Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Novembro de 2011 (proc. 934/11)

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Sumário:

I - Nos termos do art. 150º, nº 1 do CPTA, das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
II - Justifica-se a admissão da revista excepcional de um acórdão do TCA em que a questão controvertida é a de saber se, no âmbito de um Procedimento de Ajuste Directo, o júri poderia, em sede de relatório final, ter alterado ou rectificado as propostas dos concorrentes, a pretexto de poder aproveitar o maior número de propostas possível, mediante a multiplicação dos preços unitários das refeições, apresentados pelos concorrentes nas respectivas propostas, por um número de dias não fixado nas peças concursais, concretamente no Caderno de Encargos, sem que isso implicasse violação do art. 70º, nº 2, al. b) do CCP, bem como dos princípios da estabilidade das propostas, da concorrência e da igualdade.

 

Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


( Relatório )
"A........., LDA", com os sinais dos autos, recorre para este Supremo Tribunal Administrativo, ao abrigo do art. 150º do CPTA, do acórdão do TCA Sul, de 31.08.2011 (fls. 322 e segs.), que confirmou sentença do TAF de Sintra pela qual foi julgada improcedente a acção de contencioso pré-contratual por si intentada contra o INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP e 4 contra-interessados, e na qual pediu a anulação do despacho do Vogal do Conselho Directivo da entidade demandada, de 04.02.2001, que, no âmbito do Procedimento de Ajuste Directo nº 2001/10/0007662, adjudicou ao consórcio composto por "B........., SA", "C........., SA" e "D........., LDA", todas identificadas nos autos, e liderado pela B........., a aquisição de serviços de fornecimento de refeições confeccionadas, ao abrigo do Acordo-Quadro nº 15-RC-Lote 3, bem como a declaração de nulidade do contrato que entretanto tenha sido ou venha a ser celebrado em execução daquele acto, e a condenação do Réu à emissão de um novo acto que exclua a proposta da B......... e proceda à adjudicação do fornecimento em causa à proposta da recorrente.
Sinaliza, para efeitos de admissibilidade da revista, e para lá de uma questão formal relativa a notificação para produção de alegações escritas, questões que entende revestirem especial relevância jurídica e social e que foram, em seu entender, erradamente decididas, pelo que considera justificada a admissão da revista também na perspectiva de uma melhor aplicação do direito.


( Fundamentação )
O art. 150º n° 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, "excepcionalmente", recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".
A jurisprudência do STA, interpretando o comando legal, tem reiteradamente sublinhado a excepcionalidade deste recurso, referindo que o mesmo só pode ser admitido nos estritos limites fixados neste preceito. Trata-se, efectivamente, não de um recurso ordinário de revista, mas antes, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s 92/VIII e 93/VIII, de uma "válvula de segurança do sistema" que apenas deve ser accionada naqueles precisos termos.
Deste modo, a intervenção do STA só se justificará em matérias de assinalável relevância e complexidade, sob pena de se generalizar este recurso de revista, o que não deixaria de se mostrar desconforme com os aludidos fins tidos em vista pelo legislador.
O Supremo Tribunal Administrativo tem interpretado a norma do art. 150º como exigindo que, em relação à questão objecto de recurso de revista, seja possível entrever, "ainda que reflexamente, a existência de interesses comunitários especialmente relevantes" (Ac. de 19.06.2008 - Proc. nº 490/08), ou ainda que a mesma se relacione com "matéria particularmente complexa do ponto de vista jurídico" (Ac. de 14.04.2010 - Rec. 209/10) ou "particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário" (Acs. de 26.06.2008 - Procs. nº 535/08 e nº 505/08), exigindo ao intérprete e ao julgador complexas operações de natureza lógica e jurídica indispensáveis à resolução das questões suscitadas.
Na concretização dos conceitos relativamente indeterminados que a lei estabelece como orientação para a filtragem dos recursos de revista a admitir excepcionalmente, a aludida jurisprudência do STA tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental exigida pelo artigo 150º nº 1 do CPTA se verifica, designadamente, quando a questão a apreciar seja de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, bem como nas situações em que esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social ou da controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, mas em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
A admissão da revista para melhor aplicação do direito terá lugar, designadamente, e segundo a referida jurisprudência, quando, em face das características do caso concreto, ele revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros, e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente infundada ou insustentável, ou quando suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios, assim fazendo antever como objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.
Na situação em análise, e à luz da orientação jurisprudencial atrás enunciada, entendemos que se justifica a admissão da revista.
De entre as questões colocadas pela recorrente na sua alegação, há uma que se afigura revestida de relevância jurídica especial, pela matéria em causa e pela complexidade das operações exegéticas de aplicação do direito, que é a de saber se, no âmbito de um Procedimento de Ajuste Directo, o júri poderia, em sede de relatório final, ter alterado ou rectificado as propostas dos concorrentes, a pretexto de poder aproveitar o maior número de propostas possível, mediante a multiplicação dos preços unitários das refeições, apresentados pelos concorrentes nas respectivas propostas, por um número de dias não fixado nas peças concursais, concretamente no Caderno de Encargos, sem que isso implicasse violação do art. 70º, nº 2, al. b) do CCP, bem como dos princípios da estabilidade, da concorrência e da igualdade.
A controvérsia surge a partir do art. 16º do CE, onde se indica que os estabelecimentos integrados no ISS aos quais serão fornecidas as refeições diárias funcionam alguns deles "todos os dias do ano" e outros "apenas nos dias úteis", tendo gerado diversas interpretações e indicações dos concorrentes quanto ao número de dias das refeições a prestar (no que toca aos dias úteis, à consideração ou não dos dias de férias dos ditos estabelecimentos, etc.), divergência naturalmente reflectida no preço global das propostas - pois que reportados a um número de dias não coincidente -, tendo o júri ficcionado um valor global de algumas propostas diverso do apresentado pelos concorrentes, assim evitando a exclusão de uma delas, multiplicando o indicado custo unitário de cada refeição pelo número de dias que resultavam do CE, e não pelo número de dias em que esses candidatos se propuseram fornecer as refeições.
O acórdão recorrido, sufragando a decisão da primeira instância, entendeu que não assistia razão à recorrente, e que a actuação do júri não violou os aludidos princípios da estabilidade, da concorrência e da igualdade, assim confirmando a improcedência da acção.
Com o que a recorrente não concorda, pedindo a intervenção do tribunal de revista.
Cremos que a questão suscitada se reveste, efectivamente, de relevância jurídica assinalável, pois que directamente conexionada com a observância de princípios fundamentais reitores do procedimento concursal, como são os apontados princípios da estabilidade e intangibilidade das propostas, da concorrência e da igualdade, tudo interligado com a interpretação dos apontados preceitos do CE, acrescendo que o acórdão recorrido, independentemente do acerto ou desacerto da pronúncia emitida, induz ele próprio alguma chama de incontida controvérsia, no seu segmento final:
"Porém, na sequência da pronúncia do consórcio contra-interessado em sede de audiência prévia, peticionando a exclusão da proposta da B........., o júri - em vez de excluir tal proposta, pois que de acordo com o disposto no artigo 70º, nº 2, alínea b) do CCP, a desconformidade da proposta da recorrente com o teor do referido artigo 16º do caderno de encargos teria como consequência a respectiva exclusão - pegou nos preços unitários propostos... e "presumiu" que afinal o valor não poderia ser o proposto mas sim o valor da multiplicação do custo unitário de cada refeição pelo número de refeições a fornecer durante o número de dias que constavam do artigo 16º do caderno de encargos, aproveitando deste modo uma proposta que não preenchia os requisitos mínimos para ser admitida.
Porém, o facto de ter procedido dessa forma - relembre-se que só o fez para poder aproveitar a proposta da B......... - não escamoteia a questão essencial: de acordo com o disposto no artigo 72º, nº 2, alínea b) do CCP, essa proposta teria forçosamente de ser excluída.
(...) Com efeito, dificilmente se poderia vislumbrar na conduta do júri do concurso a violação dos princípios da concorrência e da igualdade, posto que foi precisamente para assegurar a concorrência e a igualdade que a proposta da B......... foi "salva" quando deveria ter sido liminarmente excluída."
(sublinhados nossos)
Afigura-se, pelo exposto, que a intervenção do STA se justifica, dada a relevância jurídica da questão colocada, e a possibilidade de expansão da controvérsia, passível de se repetir em futuros procedimentos concursais, e também na perspectiva de uma clarificação e boa aplicação do direito.


( Decisão )
Com os fundamentos expostos, por se entenderem verificados os pressupostos exigidos pelo art. 150º nº 1 do CPTA, acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Novembro de 2011. - Luís Pais Borges (relator) - Rosendo Dias José - José Manuel da Silva Santos Botelho.

Segue Acórdão de 12 de Janeiro de 2012

Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
As recorridas "B........., SA", "C.........., SA" e "D.........., LDA", notificadas do acórdão de fls. 468 e segs., que admitiu o recurso de revista intentado por "A.........., LDA", requereram, ao abrigo do disposto no art. 667º, nº 2 do CPCivil, a rectificação de um erro de escrita alegadamente contido no acórdão recorrido (onde o TCA refere "peticionando a exclusão da proposta da B.........." quis efectivamente dizer "peticionando a exclusão da proposta da "A..........").
Invoca que tal lapso é por demais evidente, como se depreende dos factos assentes e do contexto em que tal expressão está contida, mas entende que tal lapso "é susceptível de influir na decisão da presente revista", pelo que pede a respectiva rectificação, ainda que esta "seja intempestiva".
O lapso invocado, que se afigura evidente, é reportado ao acórdão recorrido, do qual foi interposto recurso de revista, admitida pelo acórdão de fls. 468.
Não foi requerida a sua rectificação ao tribunal recorrido, nem a mesma foi por este oficiosamente efectuada nos termos do art. 667º citado.
É seguro que, em sede de recurso jurisdicional, e de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores citada pelas requerentes, podem ser rectificados os erros materiais consubstanciados em "lapso manifesto" suscitados perante o tribunal de recurso, e que, mesmo sendo intempestiva a rectificação, a decisão recorrida deve ser lida com a correcção correspondente.
Mas essa tarefa pertence ao tribunal de recurso, que procede ao julgamento deste, naturalmente após a sua admissão.
Ora, o acórdão de fls. 468 e segs. foi proferido pela formação prevista no nº 5 do art. 150º do CPTA, cujo poder jurisdicional se esgota na apreciação preliminar de verificação dos pressupostos de admissão da revista, sendo a apreciação e decisão do recurso, caso este seja admitido, feita, em conferência, pela Secção do STA.
Nenhuma intervenção pode, a tal respeito, ser tomada por esta formação, podendo a mesma vir a ser considerada apenas no âmbito do acórdão que julgará o recurso.
Termos em que se indefere o requerido, nesta fase.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2012. - Luís Pais Borges (relator) - José Manuel da Silva Santos Botelho - Alberto Acácio de Sá Costa Reis.