Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 20 de Janeiro de 2011 (proc. 223/10)

Imprimir

Sumário:

I. O erro no julgamento de facto efectuado terá de reportar-se ao que na decisão judicial se mostra fixado nessa sede por contraposição com o alegado pelas partes, respectivos posicionamentos e elementos probatórios produzidos, não relevando para esse erro o que consta da argumentação expendida em sede de enquadramento jurídico da causa aquando da análise das várias ilegalidades assacadas ao acto impugnado.
II. Para o assegurar duma sã e livre concorrência, bem como duma efectiva igualdade de oportunidades e da liberdade de prestação/fornecimento de bens e serviços em matéria de procedimento de formação de contratos assumem relevância e implicações não apenas os cuidados ao nível das especificações técnicas e sua complexidade, mas também as particulares exigências que devem ser impostas ao nível das peças procedimentais em termos da definição do âmbito e do objecto do concurso e das suas cláusulas ou requisitos funcionais e técnicos.
III. O aferir se o procedimento de formação de contrato se inicia, desenvolve e culmina com prolação de decisões que respeitam todo um quadro de exigências em matéria de concorrência, de igualdade de condições e de tratamento entre candidatos/concorrentes e de imparcialidade revela-se como imprescindível de ser garantido e assegurado em sede de tutela jurisdicional.
IV. Existindo nos autos controvérsia quanto a articulação/alegação e consequente pretensão judicial estribada em realidade factual que possa ou seja susceptível de configurar violação de princípios gerais de direito e/ou de qualquer outro quadro normativo vigente impõe-se que aquela realidade factual seja objecto de instrução e ulterior julgamento, enfermando de ilegalidade a decisão judicial que em sentido inverso haja concluído.*
* Sumário elaborado pelo Relator
        

Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

1.
RELATÓRIO

"A..., LDA."
, devidamente identificada nos autos, inconformada veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Mirandela, datada de 21.10.2010, que julgou improcedente a acção administrativa de impugnação urgente [contencioso pré-contratual] pela mesma deduzida nos termos dos arts. 100.º e segs. do CPTA contra a "ASSOCIAÇÃO DE MUNICÍPIOS DA TERRA FRIA DO NORDESTE TRANSMONTANO" [doravante "AMTFNT"] e a contra-interessada "M..., SA", ambas igualmente identificadas nos autos, na qual peticionava a anulação da deliberação do Conselho Directivo da "AMTFNT" de 22.04.2010 que procedeu à adjudicação àquela contra-interessada do objecto do "Concurso Público para Fornecimento de uma Solução de Desmaterialização e Gestão Documental e de uma Plataforma de Disponibilização de Informação e Serviços da entidade Associação de Municípios da Terra fria do Nordeste Transmontano" [Procedimento PPA004/2009 da «AMTFNT» - notificada à A. por ofício de 28.04.2010] e, bem assim, a anulação do contrato eventualmente celebrado entre as RR..

Formula a recorrente nas respectivas alegações (cfr. fls. 425 e segs. - paginação processo em suporte físico tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário) as seguintes conclusões que se reproduzem: "...
1. A R. não cumpriu o estipulado nos arts. 166.º e 163.º do CCP quando não prestou os esclarecimentos solicitados, violando assim o Princípio de Legalidade.
2. A R. violou o art. 1.º do CCP por não ter aplicado o Princípio da Fundamentação - art. 124.º do CPA - já que, não fundamenta os seus esclarecimentos deficientemente prestados.
3. A R. violou o Direito à Informação da aqui A., bem como, violou outros princípios de direito administrativo, como sejam o Princípio da Imparcialidade e o Princípio da Igualdade, já que, uma das concorrentes (a M...) e que veio a ser a adjudicatária, já possuía a informação solicitada pela aqui A. em sede de esclarecimentos, não tendo prestado a mesma informação à A. de forma que esta e todos os outros concorrentes estivessem em posição de igualdade de circunstâncias e oportunidades para a elaboração das suas propostas, ocultando assim informação essencial.
4. A R. violou o art. 147.º do CCP, já que tomou a decisão de adjudicação no Relatório Preliminar o que gera a nulidade pela preterição de uma formalidade essencial.
5. A R. violou o Princípio da Legalidade ao adjudicar a proposta da M..., proposta essa que não contem alguns dos requisitos do Caderno de Encargos, bem como, por a proposta do concorrente posicionado em 1.º Lugar, não cumprir os objectivos do programa de financiamento SAMA;
6. A douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela para a qual mui respeitosamente se remete a leitura, omite e não considera factos claramente provados pela A./recorrente, tendo ainda decidido mal aquando da não audição das testemunhas arroladas que muitos esclarecimentos poderiam trazer à verdade dos factos e da razão.
7. Se invoca desde já a violação de princípios estruturantes da contratação pública [princípio da concorrência e princípio da proporcionalidade], e de um conjunto de normas legais [artigos 166.º, 163.º, 70.º, n.º 2 b)] na mira de ver reposta a legalidade do procedimento, e aberta, assim, a possibilidade de a ele se candidatar com a apresentação de proposta viável e exequível ...".
Pugna pela revogação da decisão e total procedência da acção.
Dos RR., aqui recorridos, apenas a "AMTFNT" apresentou contra-alegações (cfr. fls. 443 e segs.), nas quais pugna pela manutenção do julgado sem, todavia, formular quaisquer conclusões.
O Ministério Público (MºPº) junto deste Tribunal notificado nos termos e para efeitos do disposto nos arts.146.º e 147.º ambos do CPTA não veio apresentar qualquer parecer/pronúncia (cfr. fls. 467 e segs.).
Sem vistos, dado o disposto no art. 36.º, n.ºs 1, al. b) e 2 do CPTA, foi o processo submetido à Conferência para julgamento.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que se, por um lado, o objecto do recurso se ache delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 685.º-A, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) (na redacção introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24.08 - cfr. arts. 11.º e 12.º daquele DL -, tal como todas as demais referências de seguida feitas relativas a normativos do CPC) "ex vi" arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide "sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito".
As questões suscitadas e de que cumpre decidir resumem-se, em suma, em determinar se na situação vertente a decisão judicial recorrida ao julgar improcedente a pretensão deduzida pela A., nos termos e pelos fundamentos dela constantes, incorreu, por um lado, em erro no julgamento de facto [omissão ou não consideração de determinados factos relevantes para a decisão da causa e ausência de produção de prova testemunhal arrolada sobre os mesmos] e, por outro, em erro no julgamento de direito com desrespeito, nomeadamente, ao disposto nos arts. 01.º, 70.º, n.º 2, al. b), 147.º, 163.º e 166.º do CCP, 124.º e 125.º do CPA, bem como aos princípios da legalidade, da imparcialidade, da igualdade, da concorrência e da proporcionalidade [cfr. alegações e conclusões supra reproduzidas].

3. FUNDAMENTOS

3.1.
DE FACTO

Resulta da decisão recorrida como assente a seguinte factualidade:
I) Na sequência de prévia deliberação do Conselho Directivo nesse sentido, tomada na sua reunião ordinária de 13.11.2008, em Junho de 2009, a "AMTFNT" lançou um concurso público denominado "Concurso Público para Fornecimento de uma Solução de Desmaterialização e Gestão Documental e de uma Plataforma de Disponibilização de Informação e Serviços", melhor identificado como Procedimento PPA 004/2009.
II) Tal concurso foi publicitado no Diário da República, II.ª série, n.º 156, de 13.08.2009 e ainda no Suplemento do Jornal Oficial da União Europeia n.º S157, de 18.08.2009 (anúncio de procedimento n.º 229268-2009-PT).
III) Tendo por base o Relatório Final de Análise de Propostas elaborado pelo Júri do Procedimento, na sua reunião de 22.04.2010, o Conselho Directivo da "AMTFNT" deliberou proceder à adjudicação daquele fornecimento à empresa "M..., SA", pelo valor de 267.500,00 €.
IV) No prazo destinado a apresentação de pedidos de esclarecimento, a 31.08.2009, a "A...." apresentou à entidade adjudicante os pedidos de esclarecimento nos termos que constam do documento n.º 02 junto com a petição inicial e cujo teor dou aqui por reproduzido.
V) O Júri do Procedimento respondeu aos esclarecimentos solicitados pela A. nos termos constantes do doc. n.º 03 junto com a petição inicial e cujo teor dou aqui por reproduzido.
VI) Previamente à notificação aos concorrentes do Relatório Preliminar do Júri do Procedimento, o Conselho Directivo da "AMTFNT" aprovou-o em 18.02.2010 nos seguintes termos: «O Conselho Directivo deliberou aprovar o Relatório Preliminar apresentado pelo Júri, que propõe a adjudicação à empresa M..., SA, pelo valor de 267.500 € + IVA».
VII) Com data de 16.04.2010 foi elaborado pelo Júri do Procedimento o Relatório Final, cujo teor dou aqui por reproduzido Nos termos do art. 712.º do CPC e por resultar dos autos adita-se a seguinte factualidade que se mostra necessária à sua apreciação:
VIII) O Conselho Directivo da "AMTFNT" aprovou o relatório final referido VII) em 22.04.2010 nos seguintes termos: «... deliberado, por unanimidade, adjudicar à empresa M..., SA, pelo valor de 267.500 € ...» (ACTO IMPUGNADO). «»3.2. DE

DIREITO


Considerada a factualidade antecedente importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional "sub judice".

3.2.1. DA DECISÃO JUDICIAL RECORRIDA

O TAF de Mirandela em apreciação da pretensão anulatória deduzida pela A., aqui recorrente, concluiu pela inverificação das ilegalidades assacadas ao acto/contrato objecto de impugnação, termos em que improcedeu o pedido.

3.2.2. DA TESE DA RECORRENTE

Argumenta a mesma que tal decisão judicial fez errado julgamento já que o acto/contrato em crise padece de todas as ilegalidades que lhe foram imputadas nos autos pelo que assim não haver concluído aquele TAF incorreu em erro de julgamento quer de facto quer de direito violando, nomeadamente, o disposto nos arts. 01.º, 70.º, n.º 2, al. b), 147.º, 163.º e 166.º do CCP, 124.º e 125.º do CPA, bem como aos princípios da legalidade, da imparcialidade, da igualdade, da concorrência e da proporcionalidade.

3.2.3. DO MÉRITO DO RECURSO

3.2.3.1.
DO ERRO NO JULGAMENTO DE FACTO
Sustenta a recorrente [cfr. pontos M) e P) do corpo das alegações de recurso e conclusão 06.ª] que a decisão judicial recorrida efectuou uma incorrecta apreciação dos factos em questão, tendo lavrado duplamente em erro.
Assim, por um lado, errou por alegadamente referir nos seus termos "... que a A. não identifica expressamente o que é que a prejudicou no relatório do Exmo. Júri que não prestou os esclarecimentos necessários e imprescindíveis à construção da proposta da A..., facto que a fez ficar mal e incorrectamente qualificada ...", bem como quando "... qualificou a proposta da M... em 1.º lugar, proposta esta que, ... não comporta ... as exigências legais do concurso em apreço ...".
E, por outro, enferma também do mesmo erro porquanto, tendo sido invocados factos conducentes à verificação de determinados fundamentos de ilegalidade, mormente, infracção aos princípios da concorrência, da imparcialidade e da igualdade, "... deveria ... ter autorizado a prova testemunhal com vista a, caso desconheça os termos técnicos relativos à ausência de esclarecimentos, poder esclarecer as razões pelas quais assiste razão factual e legal à A. na sua pretensão ...".
Vejamos.

I. Cumpre referir, desde logo, que não se divisa assistir mínima razão à A. quanto ao pretenso erro no julgamento de facto inserto na decisão judicial recorrida enquanto estribado no primeiro fundamento motivador daquele erro.
Na verdade, o julgamento de facto efectuado na e pela decisão judicial em apreciação mostra-se inserto no respectivo ponto II), pelo que qualquer erro no aludido julgamento teria de reportar-se ao que ali se mostra fixado por contraposição com o alegado pelas partes, respectivos posicionamentos e elementos probatórios produzidos.
A argumentação que veio a ser expendida em sede de enquadramento jurídico da causa aquando da análise das várias ilegalidades assacadas ao acto impugnado não se configura ou pode considerar como sendo julgamento de facto e, nessa medida, eventuais erros ou incorrecções havidos nesse âmbito relevam apenas enquanto erro no julgamento de direito.

II.
Revertendo agora ao imputado erro no julgamento de facto enquanto estribado no segundo fundamento motivador temos, ao invés, que o mesmo ocorre.
Explicitemos nosso juízo.

III.
De harmonia com o disposto pelo art. 02.º, n.º 2 do CPTA a todo o direito corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente, sendo que o contencioso administrativo, tal como o civil, é informado pelo princípio do dispositivo.
Tal princípio tem como corolários, entre outros, o facto do processo só se iniciar sob o impulso da parte, mediante o respectivo pedido e nunca por impulso do juiz - "nemo iudex sine actore; ne iudex procedat ex-officio" - nisto consistindo o designado princípio do pedido; para além de competir, em exclusivo às partes aduzirem toda a factualidade necessária à decisão da causa pelo juiz; do mesmo princípio decorre, ainda, o facto do "thema decidendum" ser circunscrito pelas partes.
Daqui resulta que a actividade jurisdicional se encontra condicionada, do modo descrito, pelo pedido, nunca podendo o juiz estender a sua actividade decisória para além dele [cfr. arts. 661,º, n.º 1 e 668.º, n.º 1, al. e) ambos do CPC].
Estando, assim, o princípio do dispositivo na base da atribuição do direito de acção à pessoa directamente interessada, a tutela jurisdicional, em matéria administrativa representa um conteúdo de um direito estritamente individual, cabendo ao respectivo titular a livre determinação do seu exercício em defesa dos seus próprios interesses.
Como se expôs, para que o Tribunal possa dirimir o litígio submetido à sua apreciação, cabe às partes fixar com precisão os termos da controvérsia, nisto consistindo a finalidade dos articulados, enquanto peças processuais em que as partes expõem os fundamentos da acção e de defesa e formulam os pedidos correspondentes (cfr. n.º 1, do art. 151.º do CPC).
A narração deve ser elaborada de molde a que apresente os fundamentos necessários para justificar o pedido que vai ser enunciado a seguir, isto é, os motivos da pretensão que se reclama, entendendo-se que os fundamentos de facto abrangem não só a causa de pedir, mas ainda outros factos que servem ou para demonstrar a existência da causa de pedir, ou para a esclarecer, ou para a completar.
Esses factos, postos em contacto com a ordem jurídica, é que constituem a causa de pedir, o fundamento ou fundamentos da acção, sendo que para que o direito possa ser invocado em juízo e para que se possam extrair os efeitos jurídicos que o A. pretende é necessária a alegação de factos concretos e não de meros conceitos legais, visto o nosso sistema não se bastar com a mera invocação do direito sem indicação da sua fonte.
A alegação não pode, assim, ser feita dum modo vago, abstracto e hipotético, eivado de conceitos jurídicos, porquanto devem ser erradicados do julgamento de facto as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que porventura tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutam.
É que de nada vale uma alegação reputada como de facto mas que está repleta de questões, de conclusões ou considerações de direito, na medida em que o tribunal sobre a mesma não pode produzir qualquer prova e se o fizer tem-se a sua resposta como não escrita (cfr. art. 646.º, n.º 4 do CPC "ex vi" art. 01.º do CPTA).
Por outro lado, o julgador deve proceder ao julgamento de facto seleccionando da alegação feita pelas partes aquela realidade factual concreta tida por provada e necessária à apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas da causa, não sendo de exigir a fixação ou a consideração de factualidade que se repute ou se afigure despicienda para e na economia do julgamento da causa.
Nesse e para esse julgamento o decisor, tendo presente o objecto da acção, deverá atentar aos posicionamentos expressos pelas partes nas suas peças processuais quanto às alegações factuais invocadas entre si, aferindo e seleccionando aquilo em que estão de acordo e aquilo de que divergem, na certeza de que existindo matéria de facto controvertida que releve para a apreciação da pretensão formulada à luz das várias e/ou possíveis soluções jurídicas para a causa importa proferir despacho saneador com elaboração de matéria de facto assente e base instrutória (arts. 511.º, n.º 1 CPC, 87.º e 90.º do CPTA «ex vi» art. 102.º, n.º 1 do referido código), seguido de ulterior instrução quanto a tal realidade factual controvertida (arts. 513.º, 552.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, 623.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 todos do CPC, e 90.º do CPTA «ex vi» art. 102.º, n.º 1 do mesmo código) e, por fim, emissão de decisão sobre tal matéria de facto (arts. 646.º, n.º 4 e 653.º, n.º 2 do CPC, 91.º e 94.º do CPTA «ex vi» do referido art. 102.º, n.º 1), não podendo o juiz, uma vez confrontado com existência de factualidade controvertida essencial para a boa e correcta decisão da causa, sob pena de ilegalidade e preterição das mais elementares regras suprimir ou omitir qualquer destas fases processuais preterindo os direitos das partes em litígio, seja em termos de acção ou de defesa seja ainda em termos de contraditório.

IV.
Aqui chegados e revertendo ao caso "sub judice" temos que se constata existir factualidade controvertida susceptível de poder relevar na e para a apreciação de questões/fundamentos de ilegalidade que constituem objecto da pretensão deduzida em juízo.
Com efeito, analisada a petição inicial e argumentação ali expendida regista-se a invocação de ilegalidades consubstanciadas, mormente, na alegada infracção por parte do acto impugnado dos princípios da concorrência, da imparcialidade e da igualdade [cfr. arts. 03.º, 04.º, 07.º e 08.º daquele articulado], posição retomada e reafirmada pela A. em sede de alegações produzidas no quadro da al. a) do n.º 3 do art. 102.º do CPTA [cfr. pontos C), D), F) e G) e conclusão 03.ª daquela peça], tese/pretensão essa impugnada e contraditada pelo aqui R. [cfr. arts. 11.º a 18.º, 40.º, 41.º, 53.º a 55.º da contestação, bem como os arts. 06.º a 11.º, 18.º, 19.º, 27.º, 28.º das alegações junto do TAF "a quo" e respectivas conclusões 02.ª, 03.ª, 06.ª, 10.ª].

V.
Para efeitos do assegurar duma sã e livre concorrência, bem como duma efectiva igualdade de oportunidades e da liberdade de prestação/fornecimento de bens e serviços assumem relevância e implicações não apenas os cuidados ao nível das especificações técnicas e sua complexidade, mas também as particulares exigências que devem ser impostas ao nível das peças concursais em termos da definição do âmbito e do objecto do concurso e das suas cláusulas ou requisitos funcionais e técnicos.
Tais objectivos têm merecido a atenção e a preocupação do legislador [comunitário e nacional - cfr., v.g., em termos de especificações técnicas o art. 23.º da Directiva 2004/18/CE e respectivo Anexo VI, bem como os arts. 42.º e 49.º do CCP] e, bem assim, vêem sendo objecto de várias pronúncias jurisdicionais [cfr., entre outros, Acs. do TJUE de 26.09.2000 - Proc. n.º C-225/98 («Comissão/França»), e de 19.03.2009 - Proc. n.º C‑489/06 («Comissão/Grécia»), bem como o Despacho do TJUE de 03.12.2001 - Proc. n.º C-59/00 («Vestergaard») consultáveis in: «www.curia.europa.eu/jurisp/»].

VI.
Já num outro quadro circunstancial e jurídico importa também ter presente em matéria de exigências de igualdade de tratamento entre os concorrentes e do assegurar da participação nos procedimentos de formação contratual de determinados sujeitos/entes sem que daí advenham riscos de falseamento da concorrência e, bem assim, do respeito, nomeadamente, dos princípios da transparência e da imparcialidade ao nível daquele tipo de procedimentos a jurisprudência do TJ no caso "Fabricom" [Ac. daquele Tribunal de 03.03.2005 (Procs. n.ºs C-21/03 e C-34/03) consultável in: «www.curia.europa.eu/jurisp/»].
Não se tratando de jurisprudência automaticamente transponível para o julgamento do caso vertente possui e elenca a mesma, todavia, referências, pressupostos e considerandos que poderão servir como pontos de partida e de apoio ou sustentação no processo de formação e encontro da solução jurídica do presente litígio, pondo em evidência determinadas particularidades que devem ser tidas em linha de conta na apreciação e julgamento deste tipo de matérias.
Assim, extrai-se da fundamentação do acórdão do «TJ» em referência, na parte com relevância para o caso, que e passa-se a citar "... há que recordar que o dever de respeitar o princípio da igualdade de tratamento corresponde à própria essência das directivas em matéria de concursos públicos, que têm em vista, nomeadamente, favorecer o desenvolvimento de uma concorrência efectiva nos domínios que se inserem nos seus âmbitos de aplicação respectivos e que enunciam critérios de adjudicação dos concursos tendentes a garantir tal concorrência (acórdão de 17 de Setembro de 2002, «Concordia Bus Finland», C-513/99, Colect., p. I‑7213, n.º 81 e jurisprudência aí referida).
27. Por outro lado, segundo jurisprudência constante, o princípio da igualdade de tratamento exige que situações comparáveis não sejam tratadas de maneira diferente e que situações diferentes não sejam tratadas de maneira igual, a não ser que tal tratamento seja objectivamente justificado (acórdãos de 14 de Dezembro de 2004, «Arnold André», C-434/02, ainda não publicado na Colectânea, n.º 68 e jurisprudência aí referida, bem como «Swedish Match», C-210/03, ainda não publicado na Colectânea, n.º 70 e jurisprudência aí referida).
28. Ora, uma pessoa que foi encarregada da investigação, da experimentação, do estudo ou do desenvolvimento de obras, fornecimentos ou serviços relativos a um concurso (a seguir «pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios») não está, em relação à participação no processo de adjudicação do contrato, necessariamente, na mesma situação que uma pessoa que não efectuou esses trabalhos.
29. Com efeito, por um lado, a pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios pode estar em vantagem para elaborar a sua proposta, devido às informações que obteve, ao efectuar os referidos trabalhos preparatórios, relativamente ao contrato administrativo em causa. Ora, todos os concorrentes devem dispor das mesmas possibilidades na formulação dos termos das suas propostas (v., neste sentido, acórdão de 25 de Abril de 1996, «Comissão/Bélgica», C-87/94, Colect., p. I‑2043, n.º 54).
30. Por outro lado, a referida pessoa pode estar numa situação susceptível de conduzir a um conflito de interesses, no sentido de que, como observa correctamente a Comissão das Comunidades Europeias, se ela própria concorrer à adjudicação do contrato em causa, pode, mesmo sem ter intenção, influenciar as condições de adjudicação num sentido que lhe seja favorável. Esta situação é susceptível de falsear a concorrência entre os concorrentes.
31. Assim, atendendo a esta situação, em que a pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios se poderia encontrar, não pode ser defendido que o princípio da igualdade de tratamento obrigue a tratá-la como qualquer outro concorrente.
32. A «Fabricom» e os Governos austríaco e finlandês alegam que, no essencial, a diferença de tratamento criada por uma norma como a que está em causa no processo principal, e que consiste em proibir, em qualquer circunstância, que a pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios participe num concurso público, não se justifica objectivamente. Com efeito, essa proibição tem uma natureza desproporcionada. Na sua opinião, a igualdade de tratamento entre todos os concorrentes está assegurada desde que exista um processo em que se aprecie, em cada caso concreto, se o facto de efectuar determinados trabalhos preparatórios deu à pessoa que efectuou os referidos trabalhos uma vantagem concorrencial em relação aos outros concorrentes. Esta medida é menos restritiva para a pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios.
33. A este respeito, há que observar que uma norma como a que está em causa no processo principal não deixa à pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios qualquer hipótese de demonstrar que, no seu caso concreto, os problemas referidos nos n.ºs 29 e 30 do presente acórdão não se colocam.
34. Ora, esta norma ultrapassa o que é necessário para alcançar o objectivo da igualdade de tratamento entre todos os concorrentes. (...)
36. Nestas condições, há que responder à primeira questão colocada nos processos C-21/03 e C-34/03 que a Directiva 92/50, mais especialmente o seu artigo 3.º, n.º 2, a Directiva 93/36, mais especialmente o seu artigo 5.º, n.º 7, a Directiva 93/37, mais especialmente o seu artigo 6.º, n.º 6, bem como a Directiva 93/38, mais especialmente o seu artigo 4.º, n.º 2, se opõem a uma norma ... nos termos da qual uma pessoa que tenha sido encarregada da investigação, da experimentação, do estudo ou do desenvolvimento de obras, fornecimentos ou serviços não está autorizada a apresentar uma candidatura ou uma proposta num concurso público relativo a empreitadas para a realização dessas obras, fornecimentos ou serviços, sem que seja dada a essa pessoa a oportunidade de provar que, nas circunstâncias do caso concreto, a experiência por ela adquirida não pode ter falseado a concorrência. (...)
37. Com a segunda questão submetida nos processos C-21/03 e C-34/03, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se a resposta à primeira questão é diferente no caso de as Directivas 92/50, 93/36, 93/37 e 93/38, lidas em conjugação com os princípios da proporcionalidade, a liberdade de comércio e de indústria, bem como o direito de propriedade, serem interpretadas no sentido de que apenas abrangem as empresas privadas ou que tenham efectuado prestações a título oneroso. (...)
39. ..., não há qualquer indício, nas referidas directivas, que permita interpretá-las como abrangendo, no que respeita à sua aplicabilidade às empresas que participam ou pretendam participar num concurso público, unicamente as empresa privadas ou que tenham efectuado prestações a título oneroso. De resto, o princípio da igualdade de tratamento opõe-se a que apenas as empresas privadas ou que tenham efectuado prestações a título oneroso, que realizaram determinados trabalhos preparatórios, estejam sujeitas a uma norma como a que está em causa no processo principal, não sendo esse o caso das empresas que não possuam uma destas qualidades e que também efectuaram trabalhos desse tipo. (...)
42. ..., há que recordar que, quando estão em causa regras processuais em matéria de recursos contenciosos destinados a garantir a protecção dos direitos conferidos pelo direito comunitário aos candidatos e aos concorrentes lesados por decisões de entidades adjudicantes, estas não devem pôr em causa o efeito útil da Directiva 89/665 (acórdão de 12 de Dezembro de 2002, «Universale-Bau e o.», C-470/99, Colect., p. I‑11617, n.º 72).
43. Por outro lado, as disposições das Directivas 89/665 e 92/13, destinadas a proteger os concorrentes contra o arbítrio da entidade adjudicante, visam reforçar os mecanismos existentes para assegurar a aplicação efectiva das regras de direito comunitário em matéria de adjudicação de contratos de direito público, em especial numa fase em que as violações podem ainda ser corrigidas. Tal protecção não pode ser eficaz se o concorrente não puder invocar essas regras face à entidade adjudicante (acórdão de 24 de Junho de 2004, «Comissão/Áustria», C-212/02, ainda não publicado na Colectânea, n.º 20 e jurisprudência aí referida).
44. Ora, a possibilidade de a entidade adjudicante atrasar, até uma fase muito adiantada do processo, a tomada de decisão quanto à possibilidade de uma empresa ligada a uma pessoa que efectuou determinados trabalhos preparatórios participar no concurso ou apresentar uma proposta, quando essa entidade dispõe de todos os elementos para tomar a referida decisão, retira a esta empresa a possibilidade de invocar as regras comunitárias em matéria de adjudicação de contratos administrativos contra a entidade adjudicante, durante um período que depende unicamente da discricionariedade desta última e que se pode estender, eventualmente, até ao momento em que as violações já não podem ser corrigidas. (...)
46. Assim, há que responder à terceira questão submetida nos processos C‑21/03 e C‑34/03 que a Directiva 89/665, mais especialmente os seus artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, bem como a Directiva 92/13, mais especialmente os seus artigos 1.º e 2.º, se opõem a que a entidade adjudicante possa recusar, até ao fim do procedimento de apreciação das propostas, que a empresa ligada a uma pessoa que tenha sido encarregada da investigação, da experimentação, do estudo ou do desenvolvimento de obras, fornecimentos ou serviços participe no procedimento, ou apresente uma proposta, quando, interrogada a esse respeito pela entidade adjudicante, essa empresa afirme não beneficiar, por esse motivo, de uma vantagem injustificada susceptível de falsear as condições normais da concorrência ...".

VII.
Cientes das traves basilares da jurisprudência acaba de reproduzir e passando, agora, a da mesma extrair alguns tópicos de referência para o caso em análise ressalta como essencial, desde logo, a necessidade de que exista na condução e decisão deste tipo de procedimentos um escrupuloso cumprimento ou observância do princípio da igualdade o qual exige que situações comparáveis não sejam objecto de tratamentos diversos e que situações diferentes não sejam tratadas de forma idêntica ou em tudo similar, salvo se tal tratamento se encontre justificado objectivamente.
Daí que o aferir se o procedimento de formação de contrato se inicia, desenvolve e culmina com decisões que respeitam todo um quadro de exigências em matéria de concorrência, de igualdade de condições e de tratamento entre candidatos/concorrentes e de imparcialidade se revela como imprescindível de ser garantido e assegurado.
Alegações e pretensões judiciais estribadas em realidade factual que possam ou sejam susceptíveis de configuração como violações daqueles princípios gerais de direito e bem assim do demais quadro normativo vigente e que se apresentem como controvertidas entre as partes carecem de ser objecto de análise, instrução e julgamento.

VIII.
Nessa medida, presentes os considerandos de enquadramento antecedentes e a realidade concreta que emerge dos autos, temos que assiste razão à recorrente já que o tribunal "a quo" não podia no confrontado com a existência de realidade fáctica relevante para a decisão e que é controvertida entre as partes proferir julgamento nos termos em que o fez preterindo/omitindo as fases da condensação e da instrução (com a indicação e realização das diligências probatórias requeridas e/ou determinadas oficiosamente pelo tribunal incidindo sobre a aludida factualidade controvertida).
Na verdade, considerando a factualidade invocada no âmbito da questão em litígio e na qual se estriba também a pretensão impugnatória da A. tendente à declaração de invalidade do acto/contrato em análise na presente acção administrativa urgente, que a mesma factualidade se revela nos autos como controvertida por contraditada válida e regularmente pelo R., temos que a mesma carecia de pertinente selecção e instrução probatória de harmonia com o disposto nos arts. 513.º e segs. do CPC, 90.º e 102.º do CPTA e ulterior julgamento de facto e de direito (arts. 653.º, 658.º e segs. do CPC, 91.º, 92.º, 94.º, 95.º e 102.º do CPTA).
Há, pois, que concluir, face ao exposto, que a decisão judicial recorrida errou no julgamento de facto feito porque proferido antes de tempo e com preterição de regras processuais e de ónus probatório, não podendo, por isso, manter-se, irrelevando face ao aqui ora julgado a análise e apreciação dos outros fundamentos do recurso jurisdicional que nos vem dirigido.
Sumariando, nos termos do n.º 7 do art. 713.º do CPC, concluiu-se da seguinte forma:
I. O erro no julgamento de facto efectuado terá de reportar-se ao que na decisão judicial se mostra fixado nessa sede por contraposição com o alegado pelas partes, respectivos posicionamentos e elementos probatórios produzidos, não relevando para esse erro o que consta da argumentação expendida em sede de enquadramento jurídico da causa aquando da análise das várias ilegalidades assacadas ao acto impugnado.
II. Para o assegurar duma sã e livre concorrência, bem como duma efectiva igualdade de oportunidades e da liberdade de prestação/fornecimento de bens e serviços em matéria de procedimento de formação de contratos assumem relevância e implicações não apenas os cuidados ao nível das especificações técnicas e sua complexidade, mas também as particulares exigências que devem ser impostas ao nível das peças procedimentais em termos da definição do âmbito e do objecto do concurso e das suas cláusulas ou requisitos funcionais e técnicos.
III. O aferir se o procedimento de formação de contrato se inicia, desenvolve e culmina com prolação de decisões que respeitam todo um quadro de exigências em matéria de concorrência, de igualdade de condições e de tratamento entre candidatos/concorrentes e de imparcialidade revela-se como imprescindível de ser garantido e assegurado em sede de tutela jurisdicional.
IV. Existindo nos autos controvérsia quanto a articulação/alegação e consequente pretensão judicial estribada em realidade factual que possa ou seja susceptível de configurar violação de princípios gerais de direito e/ou de qualquer outro quadro normativo vigente impõe-se que aquela realidade factual seja objecto de instrução e ulterior julgamento, enfermando de ilegalidade a decisão judicial que em sentido inverso haja concluído.

4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Conceder provimento ao recurso jurisdicional "sub judice" e, consequentemente, revogar a decisão judicial recorrida com todas as legais consequências;
B) Determinar a remessa dos autos ao TAF de Mirandela para prosseguimento com instrução e ulterior julgamento da presente acção administrativa de impugnação urgente de contencioso pré-contratual de harmonia com o supra decidido e se a isso nada mais obstar.
Custas nesta instância a cargo da R. "AMTFNT", aqui recorrida, sendo que na mesma a taxa de justiça, não revelando os autos especial complexidade, se atenderá ao valor resultante da secção B) da tabela I anexa ao Regulamento Custas Processuais (doravante RCP) [cfr. arts. 446.º, 447.º, 447.º-A, 447.º-D, do CPC, 04.º "a contrario", 06.º, 12.º, n.º 2, 25.º e 26.º todos do referido Regulamento, e 189.º do CPTA].
Valor para efeitos tributários: 30.001,00€ [cfr. art. 12.º, n.º 2 do RCP].
Notifique-se. D.N..
Restituam-se, oportunamente, os suportes informáticos que hajam sido gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC "ex vi" art. 01.º do CPTA).

Porto, 20 de Janeiro de 2011
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. Antero Pires Salvador
Ass. Rogério Paulo da Costa Martins