Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26 de Outubro de 2010 (proc. 800/10)

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Sumário:

A interpretação do n.º 4 do art.º 139.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) ainda quando contida em providencia urgente nos termos do art.º 132.º do CPTA, é questão de relevância jurídica fundamental que, é de prever, irá colocar-se sucessivamente à decisão administrativa e contenciosa, pelo que se considera de admitir sobre ela recurso excepcional de revista.

 

Texto Integral:

Formação de Apreciação Preliminar
Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do STA:

I - Relatório:
A... interpôs no TAF de Leiria contra o
HOSPITAL DE SANTO ANDRÉ, E.P.E.
Providência em que pede a suspensão do procedimento de formação de contrato (nos termos do art.º 132.º do CPTA, sem pedido expresso de correcção) no concurso público n.º 0005A09, tendo como objectivo a concessão de exploração dos parques de estacionamento do Hospital, cujo Anúncio foi publicado do DR, Série II, n.º 188, de 28/09/2009.
O pedido cautelar foi julgado improcedente por sentença de 16/04/2010, que considerou não estarem reunidos no caso concreto os pressupostos bastantes para o efeito.
Inconformada, a A... interpôs recurso para o TCA Sul que, por Acórdão de 16/08/2010 negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida, embora com diferentes fundamentos.
É deste Acórdão que a A..., nos termos do art. 150º n.º 1 do CPTA, pede a admissão de recurso excepcional de revista, alegando para o efeito:
A avaliação das propostas foi efectuada em violação da lei, por comparação de características de umas propostas com outras, como tem de reconhecer-se a partir da matéria de facto dada como provada quanto ao conteúdo da ACTA N.º 1, da qual consta:
"10 - No que respeita ao subfactor Rentabilização dos parques (RP) na respectiva fórmula matemática de avaliação parcial, o termo RPA corresponde à diferença do número total de lugares de estacionamento verificada entre a proposta em análise e o da proposta que apresenta menor número total de lugares, conforme os respectivos estudos prévios e o termo RPE corresponde à máxima diferença do número total de lugares de estacionamento verificada entre as várias propostas em análise conforme os respectivos estudos prévios".
Na posição defendida pela recorrente o Tribunal "a quo", desconsiderou este elemento objectivo e, por erro grosseiro de interpretação do n.º 4 do artigo 139º do CCP, entendeu que «os valores de referência são previstos abstractamente, traduzindo uma expressão quantitativa que constará nas propostas de todos os concorrentes, passível de comparabilidade aritmética, mas sem que contenham qualquer referência directa ou indirecta, em concreto, a qualquer atributo de qualquer proposta apresentada pelos recorrentes».
A empresa recorrente concluiu que estamos perante questão de relevância jurídica fundamental, a propósito da qual o STA não teve ainda oportunidade de se pronunciar, e cujo interesse ultrapassa os limites do presente caso concreto, devendo por isso ser admitida a revista, preenchidos que estão os pressupostos legais exigidos pelo artigo 150º n.º 1 do CPTA para tal efeito.
O HOSPITAL DE SANTO ANDRÉ, E.P.E. contra-alegou pugnando pela inutilidade de admissão do presente recurso, bem como pela manutenção da decisão recorrida.
Nos termos do n.º 5 do artigo 150º do CPTA, compete a esta formação apreciar se no presente caso estão reunidos os pressupostos de que depende a admissibilidade deste recurso excepcional.


II - Apreciação:
1. O recurso de revista de decisões proferidas pelos TCA em segunda instância, terceira apreciação jurisdicional de uma causa administrativa é, em geral, rejeitado pela lei de processo (CPTA), embora seja permitido, a título excepcional, que o STA admita esta terceira apreciação da causa num recurso relativo a matéria de direito, exclusivamente naqueles casos em que estejam reunidos certos pressupostos que a lei (art.º 150.º n.º 1 do CPTA) aponta como índices de que a causa tem uma relevância superior ao comum. Tais pressupostos respeitam à natureza das questões sobre as quais versa o litígio, que devem atingir um grau de importância fundamental, de uma perspectiva jurídica ou social, ou mostrar-se claramente necessária a intervenção do STA para uma melhor aplicação do direito.
Assim, é mantido e aprofundado o princípio da apreciação jurisdicional das causas administrativas, como regra, apenas em duas instâncias. Na consecução deste objectivo concorrem com o disposto no art.º 150.º do CPTA, a previsão de revista "per saltum" do artigo 151.º, e a transformação do recurso para uniformização de jurisprudência num recurso do tipo acção revisiva, a ser interposto após o trânsito em julgado da decisão recorrida.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, o STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º n.º 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, de ser necessário compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como casos em que a questão se reveste de novidade, e relativamente à qual não tenha havido oportunidade de o STA se pronunciar.
Sobre a apreciação da relevância social fundamental, o STA tem entendido que este requisito se verifica, designadamente, nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão no tecido social, ou expansão do interesse orientador da intervenção do Supremo relativamente a futuros casos análogos ou do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão de revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias suscita fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema, ou seja, tendo como finalidade conseguir o bom funcionamento do contencioso administrativo.
Em matéria cautelar, este STA tem entendido ser exigível maior densidade no preenchimento dos pressupostos da revista dado o carácter temporário da decisão destinada a vigorar durante a pendência do processo principal.


2. No caso dos autos, o requerente anuncia a intenção de intentar posteriormente um processo principal, mas a verdade é que a aplicação do art.º 132.º do CPTA a processos tendentes a evitar/corrigir ilegalidades procedimentais ou com reflexos procedimentais ou apenas nas fases de procedimento anteriores à adjudicação, deve entender-se orientado prioritariamente, para deferir ao demandante - quando tal se mostre justificado, bem entendido -, as medidas correctivas que devam ter lugar para reconduzir o procedimento à legalidade, portanto um meio processual dirigido, sempre que possível, à emissão de medidas definitivas. É certo que o interessado pode pedir a suspensão do procedimento, mas apenas quando aponte um interesse específico que decora de tal suspensão. Assim como pode pedir desde logo a suspensão da adopção ou realização de actos de formação do contrato posteriores à decisão de adjudicar, mas esta é uma suspensão que se não reconduz já à pura suspensão do procedimento, porque este se encontra concluído após a decisão de adjudicar a um concorrente, sendo os actos posteriores efeito deste ou um sub-procedimento complementar ou executivo.
Os n.º 6 e 7 do art.º 132.º lançam confusão sobre o bom entendimento das medidas referidas no n.º1 do preceito, se não forem lidos como soluções para usar apenas quando o remédio da correcção dos erros e ilegalidades por força da própria execução do decidido na providenciada sejam inadequados ou precisem de ser complementados com outras medidas ou remédios que careçam de ser apreciados e decididos em processo principal autónomo. Mas, se bem pensamos, esses casos serão praticamente em número reduzido sendo, mais comummente, viável apreciar na providencia urgente se existem os erros ou ilegalidades do procedimento que são denunciados e quando se verificarem a execução da decisão emitida na providencia será para que se corrija o erro e fica desde logo assegurada a tutela dos concorrentes, bem como o retomar imediato do procedimento isento de vícios, valor eminente na matéria, que o Direito Comunitário também reconhece e evidencia, e que não pode deixar de se considerar em cada passo da interpretação do regime jurídico do contencioso pré-contratual.
O segmento da norma que visa proteger os concorrentes afectados pela ilegalidade contra o seguimento da causação de danos ou a criação de situações desfavoráveis irreversíveis, na perspectiva para que se aponta, pode na maioria das situações, limitar-se, ao tempo de pendência da providencia e daí a necessidade de esta ser urgente, bem como a indispensabilidade da intervenção do juiz logo que o meio lhe é apresentado para se debruçar sobre e decidir da necessidade de suspensão ou não do procedimento.
Sem embargo da conveniência de, durante um prazo curto, mas razoável para a reacção defensiva dos interessados, este contado da notificação da decisão de adjudicar, ou, havendo providencia pendente, até decisão judicial expressa sobre este ponto, existir um mecanismo de stop automático, quer dizer de proibição da realização do acto que pode significar o não retorno ou irreversibilidade da situação, que é a celebração do contrato.
Daí que o Direito Comunitário (cuja aplicação não foi invocada neste caso, mas que serve de referencia como a forma correcta e mais avançada de tutela dos concorrentes) tenha visado extensamente, na revisão da Directiva processual que foi operada pela Directiva 2007/66/CE do Parlamento e do Conselho, precisamente este aspecto e estabeleceu:
Por um lado, que (i) os Estados Membros devem assegurar que sejam guardados prazos entre dez e quinze dias, contados da notificação da decisão de adjudicar, de modo a permitir aos concorrentes a reacção imediata junto dos tribunais, designadamente pedindo a providencia eficaz e tão célere quanto possível, garantida pelo art.º 1.º n.º 1;
(ii) devem assegurar os correspondentes mecanismos processuais de resposta dos tribunais instados com estes pedidos, conducente a que a entidade que dirige o concurso, ou fique de modo automático impedida, ou seja intimada, por decisão do juiz, a abster-se de celebrar o contrato, de modo a que não sejam causados danos irreversíveis a quem procurou a tutela jurisdicional com observância desses prazos, necessariamente curtos (art.º 1.º n.º 1 e art.º 2-A n.º 1, 1.º §) ;
(iii) no caso de ser interposto recurso (em sentido amplo) de uma decisão de adjudicação (entendendo-se o mesmo quanto a impugnações ou pedidos de correcção de decisões anteriores se o procedimento seguiu e já houve adjudicação) para uma instancia independente, deve ser assegurado que a entidade adjudicante não pode celebrar o contrato antes de a instancia de recurso ter tomado uma decisão, quer sobre as medidas provisórias quer sobre o pedido de recurso (art.º 2.º n.º 3).


3. Este esboço muito breve importa ao caso concreto que vamos retomar de imediato, porquanto o requerente aponta para a existência de evidente interpretação ilegal do n.º 4 do art.º 139.º do CCP e, se esta posição vier a ser reconhecida, o efeito útil da providencia pode decorrer da aplicação (obrigatória para a Administração) da sentença, corrigindo-se a interpretação em conformidade com o decidido judicialmente e retomando o procedimento para nele se praticarem normalmente os actos subsequentes. Assim, embora não exista na petição um expresso pedido de correcção, ele está claramente contido na pretensão apresentada e nos respectivos fundamentos e decorre da lógica de um eventual reconhecimento da ilegalidade da interpretação da norma em causa.
Do exposto deve retirar-se para efeitos de apreciação dos pressupostos de admissão da revista que este assunto, nesta configuração, não é de tratar como providencia cautelar "tout court", mas como um remédio mais sofisticado, tanto quanto em processo nos termos do art.º 132.º do CPTA, frequentemente, não se visa acautelar os efeitos de uma decisão definitiva, mas obter uma providencia especial de correcção e evitamento de outros danos, com processamento urgente, em matéria de formação de contratos. É o que sucede no caso presente em que a decisão sobre a ilegalidade permite à requerente a correcção do procedimento e a solução do litígio sem que se tenha de lançar mão de outro meio jurisdicional, uma vez que seria redundante ficar a aguardar pela confirmação da ilegalidade que tivesse sido apreciada e declarada.
O segmento da pretensão de suspensão do procedimento, deve como se disse antes, ser objecto de decisão logo no início do processo, ou tão cedo quanto possível para valer na pendência do processo e sem prejuízo de se rever a situação de acordo com as alterações decorrentes do prosseguimento simultâneo do procedimento administrativo e do processo jurisdicional.
O exposto permite extrair, para efeitos da apreciação a efectuar no âmbito da admissão da revista, que não há razão para aplicar neste caso, como nos demais deste tipo, as exigências de especial densidade dos respectivos pressupostos.


4. O presente litígio versa sobre a interpretação a conferir ao disposto no n.º 4 do artigo 139º do Código dos Contratos Públicos, do seguinte teor:
"4 - Na elaboração do modelo de avaliação das propostas não podem ser utilizados quaisquer dados que dependam, directa ou indirectamente, dos atributos das propostas a apresentar, com excepção da proposta a avaliar".
O recorrente imputa ao Acórdão recorrido erro grosseiro na interpretação da norma.
Esta a questão a apreciar à luz dos critérios de admissão do recurso excepcional de revista vertidos no n.º 1 do artigo 150º do CPTA e explicitados sob o n.º 1 deste capítulo.
O interesse na fixação interpretativa correcta e a criação de condições de segurança dos destinatários quanto a não verem goradas as suas expectativas quanto ao direito vigente extravasa do âmbito deste processo para o campo mais vasto da elaboração e aplicação sucessiva e reiterada de modelos de avaliação de propostas por diversos órgãos administrativos, em todas as áreas.
Por outro lado, o STA apenas se pronunciou muito recentemente e num único caso, o Ac. de 19.10.2010, Proc. 562/10, sobre a interpretação desta norma, ao mesmo tempo que a decisão das instancias - num primeiro relance, já que não compete a esta formação apreciar este aspecto -, não parece compaginar-se com o entendimento que o STA adoptou.
A questão tem, portanto, relevância jurídica em grau que, para efeitos do n.º 1 do art.º 150. º do CPTA deve considerar-se fundamental e que garante a admissão da revista.


III - Decisão
Em conformidade com o exposto, nos termos do art.º 150.º n.ºs 1 e 5 do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas nesta fase.
Lisboa, 26 de Outubro de 2010. - Rosendo Dias José (relator) - Maria Angelina Domingues - Alberto Augusto Oliveira.