Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de Outubro de 2011 (proc. 782/11)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Justifica-se a admissão da revista, à luz da aludida orientação jurisprudencial, quando está em causa controvérsia reportada ao novo regime consagrado no CCP [arts. 183º e 184º, nº 2, al. e)] no que toca à exclusão de candidaturas em sede de concurso limitado por prévia qualificação, por falta de apresentação (ou apresentação incorrecta passível de rectificação) dos documentos exigidos no programa do procedimento, à luz da regulamentação da submissão das candidaturas através de plataformas electrónicas de contratação pública.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


( Relatório )
AGÊNCIA NACIONAL DE COMPRAS PÚBLICAS, EPE interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo, sob invocação do art. 150º do CPTA, recurso de revista do acórdão do TCA Sul, de 30.06.2011 (fls. 422 e segs.), que revogou sentença do TAC de Lisboa pela qual fora julgada improcedente a acção de contencioso pré-contratual contra si intentada por A..., SA, identificada nos autos, e em que era pedida a anulação da deliberação da ANCP de 25.10.2010 que a excluiu do "concurso público limitado por prévia qualificação para a celebração de acordo quadro para o fornecimento de veículos automóveis e motociclos de aluguer operacional", bem como a condenação da Ré à adopção dos actos e operações necessárias à reconstituição da situação que existiria se o acto impugnado não tivesse sido praticado.
O acórdão recorrido, após anular a dita deliberação, decidiu ainda "anular o procedimento subsequente, condenando a ANCP, EPE a admitir a candidatura da A..., SA, aprovar novo relatório final em que aquela também seja qualificada, e a dirigir aos candidatos assim admitidos, entre os quais a recorrente [A..., SA], novos convites à apresentação de propostas".
Alega, em abono da admissibilidade da revista, e em síntese, que as questões que justificam reapreciação por este Supremo Tribunal, reportadas à interpretação e aplicação do novo regime de exclusão de candidaturas no âmbito do relatório preliminar da fase de qualificação, previsto no art. 184º, nº 2, al. e) do CCP, em confronto com as disposições injuntivas de proibição de suprimento de omissões determinantes de exclusão, previstas no art. 183º, nº 2 do mesmo Código, são questões de importância fundamental, quer pela sua complexidade jurídica, quer pela sua relevância social, com potencialidade de expansão a outros casos similares.


( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
Na situação em análise, tendo em conta os pressupostos de admissão do recurso previstos no art. 150º, nº 1 do CPTA, e à luz da orientação jurisprudencial atrás enunciada, entendemos que se justifica a admissão da revista, por as questões suscitadas serem de importância fundamental, do ponto de vista da sua complexidade e relevância jurídica, justificando, em nosso entender, a intervenção do STA.
A decisão da 1ª instância considerou, em síntese, que as candidaturas teriam, segundo o PC, de ser apresentadas obrigatoriamente até às 17 horas do dia 31.08.2010, e de ser instruídas, sob pena de exclusão, com os documentos indicados no art. 10º do Programa do Concurso (entre os quais a declaração de IES relativa ao ano de 2008), exclusão que o júri teria obrigatoriamente que propor ao órgão competente para a decisão de contratar no relatório preliminar da fase de qualificação.
Considerou, assim, que a situação dos autos se subsume inteiramente à previsão normativa do art. 184º, nº 2, al. e) do CCP, pelo que a exclusão da proposta em causa, por falta de apresentação atempada da referida declaração de IES relativa ao ano de 2008, era a única decisão legalmente correcta, chamando, aliás, a atenção para que o disposto no nº 1 do art. 183º (onde se prevê que o júri pode pedir esclarecimentos aos candidatos sobre os documentos) pressupõe a sua efectiva apresentação, não visando a norma desencadear a apresentação de um documento em falta.
O acórdão recorrido adoptou posição contrária, considerando que "a junção da declaração de IES do ano de 2008 já para além do prazo limite para a entrega das candidaturas não pode configurar a violação por parte da candidata do disposto nos artigos 10º, nº 1 e 13º, nº 1 do Programa do Concurso, posto que se tratou da rectificação de manifesto erro material no carregamento do documento na plataforma do concurso, rectificação essa expressamente admitida pelo artigo 249º do Cód. Civil", e que o lapso no carregamento do documento na plataforma electrónica do concurso não equivale a omissão de junção do documento, pelo que "o documento «declaração de IES referente ao ano de 2008» não se encontrava em falta: a candidatura quis enviá-lo mas, por lapso alheio à sua vontade, foi carregada e enviada uma declaração de IES referente ao ano de 2009".
Entendeu, pois, que a deliberação impugnada violou o disposto na al. e) do nº 2 do art. 184º do CCP, tendo anulado esta deliberação e todo o procedimento subsequente à mesma.
A recorrente sinaliza, na sua alegação, duas questões fundamentais que pretende ver reapreciadas por este STA:
a) interpretação e aplicação do novo regime previsto no art. 184º, nº 2, al. e) do CCP (atinente ao dever de exclusão das candidaturas no âmbito do relatório preliminar da fase de qualificação), e as consequências que do mesmo decorrem para os candidatos que não apresentem todos os documentos da candidatura exigidos nas peças do programa do procedimento, conjugado com a nova regulamentação instituída pela Portaria nº 701-G/2008, de 29 de Julho, designadamente no que concerne ao disposto nos seus arts. 10º, 18º, 19º e segs., relativos ao modo de carregamento e submissão das candidaturas através de plataformas electrónicas de contratação pública;
b) saber se, em face das disposições injuntivas constantes dos arts. 183º, nº 2, 2ª parte (proibição de suprir omissões que determinam a exclusão nos termos do art. 184º, nº 2, al. e), ambos do CCP, pode o Júri do Concurso aceitar a apresentação de novos documentos de qualificação quando já se encontra ultrapassado o prazo fixado nas peças do procedimento para a apresentação das respectivas candidaturas.
As questões suscitadas são de importância fundamental, do ponto de vista da sua complexidade e relevância jurídica, justificando, em nosso entender, a intervenção clarificadora do STA.
Está em causa controvérsia reportada ao novo regime consagrado no CCP (que rompeu com o anterior regime de contratação pública constante do DL nº 197/99, de 8 de Junho), no que toca à exclusão de candidaturas em sede de concurso limitado por prévia qualificação, por falta de apresentação (ou apresentação incorrecta passível de rectificação) dos documentos exigidos no programa do procedimento, à luz da regulamentação da submissão das candidaturas através de plataformas electrónicas de contratação pública.
As instâncias decidiram de modo diverso, com fundamentação que poderá ter-se como juridicamente plausível, sendo certo que as questões suscitadas não foram ainda objecto de específica apreciação por parte deste STA, não se encontrando jurisprudência concretamente incidente sobre tal matéria.
A intervenção deste Supremo Tribunal, em sede de revista, terá assim o condão de elaborar uma adequada exegese dos normativos referidos, dentro do actual regime de contratação pública proclamado no CCP, em matéria que assume inegável relevância jurídica e social.


( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Outubro de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.