Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de Outubro de 2011 (proc. 752/11)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Não se justifica a admissão da revista numa situação em que a recorrente pretende ver reapreciada decisão que considerou que a junção de um documento de certificação de qualidade exigido pelo Programa do Concurso, e que deveria instruir a proposta, numa versão anterior à que era exigida e que o candidato também possuía, configura mero lapso material na junção de um documento, cuja rectificação é permitida por lei (art. 249º do CCivil), não consubstanciando um esclarecimento sobre a proposta (art. 72º, nº 2 do CCP), nem violação do princípio da intangibilidade das propostas ou de qualquer outro princípio concursal.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


( Relatório )
A..., SA, com os sinais dos autos, interpôs para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do art. 150º, nº 1 do CPTA, recurso de revista do acórdão do TCA Sul, de 01.06.2011 (fls. 356 e segs.), que confirmou sentença do TAF de Sintra pela qual foi julgada improcedente a acção administrativa de contencioso pré-contratual por si intentada contra o CENTRO HOSPITALAR DE ENTRE DOURO E VOUGA, com sede em Sta Maria da Feira, na qual era pedida a anulação da deliberação do acto de adjudicação à B..., SA, da prestação de serviços para fornecimento de alimentação, objecto do concurso público nº 7002/2010, e a condenação do Réu a abster-se de celebrar o respectivo contrato, a excluir a proposta da B... e a adjudicar à ora recorrente os serviços objecto do concurso.
Alega, em abono da admissibilidade da revista, e em síntese, que a questão colocada - saber se, não tendo sido junto com a proposta um documento de certificação de qualidade exigido pelo Programa do Concurso, mas do qual o concorrente já era titular à data de apresentação da proposta, tendo, por lapso, sido junto um documento de certificação de uma versão anterior da mesma entidade certificadora, pode o mesmo ser junto após o termo do prazo de entrega das propostas, concretamente em sede de audiência prévia, sem que isso configure violação do princípio da intangibilidade das propostas, face ao disposto nos arts. 70º, nº 2, al. b) e 72º, nº 2 do CCP - é uma questão controvertida, susceptível de se repetir em casos futuros, sendo pois manifestamente útil a intervenção do STA pela sua importância fundamental e também para uma melhor aplicação do direito face à existência de decisões judiciais em sentidos opostos.


( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Noutros termos, particularmente impressivos, tem-se entendido que a relevância jurídica ou social "afere-se em termos da utilidade jurídica, com capacidade de expansão da controvérsia que ultrapasse os limites da situação singular" (Acs. de 26.06.2008 e de 02.07.2008 - Procs. nºs 515/08 e 173/2008, respectivamente).
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.
No caso sub judice, e à luz da orientação jurisprudencial enunciada, entendemos que não se verificam os pressupostos de admissão da revista.
O acórdão recorrido, confirmando integralmente a decisão da 1ª instância, considerou que o documento de certificação de qualidade exigido pelo PC, e que deveria instruir a proposta (certificação pela NP EN ISO 9001:2008) não foi junto pela contra-interessada B..., que era dele detentora à data de apresentação da proposta, tendo sido junto, por lapso evidente, a versão anterior desse documento, passado pela mesma entidade certificadora (certificação pela NP EN ISO 9001:2000).
Conclui o acórdão que se tratou de mero lapso material na junção de um documento, cuja rectificação é permitida por lei (art. 249º do CCivil), não consubstanciando a situação concreta um esclarecimento sobre a proposta (art. 72º, nº 2 do CCP), pelo que "o sucedido no procedimento concursal não configura alteração da proposta do concorrente B..., não bulindo com o princípio da intangibilidade das propostas ou qualquer outro princípio concursal".
O acórdão convoca, em abono de tal entendimento, jurisprudência deste STA consonante com o decidido, proferida já em aplicação do CCP.
Discordando da decisão, alega a recorrente que a questão é de importância fundamental e que sobre essa matéria foram já proferidas decisões divergentes por parte do TCA Sul, pelo que se lhe afigura útil a intervenção do STA face à existência de decisões judiciais em sentidos opostos.
Não se antevê na apreciação da questão em causa aquele grau de complexidade jurídica excepcional exigido pelo art. 150º do CPTA, não se afigurando que a mesma, já decidida uniformemente em duas instâncias judiciais, envolva ou convoque especiais indagações jurídicas ou complexos labores exegéticos na aplicação do direito.
E não será a eventual existência de decisões divergentes do TCA que tem potencialidade para desencadear a admissão do recurso de revista previsto no art. 150º do CPTA, até porque o Código possui um recurso próprio para uniformizar jurisprudência (art. 152º).


( Decisão )
Com os fundamentos expostos, por não se verificarem os pressupostos exigidos pelo art. 150º nº 1 do CPTA, acordam em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 6 de Outubro de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.