 de Janeiro de 2010;
9. O tribunal recorrido considerou provado que a resposta ao pedido referido no número precedente, por parte da ré, ocorreu em 11 de Janeiro de 2010, a qual foi no sentido do seu indeferimento;
10. Foi o acto referido no número precedente, que negou deferimento ao pedido de prorrogação de prazo por falta de entrega das peças desenhadas do concurso - projecto de execução do Sr. Arq. Nuno R. Lopes que faz parte integrante do caderno de encargos - que foi objecto de impugnação pelas autoras no âmbito do presente procedimento, o qual foi instaurado quatro dias depois, em 15 de Janeiro de 2010, respeitando-se assim o prazo indicado no art. 101° do CPTA.
11. A sentença recorrida violou o disposto no art. 5° do Programa do Procedimento e nos arts. 40°, 42°, n°s 1, 3 e 4 (parte final) e 133°, n°s. 2 e 6, do CCP.
Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença recorrida, proferindo-se acórdão que condene a ré no pedido.

A entidade Recorrida não contra-alegou.

Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência - artºs. 36º nºs. 1 e 2 CPTA e 707º nº 2 CPC, ex vi artº 140º CPTA.

Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. A ré promoveu a abertura de processo de concurso destinado à aquisição dos serviços inerentes à concepção, transporte, instalação e montagem de filmes e equipamentos relativos a uma exibição multimédia virtual (Viagem Oceânica no Mar dos Açores -VOMA), bem como da concepção, criação, gestão e disponibilização de página da internet e respectiva execução, tudo conforme anúncio publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 2009, e Caderno de Encargos e Programa de Procedimento.
2. No artigo 5° do Programa do Procedimento, sob a epígrafe "fornecimento das peças do procedimento", consta o seguinte: "desde que solicitados em tempo útil, os interessados poderão obter cópias devidamente autenticados das peças escritas e desenhadas do Procedimento, as quais lhes serão entregues ou enviados no prazo máximo de três dias a contar da data da recepção do respectivo pedido escrito à Entidade Adjudicante, mediante as seguintes condições: pedido por escrito, identificando o concorrente, sendo as cópias entregues ou enviadas no prazo máximo de 3 (três) dias a contar da recepção do pedido; as cópias dos Peças do Procedimento serão fornecidas em suporte de papel pelo preço de 100,00€ (cem euros); os pagamentos serão efectuados em numerário com cheque passado à ordem do Direcção Geral do Orçamento e Tesouro".
3. Na Memória Descritiva anexa ao Caderno de Encargos consta na página 16 que o projecto de execução é da responsabilidade do Arquitecto Nuno R. Lopes e pode ser consultado nas instalações da entidade adjudicante.
4. As autoras, pretendendo apresentar-se a concurso como consórcio, solicitaram através de e-mail da autora Ambisig, no dia 23 de Novembro de 2009, o acesso às peças concursais.
5. No dia 26 de Novembro de 2009, os serviços da ré remeteram o caderno de encargos e o programa do procedimento, não enviando cópia em papel do projecto de execução da autoria do Sr. Arq. Nuno R. Lopes.
6. Em 7 de Janeiro de 2010, a autora endereçou aos serviços da ré novo pedido escrito no sentido de lhe serem enviadas as peças desenhadas e pediu a prorrogação do prazo para a apresentação de propostas até que lhe fossem entregues as peças solicitadas, pedido que não foi atendido, o que a ré informou por carta de 11 de Janeiro de 2010.
7. A presente acção deu entrada neste tribunal em 15.01.2010.

Nos termos do artº 712º nº 1 b) CPC, aplicável ex vi artº 140º CPTA, adita-se ao probatório a matéria de facto que segue sob o item 8, julgada pertinente e provada com base no documento especificado, constantes dos autos:

8. A carta de 11 de Janeiro de 2010 remetida pela Secretaria Regional do Ambiente e do Mar - Direcção Geral do Ambiente do Governo Regional dos Açores, à Ambisig - Ambiente e Sistemas de Informação Geográfica, SA, referida supra no ponto 6, é do teor que se transcreve:
"(..) ASSUNTO: CONCURSO PÚBLICO N° 3/2009/DRA - "CONCURSO PÚBLICO COM PUBLICAÇÃO DE ANÚNCIO NO JOUE DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PARA AQUISIÇÃO DE IDENTIDADE VISUAL E PAGINA DE INTERNET PARA O AQUÁRIO VIRTUAL E EXIBIÇÃO MULTIMEDIA E RESPECTIVA EXECUÇÃO -FÁBRICA VELHA DA BALEIA, ILHA DO FAIAL"
Na sequência da solicitação datada de 07.01.2010 por parte da vossa empresa, relativamente ao requerimento atempado das peças concursais compostas por "peças escritas e desenhadas do procedimento, conforme art° 5° do programa do procedimento" e ao facto de as peças desenhadas nunca terem sido enviadas, somos a informar o seguinte:
Vem a vossa empresa referir que "as peças desenhadas nunca foram fornecidas" e nunca o foram precisamente por não fazerem parte nem do Programa do Procedimento nem do Caderno de Encargos (nem mesmo como anexo), sendo estas as únicas peças concursais aprovadas por Sua Excelência o Secretário Regional do Ambiente e do Mar em 03.11.2009.
A referência no art° 5° do Programa do Concurso a "peças escritas e desenhadas" constitui um grosseiro lapso de escrita naquele artigo, facilmente identificável, porquanto se encontra em manifesta contradição com o descrito explicitamente na página 16 (1.1.Introdução) do Caderno de Encargos, onde se refere que "O projecto de execução é da responsabilidade do gabinete do Arquitecto Nuno R. Lopes e pode ser consultado nas instalações da entidade adjudicante", nunca se indicando, aliás, que o mesmo fazia parte das peças concursais.
Importa referir que a vossa empresa, que solicitou esclarecimentos dentro do prazo legal, não o fez relativamente a esta contradição existente entre os dois documentos, tendo apenas solicitado"esclarecimentos" quanto à existência de valor base do procedimento e quanto à data de entrega das propostas. Embora dentro do prazo legal para o pedido de esclarecimentos sobre as peças do procedimento as questões suscitadas não consubstanciavam verdadeiramente "esclarecimentos necessários à boa compreensão e interpretação das peças", conforme disposto no n° 1 do art° 50° do CCP, uma vez que apenas versavam sobre questões cuja resposta decorre da própria lei.
A questão agora suscitada poderia, quanto muito, tê-lo sido em sede de pedido de esclarecimentos das peças concursais, sendo, nesta fase, absolutamente extemporânea.
Desta forma, não são enviadas as "peças desenhadas" do concurso, por não existirem, podendo o projecto de execução da responsabilidade do gabinete do Arquitecto Nuno R. Lopes ser consultado nas instalações da entidade adjudicante nos dias úteis, das 09h00m às 12h30m e das 14h00m às 17h30m, até â data de entrega das propostas.
Assim sendo, informa-se que, por despacho de 09/01/2010, de sua Excelência o Secretário Regional do Ambiente e do Mar, o pedido de prorrogação de prazo para entrega das propostas, é indeferido.
Enviando os melhores cumprimentos.
A Presidente do Júri (assinatura) (..)" - fls. 60/61 dos autos

DO DIREITO

Atento o objecto do projecto derivado dos exactos termos da petição inicial, nomeadamente o pedido de "ser suspenso o processo de concurso nº 3/2009/DRA", o processo em causa tem a natureza de providência cautelar relativa a procedimento de formação de contrato, sendo-lhe aplicável o disposto nos artºs. 132º e ss do CPTA.
Na circunstância, o pedido de suspensão do procedimento fundamenta-se na notificação de 11.01.2010 do indeferimento da prorrogação do prazo de entrega de propostas, pedida pela ora Recorrente em 07.01.2010 e a acção cautelar deu entrada em juízo em 15.01.2010, vd. pontos 6, 8 e 7 do probatório.
Neste sentido o prazo para instauração da presente providência cautelar de suspensão do procedimento concursal conta-se da notificação do acto reputado de anulável pela ora Recorrente, a saber, o acto de indeferimento da peticionada prorrogação do prazo de entrega das propostas.
O que significa que em razão da natureza instrumental da acção cautelar relativamente à acção principal e na medida em que a propositura da acção principal em matéria de contencioso pré-contratual está sujeita ao prazo de um mês - vd. artº 101º CPTA - o processo cautelar só pode ser intentado dentro desse mesmo prazo sob pena de indeferimento liminar ex vi artº 116º nº 2 d) CPTA.
Pelo que vem dito a acção foi tempestivamente intentada, não se verificando a declarada caducidade do direito de acção cautelar, cumprindo, pois, conhecer em substituição.

A ora Recorrente peticionou e obteve satisfação por despacho de fls. 121 dos autos, na ampliação do objecto da causa, primitivamente centrado na suspensão do procedimento concursal, tendo peticionado a anulação de todos os actos subsequentes ao indeferimento de 11.01.2010 e a anulação do contrato caso tenha sido celebrado, sendo que em via de recurso pede a condenação da ora Recorrida no pedido, supõe-se que, de prorrogação do prazo de entrega das propostas.
Sucede que a cumulação sucessiva deduzida não tem fundamento de direito adjectivo que a sustente.
Nada obsta, ex vi artºs. 4º nº 2 d) e 47º nº 2 c) CPTA, à cumulação do pedido de anulação de um acto administrativo emanado no decurso do procedimento pré-contratual com o de invalidação do contrato, em via derivada ou consequente; e também nada obsta à cumulação de providências cautelares entre si, conforme disposição expressa dos artºs 112º nº 1 CPTA e 392º nº 3 CPC, aplicável ex vi artº 1º CPTA.
Todavia, tendo em conta a característica da provisoriedade da tutela cautelar e consequente inaptidão para definir definitivamente o fundo da causa, atento o respectivo escopo de protecção das posições substantivas do Requerente enquanto não sobrevém sentença com trânsito em julgado no processo principal, tal significa que não é adjectivamente possível cumular pedidos cautelares com pedidos a deduzir no processo principal.
De modo que as questões trazidas a recurso serão apreciadas segundo o pedido formulado no requerimento inicial de suspensão do procedimento concursal.

No domínio dos procedimentos de formação de contratos, a consideração conjunta dos requisitos do fumus boni iuris, periculum in mora e ponderação dos interesses em presença ou apenas deste último, fazendo cair os dois primeiros como critérios próprios de concessão cautelar, configura matéria controversa.
Cumpre tomar posição em ordem a decidir o presente recurso.

1. concessão cautelar em procedimentos de formação de contratos - art°s 132° n° l CPTA e 2° n° l a) da Directiva 89/665/CEE;

Salvo o devido respeito por entendimento distinto, da conjugação do disposto nos n°s. l, 3 e 6 do
art° 132° CPTA não parece que o regime processual das providências cautelares em sede de procedimento de formação de contratos imponha modo inelutável a desconsideração do juízo de apreciação autónoma do fumus boni iuris, nas duas vertentes da aparência do direito ou interesse invocado pelo requerente como merecedor de tutela e da probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva que sobre tal interesse se projecta, e do periculum in mora de infrutuosidade ou de retardamento pelo decurso do tempo na prática dos actos jurídicos na instância principal, ou seja, do perigo de produção de danos específicos com origem no tempo de pendência da acção principal de que o meio cautelar é instrumental.
Os art°s 132° n° l CPTA e 2° n° l a) da Directiva 89/665/CEE ao explicitarem o escopo deste
meio adjectivo dispõem que se trata de "providências destinadas a corrigir a ilegalidade ou a impedir que
sejam causados outros danos aos interesses em presença", texto do primeiro, e de "medidas provisórias
destinadas a corrigir a alegada violação ou a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em
causa", texto da segunda.
Na medida em que se trata de tutela cautelar instrumental de acção de contencioso urgente pré-
contratual, a referência à correcção das ilegalidades e impedimento de outros danos nos interesses em causa significa que o fim deste meio adjectivo converge para a prevenção da posição substantiva de fundo do requerente enquanto o procedimento de formação de contrato ainda esteja em curso, isto é, "numa fase em que as violações podem ainda ser corrigidas" como se diz nos considerandos da Directiva 89/665/CEE, em ordem a ser possível, ainda, a efectiva permanência do requerente como sujeito do procedimento e prevenir o risco de lesão do seu interesse na adjudicação e, mais que tudo, evitar a celebração e execução do contrato, assumindo, uma tutela cautelar de direitos do tipo pretensivo que, no âmbito dos procedimentos de formação de contratos, actue ainda antes de a lesão se produzir. (1)
A referência expressa à correcção de ilegalidades e interesses em presença demonstra, a nosso ver, que os requisitos do fumus boni iuris (aparência dum direito e da ilegalidade da actuação administrativa) e periculum in mora (perigo de insatisfação desse direito aparente) se configuram, nos termos gerais de direito da acção cautelar, como pressupostos necessários à sua decretação, dado que "(..) a função das providências cautelares consiste justamente em eliminar o periculum in mora, em defender o presumido titular do direito contra os danos e prejuízos que lhe pode causar a formação lenta e demorada da decisão definitiva (..) submetendo a relação jurídica litigiosa a um exame sumário, e por isso rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, dano (..)". (2)
Pelo que vem de ser dito e com fundamento no disposto no art° 132° n° 3 CPTA, o regime geral da tutela cautelar assente nas disposições comuns (art°s. 112° a 127°) é extensivo às providências em matéria de contratação pública, com as adaptações devidas por ressalva expressa nos seus n°s. 4 a 7.
O que significa, salvo o devido respeito pelo entendimento contrário sustentado na doutrina, que o regime do art° 132° n° 6 CPTA é no sentido de dotar a tríade dos pressupostos cautelares de especificidades próprias, mas não a ponto de desconsiderar os requisitos do fumus boni iuris e periculum in mora e elevar o critério da ponderação dos interesses em presença a pressuposto único de decisão. (3)

2. periculum in mora - art°s 132° n° l CPTA e 2° n° l a) da Directiva 89/665/CEE;

Nas providências cautelares o pressuposto processual do interesse em agir corporiza-se no periculum in mora na medida em que, como já posto em evidência supra, a tutela cautelar no domínio do contencioso dos procedimentos de formação de contratos tem por finalidade eliminar o dano marginal da formação lenta e demorada da decisão definitiva de modo a permitir que o requerente, até ao trânsito em julgado da acção principal e supondo ganho de causa, se mantenha como sujeito participante no procedimento e evite a celebração ou o início de execução do contrato.
Propósito manifesto, repete-se, nos art°s 132° n° l CPTA e 2° n° l a) da Directiva 89/665/CEE.
O que significa que neste tipo de providências, precisamente porque o periculum in mora se configura nos limites do interesse do requerente em permanecer no procedimento em ordem à adjudicação e evitar a celebração ou o início de execução do contrato, ademais de (i) a lei, cfr. art° 120° n° l a) ex vi 132° n° 6, prescindir da sua invocação em caso de ostensiva ilegalidade da actuação administrativa, (ii) também dispensa o requerente do ónus de alegação de matéria de facto em ordem à graduação do fundado receio nas vertentes da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação - na formulação unitária do regime geral do art° 120° n° l b) e c) CPTA - na medida em que nem uma nem outra dessas vertentes são exigíveis, exactamente porque, reitera-se, a lei se basta com a probabilidade de prejuízo do interesse na adjudicação, prejuízo materializado, como é evidente, no facto de cessar a efectiva permanência do requerente como sujeito do procedimento concursal. (4)
Deste modo, não sendo exigíveis, a conclusão a tirar é que os critérios de existência do periculum in mora aferidos pela situação de facto consumado e de produção de prejuízos de difícil reparação nos termos do artº 120º nº 1 b) c) CPTA, não constituem tema probatório do processo cautelar em matéria de procedimentos de formação de contratos.

3. fumus boni iuris incontroverso, patente e irrefragável - artº 120° n° l a) CPTA;

Um dos traços distintivos fundamentais da tutela cautelar reside na instrumentalidade do processo cautelar ao processo principal, servindo-lhe de escora em ordem a garantir a utilidade da acção em que se discute o fundo da causa e preservar o direito ou interesse ameaçado pelo periculum in mora.
O que evidencia a razão pela qual "(..) no contencioso administrativo a apreciação do fumus boni iuris requer não apenas a emissão de um juízo sobre a aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela, como também da probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva do mesmo (..)", ilegalidade essa cuja verificação há-de configurar o objecto da causa principal relativa ao procedimento de formação do contrato, sendo que a aparência do bom direito, "(..) Constitui, assim, um imperativo lógico, por consubstanciar uma regra de puro bom senso, admitir a relevância do fumus boni iuris, reconhecendo-lhe o valor de pressuposto incontornável da concessão de providências cautelares nos procedimentos de formação de contratos. A sua consagração deve ter-se por ínsita na própria referência aos prejuízos decorrentes para o interessado no decretamento da providência, em virtude de só poder afirmar-se o perigo de produção de um prejuízo adveniente da morosidade do processo se lhe assistir aparentemente razão. (..)". (5)
Todavia, a alínea a) do n° l do artº 120° CPTA tem como campo de aplicação as situações excepcionais que pelas suas características prescindem da verificação dos requisitos gerais estatuídos em sede de regime geral, de modo que "(..) o seu sentido e alcance é, pois, o de estabelecer um regime especial de atribuição das providências, mediante o qual é afastada, para as situações nele contempladas, a aplicação do regime geral, consagrado nas alíneas b) e c) do n° l e n° 2.
As situações excepcionais contempladas no n° l alínea a) são aquelas em que se afigura evidente ao Tribunal que a pretensão formulada ou a formular pelo requerente no processo principal irá ser julgada
procedente. (..)". (6)
A cognição cautelar assenta num juízo de probabilidades quanto à existência do direito acautelado, isto é, assenta numa aparência do bom direito, ou fumus boni iuris, fundamento jurídico da provisoriedade de direito da decisão cautelar perante a decisão da causa principal, "(..) a provisoriedade resulta como consequência normal do tipo de cognição que o juiz do processo acessório faz sobre o mérito do quid que é objecto do segundo processo: cognição assente na aparência, já que apenas se exige como grau de prova a fundamentação [mera justificação como meio de prova] (..) é sempre provisória de direito perante o juiz da causa principal, já que os seus efeitos de direito são sempre modificáveis e extintos pelo juiz da causa principal (..) no processo em que é emitida, "a cognição cautelar assenta num cálculo de probabilidades quanto à existência do direito acautelado" (..)" (7)
A qualidade de cognição exigida pelo art° 120° nº l a) CPTA para o fumus boni iuris traduzida na expressão "evidente procedência da pretensão formulada" mede-se pelo carácter incontroverso (que não admita dúvida), patente (posto que visível sem mais indagações) e irrefragável (irrecusável, incontestável) do presumível conteúdo favorável da sentença de mérito da causa principal, derivado da cognição sumária das circunstâncias de facto e consequente juízo subsuntivo na lei aplicável, efectuados no processo cautelar.

4. ponderação de interesses - artº 132º nº 6 CPTA;

No tocante ao critério da ponderação dos interesses em presença, de fundamental configuração
nesta tutela cautelar, as regras são exactamente as mesmas que regem no domínio do periculum in mora, incluindo a respectiva desconsideração sempre que seja caso de evidente procedência do pedido deduzido/a deduzir na acção principal por ilegalidade manifesta da conduta administrativa, vd. art° 132° n° 6, 1a parte, CPTA.
Fora do quadro da evidência do direito invocado em ambas as vertentes (aparência da existência de um direito ou interesse do particular a merecer tutela e probabilidade da ilegalidade da actuação lesiva do mesmo), independentemente de, segundo o entendimento doutrinário em que nos inserimos, a prova sumária confluir, em juízo de verosimilhança, para o preenchimento das condições naturais de procedência da específica tutela cautelar requerida, isto é, de se concluir pela (i) existência provável do direito invocado (ii) e da aparente invalidade do acto administrativo praticado, (iii) bem como dos efeitos lesivos do concreto interesse invocado pelo requerente que no caso, como já se disse é de permanecer como sujeito do procedimento concursal, todavia, a concessão da providência depende do juízo de probabilidade quanto aos danos dela provenientes no domínio da esfera jurídica dos demais interessados, presentes no caso concreto trazido a juízo, vd. art° 132° n° 6, 2a parte, CPTA.
Dito de outro modo, muito embora o requerente tenha a seu favor a aparência do bom direito invocado e provável invalidade do acto da Administração de que deriva o risco de infrutuosidade pela demora da tutela jurisdicional principal, não é de decretar a providência requerida
· caso da concreta ponderação de todos os interesses em presença susceptíveis de serem lesados - o interesse público concreto na estabilidade dos actos praticados no domínio do procedimento ou na celebração e execução do contrato, o interesse dos terceiros, maxime, na manutenção das suas posições jurídicas procedimentais e o interesse do requerente da tutela provisória,
· se conclua, em juízo de probabilidade, que os danos resultantes da adopção da providência (para a Administração requerida e terceiros) são superiores aos prejuízos que podem resultar da sua não adopção (para o requerente), sem que "(..) possa haver contra-providências que evitem ou atenuem (suficientemente) a lesão (..)", vd. art° 132° n° 6, parte, CPTA. (8)

Aplicando o direito exposto ao caso concreto a primeira nota em evidência traduz-se na circunstância de a ora Recorrente nada ter explicitado - ao arrepio do disposto no artº 114º nº 3 i) CPTA - no sentido de identificar o processo principal de que a presente providência seria instrumental.
Significa esta omissão que a relação jurídica cautelar se mostra destituída de um dos pólos essenciais em ordem a permitir ajuizar se a adopção da providência requerida - a suspensão do procedimento concursal - se mostra necessária para assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal.
Decorre dos autos que tendo a ora Recorrente pedido em 23.11.2009 o acesso às peças desenhadas do procedimento por referência ao artº 5º do Programa não lhe foram enviadas e que, em 07.01.2010, pedidas novamente juntamente com a prorrogação do prazo de entrega das propostas, foi informada em 11.01.2010 que as peças desenhadas não existem, tratando-se de um lapso do artº 5º do Programa e indeferido o pedido de prorrogação do mencionado prazo - itens 2, 3, 4, 6 e 8 do probatório.
Vejamos como se configura a matéria em causa no concreto procedimento concursal trazido a juízo e cuja suspensão vem peticionada.

5. peças do procedimento - concurso público para aquisição de serviços;

Atento o tipo específico de procedimento, as peças do procedimento legalmente previstas para o concurso público são o caderno de encargos e o programa do concurso, devendo ser disponibilizadas desde o dia da publicação do anúncio no DR até ao termo do prazo fixado para a apresentação das propostas, prazo prorrogável em caso de atraso e pelo período mínimo desse mesmo atraso, a pedido do interessado, mediante decisão do órgão competente para a decisão de contratar, a notificar e publicitar, - vd. artºs 40º nº 1 b) e 133º nºs. 1, 2, 6 e 7, CCP.
Na circunstância, o artº 5º do Programa refere que "os interessados poderão obter cópias devidamente autenticados das peças escritas e desenhadas do Procedimento", sendo que do ponto 3 do probatório "Na Memória Descritiva anexa ao Caderno de Encargos consta na página 16 que o projecto de execução é da responsabilidade do Arquitecto Nuno R. Lopes e pode ser consultado nas instalações da entidade adjudicante.".
Sustenta a ora Recorrente que o mencionado projecto de execução é a peça desenhada que, nas condições do artº 5º do Programa do concurso público, os concorrentes podem obter por cópia devidamente autenticada, desde que solicitada em tempo útil.
Na economia do CCP, concretamente nos termos do artº 43º nº 1 b) CCP o projecto de execução "(..) é uma peça obrigatória do procedimento pré-contratual das obras públicas, integrando o respectivo caderno de encargos (43º/1 e 43º/3) o qual padece de nulidade no caso da sua falta [43º/8 a)] (..)" (9)
Sucede, ademais, que as expressões de "peças escritas" e "peças desenhadas" constituem terminologia usual dos textos legais que dispõem sobre as peças do procedimento nas empreitadas de obras públicas, nomeadamente no DL 495/93 de 10.12 o artº 60º e no DL 59/99 de 02.03 o artº 63º, em ordem a definir a obra a executar.
Donde se conclui que no tocante ao preciso procedimento concursal de aquisição de serviços o mencionado projecto de execução a que se refere a Memória Descritiva anexa ao Caderno de Encargos, não tem a natureza de peça legal do procedimento - não se trata de empreitada de obra pública - e, pelo tanto, não lhe é aplicável o regime do artº 133º CCP, v.g. no tocante à prorrogação do prazo de entrega das propostas.
O mesmo é dizer que não resulta provado em juízo de verosimilhança o requisito cautelar do fumus boni iuris na componente da ilegalidade do agir administrativo, no caso, do indeferimento do pedido de prorrogação do prazo de entrega das propostas em ordem a sustentar o pedido de suspensão do procedimento concursal.
Consequentemente, não cabe entrar na análise do balanceamento dos interesses da ora Recorrente e dos riscos incorridos pelo interesse público contrapostos aos primeiros, porque, na circunstância dos autos é questão que se mostra prejudicada pelas razões expostas supra.
Pelo que vem dito, improcedem todas as questões suscitadas nos itens 1 a 11 das conclusões de recurso.


Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso
Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em revogar a sentença proferida no que respeita à caducidade do direito de acção cautelar e, em substituição, não decretar a providência requerida de suspensão do procedimento concursal.

Custas a cargo da Recorrente.
Lisboa, 18.NOV.2010

(Cristina dos Santos)
(António Vasconcelos)
(Paulo Gouveia)


1- Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar no contencioso administrativo (em especial nos procedimentos de formação dos contratos), Coimbra Editora/2005,págs. 531/532; Alexandra Leitão, A protecção judicial dos terceiros nos contratos da administração pública, Almedina/2002, págs. 376/380; Pedro Gonçalves, Avaliação do regime jurídico do contencioso pré-contratual urgente, CJA/62, págs.4/5.

2- Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol I, Coimbra/1980, págs. 621 e 625.

3- Vieira de Andrade,
A justiça administrativa, 10aed. Almedina/2009, págs. 376/377; Políbio Henriques, Processos urgentes - algumas reflexões, CJA/47, págs.39/40; Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2005, págs.670/671; Ana Gouveia Martins, A tutela cautelar ... págs. 524/525; Pedro Gonçalves, Avaliação do regime jurídico..., CJA/62, págs. 4/5; Aroso de Almeida, Manual de processo administrativo, Almedina/2010, págs. 491/493;

4- Aroso de Almeida, Manual de processo administrativo, Almedina/2010, pág. 492.

5- Ana Gouveia Martins,
A tutela cautelar... págs. 43 nota (40), 71/72 e 536/537.

6- Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha,
Comentário ao CPTA, Almedina/2005, pág. 602.

7- Isabel Celeste M.Fonseca,
Introdução ao estudo sistemático da tutela cautelar no processo administrativo, Almedina/2002, págs. 93/94 e 97/98.

8-
Vieira de Andrade, A justiça ... págs. 376/377.

9-
Mário Esteves de Oliveira et alii, Código dos Contratos Públicos e legislação complementar - guias de leitura e aplicação, Almedina/2008, pág. 817.