Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 5 de janeiro de 2012 (proc. 760/11)

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Sumário:

Atenta a sua relevância jurídica é de admitir a revista quando as questões a dirimir envolvam a realização de operações lógicas e jurídicas particularmente complexas e sejam susceptíveis de se colocarem noutros casos.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:

I - RELATÓRIO
1.1.A A......, S.A.,. e o Hospital de Santo André, E.P.E. vieram interpor recurso de revista, ao abrigo do n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do TCA Sul, de 16-06-2011, que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pela A......, S.A., revogou a decisão do TAF de Leiria, de 31-03-2011, anulando a deliberação do CA do Hospital de Santo André, EP, de 1-2-10, "afastando, no entanto, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 283º do CCP, o efeito anulatório do contrato de concessão celebrado em 10 de Setembro de 2010" - cfr. fls. 705/706
1.1.1 No tocante à admissão da sua revista, a Recorrente, A......, S.A., refere, nas conclusões das suas alegações, nomeadamente, o seguinte:
"1. A questão decidendi no presente recurso qual seja o afastamento anulatório do contrato procedido de acto ou actos anulados judicialmente - cfr nº 4 do artº 283º do Código dos Contratos Públicos (CCP), reúne os requisitos legais de relevância jurídica e social e, bem assim, da necessidade de clarificação da interpretação da lei in casu do nº 4 do artigo 283º do Código dos Contratos Públicos, na medida em que tem notas de repetibilidade, extravasando o caso dos autos, uma vez que a questão em causa irá ser recorrente na justiça administrativa.
...)
3. Na referida jurisprudência desse Venerando Tribunal é igualmente relevada a circunstância da pronúncia do Tribunal " a quo" não ter assentado em juízos de facto - cfr Acórdão de 01.07.2010, Procº 0529/10 (...)
4. A decisão tomada pelo Tribunal "a quo", no sentido de manter o afastamento anulatório do contrato de concessão com os sinais dos autos, assentou apenas em juízos de valor jurídico e não em quaisquer factos relativos aos pressupostos do referido afastamento, factos que, de resto, não existem na Fundamentação de Facto que constitui a parte II do Acórdão recorrido, de fls 7 a 14.
5. Nesta conformidade, pelas características de repetibilidade (i.e. de mais do que provável recorrência de casos similares que venham a ser apreciados na justiça administrativa) e de elevada complexidade jurídica, a questão objecto do presente recurso reúne os pressupostos previstos no artigo 150º do CPTA, de relevância jurídica (para todos os operadores jurídicos e judiciários) e social (nomeadamente para os agentes económicos que operam no mercado de obras públicas) de importância fundamental e, bem assim, de necessidade para uma melhor aplicação do direito, factores que fundamentam, sem margem para dúvidas, a admissão do presente recurso.
(...)" - cfr. fls. 838-839.
1.1.2 Por sua vez, o Recorrente Hospital de Santo André, E.P.E., refere nas conclusões das alegações da sua revista, designadamente, o seguinte:
" - A aplicação do regime emergente do Código dos Contratos Públicos e em concreto as questões da delimitação do conceito do modelo de avaliação, da comparabilidade das propostas e da intangibilidade da proposta, compreendidas nos seus preceitos, designadamente dos seus artigos 50º, 56º, 60º, 132º/1 n) e 139º/4, que o presente recurso tem por objecto, traz à Justiça problemas acrescidos face à complexidade dos conceitos, à dificuldade dos textos e mesmo ao seu sentido, sendo fundamental para uma melhor aplicação do Direito a construção de Jurisprudência aprofundada quanto a estas matérias, que confira segurança ao comércio jurídico e à actividade administrativa.
- As questões em apreço têm relevância séria no domínio das contas públicas e da Economia do País, o que evidencia a importância da ordenação por forma clara, destas matérias.
- Sobre estas mesmas questões suscitadas no recurso - e que para o efeito aqui se têm por reproduzidas -, o contributo da Doutrina não se revela ainda de modo algum exaustivo, e a Jurisprudência é muito escassa e não homogénea, nos termos que se invocam no corpo destas alegações e que aqui se têm suscitados, não se tendo por aprofundada a interpretação das normas em apreço, designadamente à luz dos princípios gerais da contratação pública que as enformam, decorrentes do artº 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e dos artºs 3º e segs. Do Código do Procedimento Administrativo.
- Impõe-se, assim, a apreciação dos conflitos emergentes da aplicação das normas em apreço pelo Supremo Tribunal Administrativo, com vista à criação de Jurisprudência que conduza a uma maior segurança jurídica, quer pela inquestionável relevância jurídica dos problemas que suscita, quer por a clarificação do sentido da interpretação das normas desta natureza revestir fundamental importância no quadro da regulação da vida em sociedade e da justa e homogénea aplicação do Direito.
- Neste sentido, aliás, já se pronunciou esse Supremo Tribunal, designadamente no procedimento cautelar apenso a estes Autos, no Douto Acórdão de 26-Out.-2010 pela Formação de Apreciação Preliminar a que alude o artº 150º/5 do CPTA, conforme no corpo destas alegações melhor se identifica.
- Pelo que, neste quadro, o presente Recurso de Revista Excepcional deve ser admitido, julgando-se verificados os pressupostos para o efeito consignados no artº 150º/1 do C.P.T.A..
(...)" - cfr. fls. 889-890.
1.3.Relativamente ao recurso de revista interposto pela Recorrente A......, S.A., o também Recorrido Hospital de Santo André, E.P.E., pronunciando-se pela não admissibilidade do recurso de revista, salienta, designadamente, nas conclusões das suas contra-alegações, o seguinte:
"(...)
- Estamos no domínio de aplicação de uma norma, que comete ao julgador uma ampla discricionariedade de aplicação, cabendo a este produzir um juízo de ponderação dos interesses em presença, para optar quanto ao afastamento do efeito anulatório do contrato.
- A aliás Douta Decisão recorrida, quanto à matéria em apreço, não extravasa o âmbito de discricionariedade que o legislador comete ao julgador e em bom rigor, a recorrente não imputa - nem se descortina tal imputação - à Decisão recorrida neste aspecto, a violação de uma regra de Direito, designadamente um princípio Constitucional ou de Direito Administrativo. Limita-se a imputar-lhe a violação do preceito em análise, num quadro que se circunscreve à descrita discricionariedade.
- (Não) cabe, por conseguinte, Revista Excepcional de tal Decisão, uma vez que o juízo de ponderação em análise encerra uma margem de discricionariedade insindicável e, essencialmente, porque esta apreciação tem em conta uma determinada realidade material - acima aludida - sobre a qual incide tal juízo, sendo que a sua crítica é insusceptível de generalização, isto é, a aplicação do Direito neste quadro algo subjectivo de subsunção, a uma generalidade de casos.
(...)
- Face ao que, vem sendo considerado por esse Supremo Tribunal não ser admissível Revista Excepcional quando o acto jurisdicional a sindicar encerra um juízo de ponderação sobre uma realidade material, ou a questão a debater não tem características de generalização, com vista à melhoria da interpretação e aplicação do Direito fora do âmbito intra-processual.
- No recurso em apreço, verificam-se ambas as referidas hipóteses.
(...)" - cfr. fls. 1029-1030
1.3.1. Já quanto ao recurso de revista interposto pelo Recorrente Hospital de Santo André, E.P.E., a também Recorrida A......, S.A., pronunciando-se pela não admissibilidade do recurso de revista, salienta, designadamente, nas conclusões das suas contra-alegações, o seguinte:
"1. O presente Recurso de Revista Excepcional não deve ser admitido, porquanto as questões dele objecto não reúnem os pressupostos legitimadores deste tipo de recurso, previstos no artigo 150º do CPTA. Em verdade,
2. A decisão do Acórdão recorrido quanto à violação da alínea n) do nº 2 do artigo 132º do CCP, é uma questão de extrema simplicidade jurídica em que o Tribunal " a quo", com base na matéria de facto dada como provada (o teor do artigo 5º do PC, transcrito em iv da Matéria de Facto) apenas se limitou a constatar, numa mera operação de aplicação de tal norma aos factos, que o PC não apresentou o Modelo de Avaliação das Proposta de modo completo, como impõe aquela norma, faltando no PC, as escalas de pontuação parciais dos factores e subfactores que integram tal modelo de avaliação e, relativamente a cada um dos factores ou subfactores elementares, a respectiva escala de pontuação, bem como a expressão matemática ou o conjunto ordenado de diferentes atributos susceptíveis de serem propostos que permita a atribuição das pontuações parciais.
(...)
4. Por conseguinte, estamos aqui perante uma simples operação jurídica de aplicação da lei aos factos provados, sem qualquer dificuldade jurídica ou nota de repetibilidade (relativamente a futuros casos recorrentes) que justifique a admissão do presente Recurso Excepcional de Revista, uma vez que a mesma não apresenta relevância jurídica ou social que se revista de importância fundamental, nem, em relação a ela se divisa que a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
5. Quanto à violação do nº 4, do artigo 139º do CCP, é matéria sobre a qual existem vários Arestos, todos eles de doutrina uniforme (...),
6. (...) no sentido de considerar proibidas, nos termos da norma em apreço do CCP, as fórmulas matemáticas que, utilizem "quaisquer dados que dependam, directa ou indirectamente, dos atributos das propostas a apresentar, com excepção dos da proposta a avaliar".
7. Assim sendo esta questão deixou de ter, por resolvida recente e recorrentemente de modo uniforme, qualquer relevância jurídica ou social de importância fundamental deixando, igualmente, de carecer, por desnecessidade, de uma melhor aplicação do direito.
8. Finalmente a questão da alegada nulidade do Acórdão recorrido por excesso de pronúncia, não é de relevância social ou jurídica de importância fundamental nem ela necessita de qualquer clarificação jurídica para a tornar extensível a outros casos futuros (...)
(...)
11. Por todas estas razões, as questões que o Recorrente enuncia nas suas Alegações sob resposta, não reúnem os pressupostos do artigo 150º do CPTA, pelo que, em conformidade, não deve ser admitido o presente Recurso de Revista Excepcional.
(...)" - cfr. fls. 930-932.
1.4 Entretanto, tendo sido ordenada a baixa dos autos ao tribunal recorrido para apreciação da arguida nulidade por excesso de pronúncia, o TCA, reconhecendo ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, atendeu a dita arguição de nulidade, considerando "como não escrito o último parágrafo de fls. 19 (último parágrafo de fls. 700 dos autos) e fls. 20, 21 e 22 (fls. 701 a 703 dos autos), do acórdão em crise" - cfr. fls. 1045.
1.4..1 Veio, então, o Recorrente "Hospital de Santo André" declarar "que mantém o recurso que apresentou, o qual nos termos do sobredito nº 3 (...)", do artigo 670º do CPC, "(...) passará a ter como objecto o aliás Douto Acórdão recorrido, agora alterado com a declarada nulidade" - cfr. fls. 1052.
1.4.2 Por sua vez, a também Recorrente "A...... SA" veio dar notícia que mantinha quer o recurso de revista por si interposto do já referido Ac. do TCA, alterado nos moldes já atrás transcritos quer as contra-alegações que apresentou, defendendo, ainda, que o recurso interposto pelo "Hospital de Santo André", deveria ser tido como subordinado, nos termos e para os efeitos do artigo 682º do CPC (cfr. 1065), sendo que, contudo, este última posição não viria a merecer a concordância do dito Recorrente "Hospital de Santo André", por este considerar tratar-se de um recurso independente (cfr. fls. 1071/1072).
1.5. Cumpre decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O recurso de revista a que alude o n.º 1, do artigo 150.º do CPTA, que se consubstancia na consagração de um duplo grau de recurso jurisdicional, ainda que apenas em casos excepcionais, tem por objectivo facilitar a intervenção do STA naquelas situações em que a questão a apreciar assim o imponha, devido à sua relevância jurídica ou social e quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, se atendermos à forma como o Legislador delineou o recurso de revista, em especial, se olharmos aos pressupostos que condicionam a sua admissibilidade, temos de concluir que o mesmo é de natureza excepcional, não correspondendo à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, na medida em que das decisões proferidas pelos TCA's em sede de recurso não cabe, em regra, recurso de revista para o STA.
Temos assim, que de acordo com o já exposto, a intervenção do STA só se justificará em matérias de maior importância sob pena de se generalizar este recurso de revista o que, se acontecesse, não deixaria de se mostrar desconforme com os fins obtidos em vista pelo Legislador (cfr., a "Exposição de Motivos", do CPTA).
Vejamos, então.
2.2. Na sua decisão, de 31-03-2011 o TAF de Leiria, julgou improcedente a acção de contencioso pré-contratual, interposta pela Recorrente A......, S.A., por ter entendido, que os actos impugnados "(...) não enfermam dos vícios da transparência, da igualdade e da concorrência", bem como, "não enfermam dos vícios" que a Recorrente lhes imputa, nomeadamente, quanto ao vício de violação da lei, por erro nos pressupostos de facto, e também quanto à violação da alínea n) do nº 1 do artigo 132.º do CCP e à violação do nº 4 do artigo 139.º do mesmo Diploma legal. (cfr. fls. 571)
O TCA Sul, por sua vez, concluiu que os "(...)vícios assacados ao acto impugnado procedem e todos eles determinam a anulação dos actos do procedimento(...)"
Ressalvou, também, que "(...) não obstante a gravidade dos vícios que inquinaram o acto pré-contratual, geradores da respectiva anulabilidade, entendemos que a anulação do contrato entretanto celebrado, neste momento, decorrido cerca de um ano sobre a respectiva celebração, seria desproporcionada em face dos interesses em presença, por susceptível de vir a perturbar a correcta ordenação do trânsito que entra e circula no hospital, pelo que, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 283º do CCP, é de afastar o efeito anulatório previsto no nº 2 do mesmo preceito". (cfr. fls. 704-705)
Ora, na situação em análise, é, efectivamente, de admitir os recursos de revista interpostos pelos Recorrentes, atenta a especial relevância jurídica das questões neles levantadas, questões essas cuja resolução demanda a realização de operações lógico-jurídicas algo complexas, como é o caso, por exemplo, do uso do mecanismo contido no nº 4, do artigo 283º do CCP, importando definir os parâmetros em que o mesmo pode ser utilizado, o que passa, designadamente, pela fixação do preciso conteúdo e alcance do questionado preceito legal, impondo-se proceder à sua densificação conceptual. Por outro lado, de igual relevância jurídica se revestem algumas das questões suscitadas no recurso de revista interposto pelo Recorrente "Hospital de Santo André", nomeadamente quanto à aplicação do regime emergente do Código dos Contratos Públicos e em concreto as questões de delimitação do conceito do modelo de avaliação, da comparabilidade das propostas e da intangibilidade da proposta.
É, assim, de concluir que, no caso em apreço, se mostram preenchidos os pressupostos a que alude o nº 1, artigo 150º do CPTA.


3 - DECISÃO
Nestes termos, acordam em admitir os recursos de revista interpostos pela Recorrente A......, S.A. e pelo Recorrente Hospital de Santo André, E.P.E., do Ac. TCA Sul, de 16-06-2011, alterado nos termos do Ac. de 6-10-11, a fls. 1044-1045, devendo proceder-se à pertinente distribuição dos autos.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2012. - José Manuel da Silva Santos Botelho (relator) - Rosendo Dias José - Luís Pais Borges.