Conclusões do Advogado-Geral no processo C-451/08 (17 de Novembro de 2009)

Imprimir

CONCLUSÕES DO ADVOGADO‑GERAL
PAOLO MENGOZZI
apresentadas em 17 de Novembro de 2009 1(1)

Processo C‑451/08

Helmut Müller GmbH
contra
Bundesanstalt für Immobilienaufgaben

(pedido de decisão prejudicial submetido pelo Oberlandesgericht Düsseldorf, Alemanha)

 

«Contratos de empreitada de obras públicas - Concessões de obras públicas - Venda de um terreno por uma administração pública - Obras a realizar posteriormente»

 

 1. O presente processo, que tem origem numa série de questões prejudiciais suscitadas pelo Oberlandesgericht Düsseldorf, permite ao Tribunal de Justiça debruçar‑se uma vez mais sobre a questão da distinção entre contratos de empreitada de obras públicas e as actividades de regulamentação urbanística exercidas pelos poderes públicos.

2. Mais concretamente, o elemento nuclear do processo sobre o qual o órgão jurisdicional de reenvio é chamado a pronunciar‑se é a venda de um terreno a um particular, por uma administração pública. Esta hipótese pode levar a reflectir especificamente sobre a existência de um possível auxílio estatal (2). No presente processo, porém, não parece existir esse tipo de preocupações. A especificidade da situação reside no facto de a administração pública ter decidido alienar o terreno ao proponente que demonstrou ter, em relação a esse terreno, os projectos de uso e de construção que as autoridades municipais competentes no domínio do ordenamento urbanístico do território consideraram mais interessantes e meritórios. O órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se sobre se, nesse contexto, são aplicáveis as disposições que regem os contratos públicos e, mais especificamente, as concessões de obras públicas.

I - Quadro jurídico

3. As disposições sobre as quais o Tribunal de Justiça é chamado a pronunciar‑se estão contidas na Directiva 2004/18/CE (3) (a seguir «directiva»).

4. O artigo 1.° da directiva dispõe:

«1. Para efeitos do disposto na presente directiva, aplicam‑se as definições dos n.os 2 a 15.

2. a) ‘Contratos públicos' são contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objecto a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na acepção da presente directiva.

b) ‘Contratos de empreitada de obras públicas' são contratos públicos que têm por objecto quer a execução, quer conjuntamente a concepção e a execução, quer ainda a realização, por qualquer meio, de trabalhos relacionados com uma das actividades na acepção do anexo I ou de uma obra que satisfaça as necessidades especificadas pela entidade adjudicante. Por ‘obra' entende‑se o resultado de um conjunto de trabalhos de construção ou de engenharia civil destinado a desempenhar, por si só, uma função económica ou técnica.

[...]

3. ‘Concessão de obras públicas' é um contrato com as mesmas características que um contrato de empreitada de obras públicas, com excepção de que a contrapartida das obras a efectuar consiste quer unicamente no direito de exploração da obra, quer nesse direito acompanhado de um pagamento».

II - Matéria de facto, processo principal e questões prejudiciais

5. Em Outubro de 2006, a Bundesanstalt für Immobilienaufgaben (organismo federal que administra o património imobiliário público, a seguir «Bundesanstalt») tornou pública, através de anúncios na imprensa e na Internet, a sua intenção de vender um terreno com cerca de 24 hectares, no município de Wildeshausen. O terreno era ocupado por um quartel, desactivado nos primeiros meses de 2007.

6. O anúncio publicado pela Bundesanstalt precisava que os usos admitidos para o terreno seriam os acordados com o município de Wildeshausen.

7. Em Maio de 2007, uma avaliação encomendada pela Bundesanstalt calculou o valor do terreno em 2,33 milhões de euros.

8. A sociedade Helmut Müller GmbH (a seguir «Helmut Müller») já em Novembro de 2006 tinha apresentado uma proposta de compra do terreno por 4 milhões de euros, sob condição, porém, de o planeamento da construção para essa zona ser conforme com os seus projectos. Essa proposta não teve seguimento.

9. Em Janeiro de 2007, a Bundesanstalt pediu aos possíveis interessados que apresentassem propostas de compra do terreno, sem um planeamento da construção pré‑determinado. Nesse contexto, a Helmut Müller apresentou uma proposta de compra no valor de um milhão de euros. Já outra sociedade, a Gut Spascher Sand Immobilien GmbH (a seguir «GSSI»), apresentou uma oferta de 2,5 milhões de euros.

10. Posteriormente, o município de Wildeshausen pediu aos proponentes que apresentassem os seus próprios projectos para a utilização da área. Esses projectos foram discutidos com o município, na presença também da Bundesanstalt. Em 24 de Maio de 2007, o Conselho Municipal de Wildeshausen manifestou a sua preferência pelo projecto da GSSI, declarando‑se pronto a abrir um processo para definir o plano urbanístico da área, com base nesse projecto. No entanto, a decisão do conselho municipal referia expressamente que não considerava essa preferência vinculativa relativamente às competências urbanísticas do município, que o conselho municipal se reservava o direito de exercer livremente.

11. A Bundesanstalt vendeu o terreno à GSSI em 6 de Junho de 2007. O contrato de compra e venda não faz qualquer referência à utilização futura do terreno alienado.

12. A venda do terreno foi impugnada pela Helmut Müller nos órgãos jurisdicionais nacionais, argumentando, em particular, que a mesma devia ter sido efectuada com base nas regras aplicáveis em matéria de contratos públicos.

13. Chamado a decidir o litígio, o órgão jurisdicional de reenvio colocou as seguintes questões prejudiciais:

«1) O contrato de empreitada de obras públicas exige, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da [Directiva 2004/18], que a obra seja adquirida pela entidade adjudicante em sentido material ou corpóreo e lhe traga um benefício económico directo?

2) Na medida em que, nos termos da definição do conceito de contrato de empreitada de obras públicas contida no artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 2004/18, não seja possível renunciar ao elemento da aquisição: de acordo com a segunda variante da disposição, deve considerar‑se que existe uma aquisição quando para a entidade adjudicante a obra se destina a realizar um fim público (por exemplo, o desenvolvimento urbanístico de uma área do município) e, nos termos do contrato de empreitada, lhe caiba assegurar que o fim público seja realizado e que a obra fique futuramente afecta a este fim?

3) O conceito de contrato de empreitada de obras públicas, nos termos da primeira e da segunda variantes do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 2004/18, exige que o empreiteiro esteja directa ou indirectamente obrigado a executar a obra? Nesse caso, deve tratar‑se de uma obrigação judicialmente exigível?

4) O conceito de contrato de empreitada de obras públicas, nos termos da terceira variante do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 2004/18, exige que o empreiteiro esteja obrigado a executar a obra ou que esta constitua o objecto do contrato?

5) O conceito de contrato de empreitada de obras públicas, nos termos da terceira variante do artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 2004/18, abrange os contratos através dos quais se pretende assegurar, mediante as necessidades especificadas pela entidade adjudicante, que a obra a executar fica afecta a um determinado fim público, e nos termos dos quais é simultaneamente atribuído (indirectamente no próprio interesse) à entidade adjudicante (por força de cláusula contratual) a faculdade legal para garantir a afectação da obra à realização do fim público?

6) O conceito de ‘necessidades especificadas pela entidade adjudicante', previsto pelo artigo 1.°, n.° 2, alínea b), da Directiva 2004/18 está preenchido quando as obras devam ser executadas segundo os planos examinados e aprovados pela entidade adjudicante?

7) A concessão de obras públicas deve ser recusada, por força do artigo 1.°, n.° 3, da Directiva 2004/18, quando o concessionário é ou se tornar o proprietário do terreno em que a obra deve ser realizada ou quando a concessão de obras for adjudicada por tempo indeterminado?

8) A Directiva 2004/18 deve igualmente ser aplicada - com a consequência jurídica de que a entidade adjudicante fica obrigada a abrir concurso público - quando a venda de um terreno por um terceiro e a adjudicação de um contrato de empreitada de obras públicas forem realizadas de forma diferida e, à data da celebração do contrato de venda do terreno, o contrato de empreitada de obras públicas ainda não tenha sido adjudicado mas já exista nesse momento por parte da entidade adjudicante a intenção de adjudicá‑lo?

9) Os contratos de venda de terreno e de empreitada de obras públicas, que embora distintos entre si são conexos, devem ser qualificados como uma unidade nos termos das normas relativas à adjudicação de contratos, quando, no momento da celebração do contrato de venda do terreno, a adjudicação de um contrato de empreitada de obras públicas estava prevista e as partes estabeleceram conscientemente um vínculo estreito - em termos materiais e, possivelmente também, temporais - entre os dois contratos (v. acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2005 - C‑29/04, Stadt Mödling)?»

III - Observações preliminares

A)    A jurisprudência do órgão jurisdicional de reenvio

14. Para se compreenderem as questões prejudiciais submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio é necessário um esclarecimento. Em especial, como a própria jurisdição nacional põe em evidência no seu despacho de reenvio, importa assinalar que a jurisprudência actual desse órgão jurisdicional (o Oberlandesgericht Düsseldorf) apresenta algumas particularidades que a contrapõem à maior parte da jurisprudência e da doutrina no domínio do direito dos contratos públicos.

15. Em particular, a posição do órgão jurisdicional de reenvio parte do pressuposto de que a natureza essencialmente urbanística de um procedimento não exclui, em princípio, a aplicabilidade das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos. O órgão jurisdicional nacional invoca, a este respeito, a jurisprudência do Tribunal de Justiça nos processos Ordem dos Arquitectos e o. (4) e Comissão/França (5).

16. Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio extrai da jurisprudência Auroux e o. (6) o princípio de que a aplicabilidade das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos é totalmente independente do facto de a entidade adjudicante tencionar adquirir a propriedade ou apenas a posse e o uso das obras a construir. Por outras palavras, a regulamentação comunitária em matéria de contratos públicos poderia ser aplicável caso se abstraísse da existência do elemento de aquisição material de um bem pela entidade adjudicante. Em particular, a utilidade visada pela entidade adjudicante pode mesmo ser de natureza imaterial, consistindo, por exemplo, como no caso em apreço, na realização de determinados fins de desenvolvimento urbanístico do território municipal (7).

17. Com base nessa jurisprudência, o órgão jurisdicional de reenvio tem o seguinte entendimento da situação objecto do processo principal. Foi atribuída à sociedade GSSI uma concessão de obras públicas (8) para a qual deviam ter sido aplicadas as disposições de direito comunitário relevantes (9). O facto de a sociedade GSSI adquirir um direito de propriedade sobre os bens em causa não contraria esse entendimento, pois o conceito de «concessão» definido pela directiva não exclui a duração da mesma por tempo indeterminado nem o reconhecimento de um direito de propriedade em favor do concessionário sobre os bens objecto da concessão.

18. O facto de o município de Wildeshausen, apesar de ter manifestado a sua preferência pelo ordenamento urbano apresentado pela sociedade GSSI, não se ter vinculado formalmente a autorizá‑lo, não é, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, suficiente para infirmar o seu entendimento dos factos. Em particular, o órgão jurisdicional nacional invoca o acórdão do Tribunal de Justiça no processo Comissão/Áustria (conhecido como acórdão «Mödling») (10) a fim de sustentar que, para a apreciação jurídica do caso sub iudice, pode mesmo ser necessário ter em consideração um acontecimento cronologicamente posterior à adjudicação, se este for concretamente determinante para os efeitos da mesma. Caso contrário, o efeito útil das disposições do direito comunitário poderia facilmente ficar comprometido.

19. Porém, como já referi, o mesmo órgão jurisdicional de reenvio reconhece que a sua interpretação do direito comunitário, nas partes aplicáveis no caso vertente, está bem longe de reunir um consenso unânime. Por isso, com as suas questões prejudiciais, o Oberlandesgericht Düsseldorf pergunta ao Tribunal de Justiça, em substância, se essa interpretação é ou não correcta.

B)    As diferenças entre as versões linguísticas do artigo 1.° da directiva

20. Na maior parte das versões linguísticas (11), o artigo 1.° da directiva identifica três tipos diferentes de «contratos de empreitada de obras públicas». São eles:

─ execução, eventualmente acompanhada da concepção, de trabalhos (12) de construção dos tipos especificados no Anexo I da directiva (primeira variante);

─ execução, eventualmente acompanhada de concepção, de uma obra (13) (segunda variante);

─ execução, por qualquer meio, de uma obra (14) que satisfaça as necessidades especificadas pela entidade adjudicante (terceira variante).

21. A directiva especifica logo a seguir que se entende por «obra» (15) «o resultado de um conjunto de trabalhos de construção ou de engenharia civil destinado a desempenhar, por si só, uma função económica ou técnica».

22. Importa observar, desde já, que as versões linguísticas da directiva apresentam diferenças de algum relevo.

23. São, sobretudo, as diferenças que resultam da utilização de terminologias nem sempre coerentes nas três variantes indicadas, o que se torna evidente, em particular, observando os termos a que recorrem algumas versões linguísticas, como foi indicado nas notas às variantes em questão.

24. Acresce que a versão alemã apresenta mais duas diferenças significativas. Antes de mais, a terceira variante especifica que a execução da actividade aí prevista deve ser realizada «por intermédio de terceiros» (durch Dritte): esta precisão não existe nas outras versões linguísticas (16). Em segundo lugar, a actividade prevista na terceira variante não é definida como «obra» (Bauwerk) mas como «actividade de construção» (Bauleistung), com a consequência de que a definição de «obra», que surge a seguir, parece aplicável, no texto alemão, apenas à segunda variante e não à terceira (17).

25. A existência dos referidos problemas lexicais desaconselha fortemente que se procure a interpretação «correcta» das disposições através de uma análise estritamente literal das mesmas, ainda por cima possivelmente limitada a uma única versão linguística. Na realidade, só a interpretação sistemática e a teleológica podem, conjuntamente e aliadas a uma certa dose de bom senso interpretativo, orientar a procura do significado a dar às disposições em causa.

IV - Análise jurídica

A)    Introdução: o conceito de contrato de empreitada de obras públicas

26. Para se poder dar uma resposta o mais completa possível às questões submetidas pelo órgão jurisdicional de reenvio é necessário, preliminarmente, identificar as características essenciais de um contrato de empreitada de obras.

27. É preciso esclarecer desde já que se trata de um conceito que releva exclusivamente do domínio do direito comunitário, pelo que, nesta matéria, não é pertinente a qualificação jurídica da matéria de facto com base no direito nacional de um Estado‑Membro (18).

28. No que se refere ao objecto do contrato, a Directiva 2004/18 distingue, como acima se viu, três tipos fundamentais. No entanto, de forma mais sintética, pode dizer‑se que, na acepção do artigo 1.° da referida directiva, cabem no conceito de contrato de empreitada de obras públicas, por um lado a realização de trabalhos específicos reconduzíveis aos tipos elencados no Anexo I da directiva e, por outro, a execução de obras. Por outras palavras, o conceito compreende tanto actividades de construção, independentemente de o resultado das obras ser um bem com carácter definido e/ou concluído ou uma actividade de realização, eventualmente também através de terceiros, de bens específicos «concluídos». Esses bens, cuja natureza «concluída» é identificada pela directiva com a observação de que desempenham «uma função económica ou técnica», são normalmente definidos como «obras».

29. No que diz respeito às situações específicas que devem ser apreciadas, há naturalmente que examinar, caso a caso, se são ou não abrangidas no âmbito de aplicação da Directiva 2004/18. Parece‑me, no entanto, que, em geral, uma abordagem flexível, fundada mais na bipartição trabalhos/obras, tal como exposta no número anterior, do que na tripartição presente na maior parte das versões linguísticas do artigo 1.°, permite, na maior parte dos casos, resolver o problema relativo à existência dos pressupostos objectivos para a aplicação da directiva.

30. Contudo, independentemente da abordagem seguida, importa não esquecer que a construção é um elemento característico de todos os contratos de empreitada de obras públicas. Por outras palavras, as actividades desenvolvidas devem implicar uma realização de bens. De facto, a mera compra e venda de bens já existentes é expressamente excluída do âmbito de aplicação da directiva (19).

31. O mesmo artigo 1.° da directiva identifica expressamente outras características essenciais do contrato público de obras, estabelecendo que os contratos públicos são contratos celebrados por escrito e a título oneroso. Esta última característica implica, portanto, que à prestação do adjudicatário corresponda uma contra‑prestação da administração pública, não necessariamente pecuniária mas que há‑de ter valor económico (20).

32. No entanto, como se sabe, a própria directiva prevê uma alternativa ao modelo «típico» em que a administração pública efectua um pagamento (em sentido lato, como se viu) ao construtor de uma obra. Nesse modelo alternativo, que é o da concessão de obras públicas, «a contrapartida das obras a efectuar consiste quer unicamente no direito de exploração da obra, quer nesse direito acompanhado de um pagamento». Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, no caso sub iudice devia aplicar‑se a regulamentação da concessão de obras públicas, pois a administração pública limita‑se a permitir que a parte que tenciona realizar algumas obras de construção aproveite plenamente, segundo as normas do direito de propriedade, os resultados da sua actividade de construção. Este problema será discutido em detalhe mais adiante, em particular no âmbito da análise da sétima questão prejudicial.

33. Ainda outra observação que merece a pena fazer prende‑se com a finalidade que os poderes públicos visam com as obras e/ou trabalhos que tencionam realizar. Como a jurisprudência do Tribunal de Justiça teve ocasião de precisar, para efeitos da aplicabilidade das disposições da directiva, a finalidade prosseguida é irrelevante (21). Por conseguinte, o que interessa é exclusivamente a subsistência dos pressupostos objectivos delineados pelo texto normativo.

34. Essa indiferença da regulamentação comunitária quanto aos fins visados pelos poderes públicos nos casos concretos explica‑se observando que, tal como os «considerandos» da directiva sugerem, o principal objectivo da regulamentação comunitária relativa aos contratos públicos é eliminar as restrições às liberdades fundamentais e favorecer uma concorrência efectiva (22). Por conseguinte, a perspectiva é a das partes que poderiam ter interesse em realizar as obras: para essas partes, como é óbvio, os fins visados visada pela administração pública são irrelevantes.

35. Os amplos e ambiciosos objectivos da directiva, que importa ter em mente na interpretação da mesma, não devem no entanto alimentar a ideia de que, tomando como base os objectivos desse texto, o seu âmbito de aplicação possa ser alargado sem limites. Note‑se, em particular, que o texto da directiva indica alguns domínios específicos em que a mesma não é aplicável: vejam‑se, designadamente, os artigos 10.° a 16.° Consequentemente, não é admissível uma interpretação exclusivamente «funcional» da directiva, efectuada tendo em consideração apenas os seus objectivos de fundo.

36. Com efeito, se nos colocarmos numa perspectiva de interpretação «funcional» como parece ser a preconizada em particular pela Comissão, coloca‑se o problema crucial de identificar o parâmetro em função do qual a directiva deve ser aplicável. Ora, a própria Comissão indica que a sua principal preocupação é a de que algumas partes possam conseguir uma posição de vantagem sem terem sido primeiramente colocadas numa situação de paridade com as outras partes potencialmente interessadas em adquirir essa posição. Em casos como o presente, a posição de vantagem consistiria no aumento do valor de um terreno, devido ao facto de a administração pública aí permitir a realização de algumas actividades de construção. Consequentemente, de acordo com a interpretação da Comissão, se cada «aumento de valor» de um bem imóvel for imputável a uma actividade dos poderes públicos, deve estar sujeito às disposições da directiva. Contudo, é evidente que, se se admitir essa posição, nos arriscamos a ter que admitir também a hipótese, por absurda que seja, da sujeição às regras da directiva de todas as actividades de regulamentação urbanística: com efeito, por definição, todas as disposições que regulam a possibilidade de realizar obras de construção alteram de forma substancial o valor dos terrenos a que se referem.

37. Na realidade, ninguém apoia essa posição extrema. No entanto, importa salientar que ela é a consequência lógica de uma leitura exclusivamente funcional da directiva.

38. É certo que, como se sabe, a jurisprudência do Tribunal de Justiça tem adoptado, nalguns domínios, uma interpretação declaradamente «funcional» das disposições do direito comunitário. Foi o que aconteceu, em particular, no direito dos contratos públicos, relativamente às noções de «entidade adjudicante» e de «organismo de direito público» (23). Contudo, importa observar a este respeito, antes do mais que, nessas ocasiões, a interpretação funcional foi utilizada para esclarecer o alcance de um conceito específico e não para definir, em geral, o âmbito de aplicação do corpus normativo inteiro em matéria de contratação pública. Além disso, nos casos citados, o recurso à interpretação funcional teve essencialmente como objectivo evitar a formação de grandes lacunas, abrindo amplo espaço a abusos: refiro‑me, por exemplo, ao caso em que a função típica de um organismo de direito público tenha sido assumida num momento posterior à constituição de uma sociedade, sem adaptação dos seus estatutos (24), ou à circunstância em que o financiamento público (no caso, um organismo de radiotelevisão), em vez de ser feito directamente por fundos públicos tenha sido efectuado mediante a imposição do pagamento de uma taxa a todos os proprietários de aparelhos receptores (25).

39. Por conseguinte, parece‑me claro que o âmbito de aplicação da directiva deve ser determinado com referência, em primeiro lugar, aos pressupostos objectivos que a própria directiva indica. Isto não significa, naturalmente, que o intérprete deva evitar qualquer consideração de tipo «funcional». Na realidade, os objectivos prosseguidos pela directiva são, como é evidente, um dos principais pontos de referência para efeitos da interpretação (26): no entanto, não podem constituir o único parâmetro de referência e não podem contornar a vontade do legislador de definir o âmbito de aplicação da norma.

40. Passarei agora ao exame das questões prejudiciais. Por razões de conexão lógica das questões, ocupar‑me‑ei antes de mais das primeira, segunda, quinta e sexta questões.

B)    As primeira e segunda questões

41. Com as duas primeiras questões prejudiciais, que podem ser abordadas conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio solicita ao Tribunal de Justiça que se digne esclarecer se, de um modo geral, para que exista um contrato de empreitada de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 é necessário que o objecto do contrato seja um bem materialmente adquirido pela administração pública, que represente para esta uma utilidade económica directa. Em caso de resposta afirmativa, ou seja, se, para utilizar a mesma terminologia do órgão jurisdicional de reenvio, não for possível «renunciar ao elemento de aquisição material», pergunta‑se se esse elemento pode ou não consistir na mera prossecução em geral de um objectivo público, por exemplo um determinado ordenamento urbanístico do território municipal.

1.    As posições das partes

42. As posições das partes que apresentaram observações neste processo formam um leque bastante amplo.

43. Por um lado, o Governo alemão, apoiado neste ponto pela Bundesanstalt e em grande medida pelo Governo austríaco, defende firmemente que, para se poder falar de contrato de empreitada de obras públicas, é necessário que esteja presente o elemento de aquisição. Na realidade, esse governo afirma que a aquisição não tem necessariamente que revestir natureza material, podendo ser suficiente um simples benefício económico para a administração pública. No entanto, no entender do Governo alemão, o que não é suficiente é a mera prossecução, com carácter geral, de um objectivo público, como acontece no caso sub iudice. Relativamente ao acórdão Auroux e o. do Tribunal de Justiça, que, como vimos, constitui um dos pontos cardeais para o qual o órgão jurisdicional nacional tende a inclinar‑se, o Governo alemão observa que, no processo que deu origem a essa decisão, a existência de uma utilidade económica directa para a administração pública era um pressuposto, pelo que o Tribunal de Justiça não considerou necessário concentrar a sua atenção nesse ponto. No entanto, isso não deve de modo algum ser interpretado no sentido de uma exclusão da necessidade do requisito de utilidade económica: mesmo que não explicitamente referido na directiva, tal requisito estaria implícito na sua economia geral. Quanto aos argumentos fundados na necessidade de garantir o efeito útil da directiva e de evitar o risco de abusos, segundo o Governo alemão, esses argumentos não podem permitir que a directiva seja aplicada sub‑repticiamente fora do seu âmbito natural. Para fazer face à eventual necessidade de evitar abusos fora do domínio da contratação pública, podem ser utilizados diversos instrumentos normativos, mas não a Directiva 2004/18.

44. A posição defendida pela Comissão é diametralmente oposta à do Governo alemão. Em particular, segundo a Comissão, o único elemento determinante para dar resposta ao órgão jurisdicional de reenvio consiste no facto de o texto da directiva não exigir que, para a existência de um contrato de empreitada de obras públicas, a administração pública adquira alguma coisa a um sujeito que lhe é alheio. Exigir um elemento da aquisição significaria, por isso, impor uma condição que o texto normativo não contempla.

45. Por último, o Governo dos Países Baixos opta por uma posição intermédia. Segundo este governo, em particular, embora a aquisição da obra pela administração pública não seja necessária, e isto também à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça, para que exista um contrato de empreitada de obras públicas é necessário que haja um interesse económico directo da administração pública. Em particular, esse interesse económico directo pode consistir, consoante os casos, quer numa vantagem económica para a administração pública quer naquilo que o Governo dos Países Baixos define como «risco de prejuízo» suportado pela mesma. No entender do Governo dos Países Baixos, no caso submetido ao órgão jurisdicional de reenvio tal interesse económico não existe ou, pelo menos, não se vislumbra com base nos elementos fornecidos pela jurisdição nacional.

2.    Apreciação

46. No meu entender, a interpretação correcta da Directiva 2004/18 situa‑se a meio caminho entre as duas posições «extremas», do Governo alemão e da Comissão. Mas, por outro lado, também não subscrevo inteiramente a posição do Governo dos Países Baixos que, para definir o conceito de contrato de empreitada de obras públicas me parece basear‑se excessivamente num elemento de natureza económica.

47. Para poder dar resposta à questão submetida ao Tribunal de Justiça, considero importante partir da interpretação que deve ser dada ao já referido acórdão Auroux (27). Como é sabido, no caso que deu origem ao procedimento em que foi proferido esse acórdão, uma administração municipal tinha atribuído sem concurso a realização de uma obra de ordenamento urbanístico a uma segunda administração adjudicante. A segunda administração adjudicante devia ter realizado, utilizando parcialmente fundos atribuídos pelo município, várias obras de construção destinadas, em parte, a ser vendidas a terceiros e, em parte, a ser entregues à administração municipal. O Tribunal considerou essa situação um contrato de empreitada de obras públicas, declarando que para esse efeito era irrelevante o facto de estar ou não previsto que a primeira entidade adjudicante viesse a ser proprietária da totalidade ou de parte dessa obra (28).

48. É verdade que, como o Governo alemão chama a atenção, nas circunstâncias desse caso não havia dúvidas de que algumas das obras a realizar resultariam directamente, pelo menos em parte, em benefício da administração municipal. Contudo, é igualmente verdade que a formulação bastante ampla escolhida pelo Tribunal de Justiça exclui, na minha opinião, a necessidade de considerar a aquisição directa em favor de uma administração pública um requisito do contrato de empreitada de obras públicas.

49. Por outro lado, porém, é de salientar outra característica do caso analisado no referido acórdão: nessa ocasião, a administração municipal tinha efectuado um pagamento considerável em dinheiro, e tinha tratado directamente com a segunda entidade adjudicante para a realização das obras pretendidas.

50. Embora devendo ser interpretado de modo amplo a fim de evitar possíveis abusos, o conceito de contrato de empreitada de obras públicas não pode, como já acima foi observado, ser alargado indefinidamente (29). Semelhante leitura «funcionalista» não pode ignorar por completo os limites do campo de aplicação da directiva. Se é certo que o objectivo principal das directivas em matéria de contratação pública é favorecer a concorrência entre empresas e abrir os mercados, também não é menos certo que, fora do campo de aplicação da directiva, esse objectivo deverá ser prosseguido com recurso a instrumentos legislativos adequados e diversificados, sem alargar para além da justa medida o âmbito de aplicação das disposições em matéria de contratos públicos.

51. Por conseguinte, há que determinar com uma certa precisão as fronteiras desse âmbito de aplicação, que devem constituir os limites intransponíveis de aplicabilidade das disposições da directiva.

52. Parece‑me que de uma consideração global do texto legislativo, tendo também presente a interpretação que o Tribunal de Justiça fez do mesmo, é possível extrair o princípio básico de que, para conseguir que uma determinada actividade caiba no âmbito do direito dos contratos públicos de obras, é necessário que exista uma sólida relação directa entre a administração pública e os trabalhos ou obras a realizar. Essa relação decorre, normalmente, do facto de os trabalhos ou obras serem realizados por iniciativa da administração pública.

53. Por conseguinte, ao contrário do que considera o órgão jurisdicional de reenvio, uma utilidade meramente imaterial e indirecta não é suficiente. Não pode bastar o simples facto de que a actividade em apreço corresponda, em geral, ao interesse público. De facto, cabe observar que, nos casos em que a actividade exige a autorização de uma administração pública (como acontece normalmente com todas as actividades de construção), essa actividade só pode obviamente ser autorizada se for conforme com o interesse público, que constitui o parâmetro de referência das autorizações concedidas pelos poderes públicos. Por conseguinte, a existência genérica de um interesse público que justifica a autorização para o exercício da actividade não pode, sob pena de um alargamento incontrolado do âmbito de aplicação da directiva, ser o critério determinante para identificar os casos abrangidos nesse âmbito. Em particular, importa ter presente que a licença de construção, manifestação típica dos poderes da administração no âmbito objectivamente urbanístico, se limita em regra a remover uma limitação ao desenvolvimento de uma iniciativa que parte de um particular e não da administração pública.

54. Considero que exigir a existência de uma relação directa entre a administração pública e as obras ou trabalhos a realizar permite conciliar as necessidades, tendencialmente opostas, de prevenir abusos e de evitar um alargamento incontrolado do âmbito de aplicação da directiva. Em particular, essa formulação permite respeitar plenamente o que o Tribunal de Justiça afirmou no já várias vezes referido acórdão Auroux e o., segundo o qual a aquisição da propriedade das obras pela administração não é condição necessária para aplicar a legislação relativa aos contratos públicos. Contudo, esse acórdão não poder ser utilizado para justificar uma abordagem que prescinda totalmente de uma relação sólida entre os poderes públicos e as obras a realizar: parece‑me que o critério da relação pode precisamente constituir uma formulação adequada dessa conexão necessária.

55. Essa relação directa é facilmente detectável, antes de mais, nas situações em que a administração pública obtém directamente a propriedade do bem a realizar. Trata‑se, como é evidente, do caso mais típico, e a maior parte dos casos em que a directiva deve ser aplicada é integra‑se nesse modelo de referência. A essa situação típica se equiparam também as situações em que, embora não sendo adquiridos pela administração pública, os bens a realizar constituem, ainda assim, um benefício económico directo para a própria administração. Pode tratar‑se, por exemplo, de casos em que os poderes públicos adquirem um direito sobre os bens construídos que, embora distinto do direito de propriedade, permite todavia, pelo menos em certa medida, a fruição do bem.

56. Uma segunda hipótese de relação directa entre a administração pública e as obras ou trabalhos a realizar pode ser identificada, em minha opinião, nos casos em que a administração pública utiliza recursos públicos para a realização dos trabalhos e/ou das obras. Na maior parte dos casos trata‑se, obviamente, de situações abrangidas também na primeira hipótese indicada no parágrafo anterior, uma vez que, no modelo mais clássico de utilização de recursos públicos para a realização de trabalhos ou obras, ou seja, no do contrato, os poderes públicos pagam para obter a propriedade dos bens que serão realizados. Por outro lado, como se viu, também no modelo da concessão pode haver uma utilização de recursos públicos, embora estes não cubram a totalidade do valor das obras ou dos trabalhos a realizar.

57. Contudo, a segunda hipótese abrange também situações em que, em contrapartida de um pagamento em dinheiro ou do financiamento por outros recursos públicos, a administração pública não adquire a propriedade dos bens a realizar. Como o Tribunal de Justiça esclareceu no acórdão Auroux e o., a aquisição da propriedade não é efectivamente um elemento indispensável. De resto, parece perfeitamente conforme com razões de equidade e de respeito pelos princípios substantivos consagrados na directiva que, no momento em que os poderes públicos tencionam utilizar recursos públicos, a escolha dos destinatários desses recursos seja feita com as garantias previstas na directiva.

58. É evidente que cabem nessa hipótese também as situações em que os recursos públicos utilizados não são de natureza pecuniária: pense‑se, por exemplo, no caso em que, para a realização das obras ou trabalhos, são colocados à disposição do adjudicatário ou do concessionário terrenos públicos a título gratuito ou a um preço inferior ao do mercado.

59. Uma terceira hipótese de relação directa entre a administração pública e os trabalhos ou as obras a realizar tem carácter residual e diz respeito aos casos em que essas obras e/ou trabalhos, para lá da existência da primeira ou da segunda hipóteses, tenham resultado de uma iniciativa da própria administração pública. Em particular, esse caso dá‑se quando os poderes públicos iniciam, por sua própria iniciativa, um procedimento que conduz à realização das obras ou dos trabalhos. No já referido acórdão Auroux e o., o Tribunal de Justiça teve que apreciar uma situação deste género (30).

60. A terceira e última hipótese exige, todavia, uma precisão importante. A actividade desenvolvida pela administração pública nesse contexto deve traduzir‑se em algo mais do que a mera utilização dos poderes reconhecidos à administração, em geral, no âmbito urbanístico. Com efeito, só desse modo é possível traçar uma clara linha de demarcação entre a actividade abrangida no âmbito de aplicação da directiva e a actividade «normal» de regulamentação urbanística, que em si mesma não está sujeita a essa aplicação. Em concreto, a apreciação relativa ao tipo de actividade desenvolvida pela administração pública nos casos concretos individuais deverá ser realizada pelo órgão jurisdicional nacional através de uma apreciação caso a caso.

61. Nesse quadro, também não é de excluir que um determinado ordenamento urbano do território possa ser objecto de um contrato abrangido no âmbito de aplicação da directiva. Isto, porém, sob condição de que entre a administração pública e os trabalhos ou as obras a realizar exista uma relação directa, na acepção indicada nos números precedentes. A mera prossecução do interesse público realizada através dos poderes ordinários no domínio urbanístico não é suficiente para desencadear a aplicação das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos e de concessões.

62. No caso em apreço compete naturalmente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar a existência, ou não, dessa relação directa. Observo porém que, com base nos elementos que o órgão jurisdicional nacional forneceu ao Tribunal de Justiça, me parece dificilmente possível considerar que exista essa relação directa.Com efeito, por um lado, como parece pacífico, no caso sub iudice a administração pública não adquire qualquer bem nem obtém qualquer benefício económico directo. Nem parecem repetir‑se as outras situações possíveis em que pode ser reconhecida uma relação directa, uma vez que o município de Wildeshausen não tomou uma iniciativa específica para a realização das obras, limitando‑se a apreciar os diversos projectos que lhe foram submetidos, e nem sequer teve de suportar qualquer despesa para os efeitos da construção. Do mesmo modo, esses elementos de conexão também não se vislumbram no que se refere à Bundesanstalt.

C)    As quinta e sexta questões

63. As quinta e sexta questões prejudiciais dizem respeito somente à terceira «variante» do conceito de contrato de empreitada de obras públicas (31) e, em certa medida, são a repetição, relativamente a essa hipótese, dos problemas colocados no âmbito das primeiras duas perguntas, em especial da segunda.

64. Com a quinta questão, mais precisamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as «necessidades especificadas pela entidade adjudicante», referidas na mencionada variante, podem consistir simplesmente no facto de a administração pública ter o poder de garantir que as obras a executar correspondem a um interesse público.

65. Com a sexta questão, solicita‑se ao Tribunal de Justiça que esclareça se as referidas «necessidades especificadas pela entidade adjudicante» podem consistir, de facto, no poder reconhecido à administração pública de examinar e aprovar os projectos de construção.

1.    Argumentos das partes

66. Todas as partes que apresentaram observações, com a única e óbvia excepção da sociedade Helmut Müller, concordam em princípio que, numa situação como a do processo principal, não subsistem as condições que configurem um contrato de empreitada de obras públicas na acepção da terceira variante.

67. Mais em particular, a Comissão e os Governos dos Países Baixos e francês insistem na necessidade de distinguir entre um papel «activo» da administração pública, no qual esta toma a iniciativa ou, de qualquer modo, exerce uma influência determinante na execução das obras, e um papel meramente «passivo», em que os poderes públicos se limitam às funções de aprovação e fiscalização de projectos que provêm de particulares. Neste segundo caso, não se estaria na presença de um contrato público mas, quando muito, do desempenho, pela administração pública, das suas funções ordinárias de planeamento, aprovação, fiscalização, etc.

68. Por seu lado, o Governo alemão baseia a sua posição na consideração de que mesmo para a terceira variante do conceito de contrato de empreitada de obras públicas é necessário que existam as condições que esse governo considera necessárias para a existência de uma das duas primeiras variantes, entre as quais, designadamente, a de uma utilidade económica directa para a administração pública.

2.    Apreciação

69. A opção do órgão jurisdicional de, na articulação das questões que submeteu ao Tribunal, separar a problemática relativa às duas primeiras variantes do conceito de contrato de empreitada de obras públicas, objecto em particular da segunda questão, da relativa à terceira variante, que é central às quinta e sexta questões, assenta, parece‑me, na vontade de extrair do teor literal da terceira variante um alargamento considerável do campo de aplicação da directiva.

70. Ora, como aliás a Comissão pôs bem em evidência nas suas observações, é indubitável que a terceira variante do conceito de contrato de empreitada de obras públicas foi concebida efectivamente com o fim de evitar evasões à norma, permitindo que a mesma abranja casos de vários tipos que teria sido impossível identificar preventivamente de forma exaustiva.

71. Todavia, como atrás observei, não é possível utilizar a letra do texto normativo para alargar incontroladamente o seu alcance. O âmbito de aplicação da directiva alargar‑se‑ia excessivamente, em especial se as «necessidades especificadas pela entidade adjudicante» pudessem englobar todas as funções de aprovação e programação urbanística de que dispõem os poderes públicos.

72. Na realidade, as considerações que teci quanto às primeiras duas questões prejudiciais devem ser aplicadas também em relação à terceira variante. Não há qualquer razão para considerar que, relativamente à terceira variante, se possa prescindir da necessidade de uma relação directa entre a administração pública e as obras a realizar, a fim de ser possível aplicar a Directiva 2004/18.

D)    Conclusões parciais

73. Por conseguinte, para concluir a minha análise das primeira, segunda, quinta e sexta questões prejudiciais, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às mesmas declarando que, para existir um contrato de empreitada de obras públicas ou uma concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18, é necessário que haja uma relação directa entre a administração adjudicante e os trabalhos ou as obras a realizar. Essa relação directa pode consistir, em particular, no facto de a obra se destinar a ser adquirida pela administração pública ou de dar a esta um benefício económico directo, ou ainda no facto de a administração adjudicante ter assumido a iniciativa da sua realização ou suportar, pelo menos em parte, os custos da mesma.

E)    As terceira e quarta questões

74. Com as terceira e quarta questões prejudiciais, o Oberlandesgericht Düsseldorf pergunta se é essencial, no conceito de contrato de empreitada de obras públicas, o facto de o empreiteiro se obrigar à realização das obras ou dos trabalhos. As questões, aparentemente independentes, explicam‑se tendo em consideração que, na hipótese submetida à apreciação do órgão jurisdicional nacional, é pacífico que o adquirente dos terrenos não assumiu, com essa aquisição, qualquer obrigação de construir.

75. Quase todas as partes que apresentaram observações concordam em geral com a necessidade de responder afirmativamente às questões, sem diferenças substanciais entre as respectivas posições. Só a sociedade Helmut Müller, recorrente no processo principal, sugere ao Tribunal de Justiça, por razões óbvias, que, pelo contrário, aceite a tese do órgão jurisdicional de reenvio, segundo a qual essa obrigação não é necessária.

76. No entanto, parece‑me claro que a resposta às questões é afirmativa e que a obrigação de realizar os trabalhos e/ou as obras constitui um elemento imprescindível para que possa existir um contrato de empreitada de obras públicas ou uma concessão de obras públicas.

77. Isto resulta, primeira e fundamentalmente, das previsões da própria Directiva 2004/18 que, como se viu, define o contrato de empreitada de obras públicas como um contrato a título oneroso. Existe, portanto, na própria base do conceito, a ideia de uma troca de prestações entre a administração adjudicante, que paga um preço (ou, em alternativa, concede um direito de uso) e o adjudicatário, encarregado de realizar os trabalhos ou obras. A natureza sinalagmática do contrato público é, por isso, evidente. Seria manifestamente contrário a essa natureza admitir que, depois de ter obtido a adjudicação do contrato, um adjudicatário possa simplesmente decidir, unilateralmente e sem quaisquer consequências, não realizar o previsto no contrato. A não ser assim, acabar‑se‑ia por reconhecer ao adjudicatário um poder discricionário relativamente às exigências e às necessidades da entidade adjudicante.

78. Uma questão diferente e conceptualmente separada, que também foi colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio, diz respeito à necessidade, ou não, de que, para que exista um contrato de empreitada de obras públicas, a eventual obrigação assumida pelo adjudicatário perante a administração pública deva ser juridicamente exigível. Ou seja, o órgão jurisdicional nacional pergunta se deve ser prevista a possibilidade de, no caso de não realização, a administração adjudicante poder agir judicialmente para obrigar o adjudicatário a essa realização.

79. Se, com essa formulação, o órgão jurisdicional de reenvio pretende questionar o Tribunal de Justiça sobre a necessidade de, em matéria de contratos de empreitada de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18, o ordenamento nacional ter necessariamente que prever mecanismos através dos quais o adjudicatário pode ser obrigado a realizar a obra ou os trabalhos previstos no contrato, parece‑me que a resposta deve ser negativa, uma vez que não é possível encontrar na directiva qualquer indicação nesse sentido.

80. Isto não significa, no entanto, que o eventual incumprimento do adjudicatário possa ser irrelevante. Com efeito, não se pode esquecer que, como salientei mais acima, um contrato de empreitada de obras públicas é, para todos os efeitos, um contrato, isto é, um acto jurídico que, nas diversas ordens jurídicas nacionais, se caracteriza sempre pelo seu carácter vinculativo. Como o Governo alemão justamente salienta nas suas observações, para se poder falar de um contrato de empreitada de obras públicas é necessário que o adjudicatário seja contratualmente obrigado a efectuar a prestação prevista. No entanto, as consequências do eventual incumprimento são remetidas para o direito nacional: nada impede que, por exemplo, no caso de incumprimento por parte de um adjudicatário, o direito nacional de um Estado preveja a resolução do contrato, a adjudicação a um outro adjudicatário e o direito de a administração pública exigir do primeiro adjudicatário simplesmente o ressarcimento dos danos.

81. Por conseguinte, proponho ao Tribunal de Justiça que responda às terceira e quarta questões prejudiciais declarando que os conceitos de contrato de empreitada de obras públicas e de concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 pressupõem que o adjudicatário seja contratualmente obrigado, perante a administração pública, a efectuar a prestação convencionada. Cabe ao direito nacional determinar as consequências de um eventual incumprimento do adjudicatário.

F)    A sétima questão

82. Com a sétima questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se pode existir uma concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 quando o «concessionário» é titular de um direito de propriedade que já por si lhe confere o direito de utilizar o bem objecto da concessão (32). De forma mais geral, a questão diz respeito à admissibilidade, com base no direito comunitário, de uma concessão por tempo indeterminado.

1.    Posições das partes

83. A posição mais clara sobre o problema é a do Governo alemão, que exclui, em geral, a compatibilidade do instituto da concessão com a existência de um direito de propriedade. Isto porque, por definição, a concessão pressupõe que o concedente seja o titular dos direitos que são transferidos para o concessionário.

84. Por seu lado, os governos dos Países Baixos e austríaco, embora não excluindo em absoluto a compatibilidade da concessão com o direito de propriedade, consideram que, no caso sub iudice, o papel da administração pública foi demasiado limitado para poder configurar uma concessão. Efectivamente, para esse efeito, segundo os referidos governos, seria necessário que os poderes públicos dessem ao concessionário, no mínimo, instruções precisas quanto aos trabalhos e/ou às obras a realizar.

85. Apenas a Comissão assume uma posição mais aberta. Baseando‑se em particular no facto de o elemento característico da concessão de obras ser o facto de que é o concessionário quem suporta o risco económico ligado à realização dos trabalhos ou das obras, a Comissão considera que, no caso em apreço, se pode reconhecer o risco económico na incerteza do «concessionário» quanto à aceitação, por parte da administração pública, dos seus projectos de construção, para cuja realização foi necessário proceder antes à aquisição onerosa do terreno.

2.    Apreciação

86. De um determinado ponto de vista, a sétima questão é a mais problemática, pelo menos em princípio. Com efeito, o problema da compatibilidade entre concessão de obras públicas e direito de propriedade tem implicações significativas tanto do ponto de vista teórico como prático.

87. A opção de uma administração pública de recorrer a uma concessão de obras públicas pode resultar de diversas razões. Nalguns casos, pode ser a vontade de explorar experiências específicas existentes no sector privado, ou, então, a de realizar obras de construção com maior eficiência. No entanto, não há dúvida de que, na maior parte dos casos, a opção pela concessão responde a condicionalismos de natureza financeira. Com efeito, recorrendo a este instituto, é possível realizar obras de interesse público sem onerar a fazenda pública (33).

88. Com base na etimologia do termo, uma concessão é a possibilidade, reconhecida a uma pessoa, de explorar um bem sobre o qual não poderia de outro modo invocar qualquer direito.

89. Por seu lado, a Directiva 2004/18, ao definir a concessão de obras públicas, fala simplesmente de um «direito de exploração da obra» reconhecido como contrapartida ao sujeito que a constrói.

90. Ora, por mais amplamente que se possa interpretar esse «direito de exploração», o que me parece de excluir, tendo em consideração o sentido e a economia geral da disposição em causa, é a possibilidade de configurar uma concessão de obras públicas em que seja reconhecido ao concessionário o direito de propriedade sobre as obras realizadas.

91. Com efeito, em primeiro lugar, como observou em particular o Governo alemão, o facto de a directiva falar de um direito de exploração reconhecido ao concessionário parece implicar, logicamente, que o concessionário não pode ter sobre o bem um direito mais amplo, como é o direito de propriedade.

92. Além disso, essa situação, além de dificilmente conciliável com a letra da disposição, privaria os poderes públicos do que me parece ser uma das características essenciais da concessão de obras públicas: a possibilidade de a administração pública vir um dia a ter a posse das obras construídas, eventualmente nem que seja apenas para efeitos de reatribuir o direito de as explorar.

93. Por outras palavras, o problema coloca‑se, mais do que em função das características objectivas do direito de propriedade inerentes à possibilidade de fruir do bem, em consequência da duração tendencialmente indeterminada no tempo, desse direito. Portanto, a exploração entregue ao concessionário nunca poderá ser reconhecida por um período de tempo indeterminado, independentemente do título jurídico com base no qual a exploração pode ser exercida.

94. Porém, não se deve esquecer também que, no modelo típico de concessão com base no direito comunitário, o elemento crucial distintivo, que serve para distinguir a concessão do contrato público, é a existência, na concessão, de um risco económico que recai sobre o concessionário, risco esse que não existe no caso dos contratos públicos (34). No caso aqui em apreço, para reconhecer a existência de um risco deste género a Comissão deve reconduzi‑lo ao facto de os poderes públicos poderem, no exercício das suas funções em matéria urbanística, recusar as licenças de construção para as obras projectadas, depois da aquisição do terreno pelo interessado. Contudo, mais do que um risco ligado à exploração económica das obras, essa «aleatoriedade» parece ser a incerteza normal com que se depara qualquer particular que careça de uma medida discricionária da administração pública.

95. De resto, o risco económico que caracteriza a concessão de obras públicas prevista pela directiva é, vendo bem, uma consequência directa do carácter limitado no tempo da mesma concessão. Em contrapartida, um direito de duração limitada sobre bens a construir, permite em princípio excluir sempre a existência de um risco económico porque com o decorrer do tempo é sempre possível superar eventuais fases de dificuldade encontradas na exploração dos bens.

96. Por último, há um outro elemento que milita a favor de uma limitação no tempo, de modo geral, das concessões no âmbito do direito comunitário. Nas presentes conclusões, já por várias vezes se observou que o objectivo de fundo da regulamentação comunitária no domínio da contratação pública é, em geral, o de favorecer ao máximo a concorrência, eliminando todas as restrições às liberdades fundamentais. Nesta óptica, reconhecer a possibilidade de concessões por tempo indeterminado significaria impedir, em prejuízo da concorrência e da eficiência, a possibilidade de, no futuro, a exploração das obras ser, eventualmente, assegurada por outros sujeitos, com modalidades e segundo critérios mais eficazes.

97. As consequências do que ficou exposto são duas. Por um lado, em geral, não podem ser atribuídas concessões por tempo indeterminado (35). Por outro lado, não pode ser atribuída a uma pessoa uma concessão sobre um bem do qual já seja proprietária, a menos que, com base no direito nacional, após um determinado período a administração pública adquira um direito de propriedade ou um direito análogo sobre esse bem.

98. Concluindo, proponho ao Tribunal de Justiça que responda à sétima questão prejudicial declarando que uma concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 nunca pode prever o reconhecimento ao concessionário de um direito por tempo indeterminado sobre o bem objecto da concessão.

G)    As oitava e nona questões

99. Tendo em consideração o seu objecto, as oitava e nona questões também podem ser apreciadas em conjunto. Com a oitava questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se as disposições da Directiva 2004/18 devem começar a ser aplicadas a partir do momento em que a administração pública, embora não tendo ainda decidido formalmente proceder à adjudicação de um contrato público, cede um terreno com a intenção de posteriormente adjudicar um contrato relativo ao mesmo. Por seu lado, a nona questão diz respeito à possibilidade de se considerar como um todo, do ponto de vista jurídico, a cessão do terreno e a posterior adjudicação.

100. Como se vê, ambas as questões dizem respeito à possibilidade de punir eventuais abusos de direito, destinados a evitar a aplicação das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos, através de uma aplicação dessas normas que prescinda da típica sequência cronológica considerada também na directiva.

101. Importa observar que, tendo em consideração as respostas que proponho sejam dadas às anteriores questões prejudiciais, em particular à sétima, é provavelmente supérfluo dar também ao órgão jurisdicional de reenvio resposta para as oitava questão e nona questões, sendo de excluir a possibilidade de um contrato de empreitada ou de uma concessão de obras públicas na acepção do direito comunitário serem compatíveis com um direito de propriedade do eventual adjudicatário/concessionário sobre os respectivos bens. No entanto, para uma análise mais completa e caso o Tribunal de Justiça não partilhe a minha abordagem relativamente às questões precedentes, farei algumas breves considerações sobre este ponto.

102. Entre as partes que apresentaram observações no âmbito do presente processo, só a Comissão se mostrou mais aberta relativamente à tese preferida pelo órgão jurisdicional de reenvio. Com efeito, embora observando que compete ao órgão jurisdicional nacional proceder à apreciação de cada caso específico, a Comissão admite que, em princípio, numa situação como a do processo principal, seja possível aplicar a Directiva 2004/18 logo a partir do momento em que a administração decide ceder o terreno. Todas as outras partes consideram, embora com diferentes matizes, que a mera intenção da administração pública é irrelevante.

103. Não há dúvidas de que, como observa o órgão jurisdicional de reenvio, a resposta às oitava e nona questões não pode prescindir daquilo que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão «Mödling» (36). Nesse acórdão, o Tribunal foi confrontado com uma situação em que um município austríaco tinha procedido à contratação do serviço de recolha de lixo, por ajuste directo, com uma sociedade inteiramente controlada pelo próprio município, para, poucos dias depois, ceder a um particular 49% da mesma sociedade. O Tribunal de Justiça afirmou consequentemente que, face a uma clara «construção artificial» (37), cujo resultado é, em substância, impedir o efeito útil das directivas em matéria de contratos públicos, a apreciação jurídica do caso pode ser feita «tendo em conta o conjunto dessas fases, bem como a sua finalidade, e não em função do desenrolar estritamente cronológico destas» (38).

104. Parece‑me evidente que o percurso lógico do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça no acórdão «Mödling» assentou em dois pilares. O primeiro, expressamente indicado, foi a necessidade de preservar o efeito útil da directiva (39). O segundo, implícito mas que constitui no fundo o reverso da mesma medalha, foi a vontade de punir os abusos de direito.

105. O que o Tribunal de Justiça declarou no acórdão «Mödling» pode ser certamente generalizado e permite, por conseguinte, afirmar que, para evitar abusos do direito e garantir o efeito útil da regulamentação comunitária no domínio da contratação pública, dois actos formalmente separados, mesmo do ponto de vista cronológico, podem ser considerados contemporâneos ou até mesmo constitutivos de um único acto jurídico.

106. A apreciação compete naturalmente ao órgão jurisdicional nacional, que é o único a dispor de todos os elementos de facto e de direito necessários para esse efeito. Todavia, é necessário que, por razões que têm obviamente a ver com a necessidade de garantir a segurança jurídica, existam algumas condições rigorosas. Em especial, entre a cessão do terreno e a adjudicação do contrato deve decorrer um lapso de tempo que não seja excessivo e devem existir elementos convincentes para demonstrar que a intenção da administração relativamente ao contrato já existia no momento da cessão do terreno. Salvo em caso de abuso considerável em que a vontade de eludir as normas é absolutamente evidente desde o início, só uma apreciação ex post poderá ter adequadamente em conta todos os elementos indicados.

107. Por isso, proponho que se responda às oitava e nona questões, se necessário, declarando que, em presença de claros elementos indicativos da vontade de eludir as disposições comunitárias em matéria de contratos públicos e de concessões, a apreciação jurídica de um caso pode considerar como constitutivos de um acto jurídico único os dois actos formalmente separados, mesmo do ponto de vista cronológico, da cessão de um terreno e da adjudicação de um contrato ou de uma concessão sobre o mesmo. Compete ao órgão jurisdicional nacional, com base em todas as circunstâncias do caso, verificar a existência dessa intenção de eludir disposições comunitárias.

V - Conclusões

108. Em conclusão, proponho que o Tribunal de Justiça responda às questões do Oberlandesgericht Düsseldorf nos seguintes termos:

Para existir um contrato de empreitada de obras públicas ou uma concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, é necessário que haja uma relação directa entre a administração adjudicante e os trabalhos ou as obras a realizar. Essa relação directa pode consistir, em particular, no facto de a obra se destinar a ser adquirida pela administração pública ou de dar a esta um benefício económico directo, ou ainda no facto de a administração adjudicante ter assumido a iniciativa da realização ou suportar, pelo menos em parte, os custos da mesma.

Os conceitos de contrato de empreitada de obras públicas e de concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 pressupõem que o adjudicatário seja contratualmente obrigado, perante a administração pública, a efectuar a prestação convencionada. Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar as consequências de um eventual incumprimento do adjudicatário.

Uma concessão de obras públicas na acepção da Directiva 2004/18 nunca pode prever o reconhecimento ao concessionário de um direito por tempo indeterminado sobre o bem objecto da concessão.

Na presença de claros elementos indicativos da vontade de eludir as disposições comunitárias em matéria de contratos públicos e de concessões, a apreciação jurídica de um caso pode considerar como constitutivos de um acto jurídico único os dois actos formalmente separados, mesmo do ponto de vista cronológico, da cessão de um terreno e da adjudicação de um contrato ou de uma concessão sobre o mesmo. Compete ao órgão jurisdicional nacional, com base nas circunstâncias do caso, verificar a existência dessa intenção de eludir as disposições comunitárias.


_______________________________________________________

(1) Língua original: italiano.
(2) Como é evidente, está‑se perante um auxílio estatal quando a cessão do bem público é feita a preço inferior ao do mercado. V., a propósito, em particular, a Comunicação da Comissão no que respeita a auxílios estatais no âmbito da venda de terrenos e imóveis públicos (JO 1997, C 209, p. 3).
(3) Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114).
(4) Acórdão do Tribunal de Justiça, de 12 de Julho de 2001, Ordem dos Arquitectos e o. (C‑399/98, Colect., p. I‑5409).
(5) Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2005, Comissão/França (C‑264/03, Colect., p. I‑8831).
(6) Acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2007, Auroux e o. (C‑220/05, Colect., p. I‑385).
(7) Por outro lado, posteriormente ao despacho de reenvio, a legislação alemã foi alterada pela lei de 20 de Abril de 2009 relativa à actualização do direito da contratação pública (Gesetz sur Modernisierung des Vergaberechts, BGBl. I, p. 790), que alterou o § 99 da GWB (lei de protecção da concorrência) precisando, inter alia, que, nos casos referidos na terceira variante da definição de um contrato de empreitada de obras públicas, é necessário que a entidade adjudicante obtenha um benefício económico directo. V. também infra, nota 35.
(8) Contudo, não é bem claro qual era o sujeito que tinha atribuído a concessão. A própria Comissão, que neste ponto se mostrou bastante aberta relativamente às posições do órgão jurisdicional de reenvio, teve que reconhecer, na audiência, que quer a Bundesanstalt quer o município de Wildeshausen apresentam, no caso em apreço, características típicas desse papel, sem que seja possível reconhecer a preeminência de uma ou do outro, nesta questão.
(9) Nos termos do despacho de reenvio, não restam dúvidas quanto ao facto de que os limiares previstos para a aplicação da directiva foram amplamente superados no caso sub iudice. Na realidade, uma vez que o valor do terreno, per se, não supera os limiares, o percurso lógico do órgão jurisdicional nacional apresenta indubitavelmente elementos de carácter hipotético. Por outro lado, atendendo à jurisprudência constante segundo a qual compete em princípio ao órgão jurisdicional nacional apreciar a pertinência das questões, para poder pronunciar‑se sobre o litígio, considero que, no caso vertente, o Tribunal de Justiça deve dar uma resposta às questões apresentadas pelo Oberlandesgericht Düsseldorf. V., a este respeito, por exemplo, acórdãos de 15 de Dezembro de 1995, Bosman (C‑415/93, Colect., p. I‑4921, n.° 61), de 7 de Setembro de 1999, Beck e Bergdorf (C‑355/97, Colect., p. I‑4977, n.° 22), de 7 de Junho de 2007, van der Weerd e o. (processos C‑222/05 a C‑225/05, Colect., p. I‑4233, n.° 22), e de 17 de Julho de 2008, Corporación Dermoestética (C‑500/06, Colect., p. I‑5785, n.° 23).
(10) Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2005, Comissão/Áustria (C‑29/04, Colect., p. I‑9705).
(11) Mas não em todas: por exemplo, a segunda variante indicada não se encontra na versão portuguesa.
(12) Alemão: «von Bauvorhaben»; inglês: «of works»; francês: «de travaux»; espanhol: «de obras»; neerlandês «van werken»; português: «de trabalhos»; grego: «εργασιών».
(13) Alemão: «eines Bauwerks»; inglês: «a work»; francês: «d'un ouvrage»; espanhol: «de una obra»; neerlandês «van een werk»; grego: «ενός έργου».
(14) Alemão: «einer Bauleistung»; inglês: «of a work»; francês: «d'un ouvrage»; espanhol: «de una obra»; neerlandês «van een werk»; português: «de uma obra»; grego: «ενός έργου».
(15) Alemão: «Bauwerk»; inglês: «work»; francês: «ouvrage»; espanhol: «obra»; neerlandês «werk»; português: «obra»; grego: «έργο».
(16) Saliento, porém, que como foi observado na audiência, em particular pelo Governo austríaco, concretamente a precisão contida no texto alemão faz com que o mesmo, em vez de divergente, seja simplesmente «mais específico» relativamente às outras versões linguísticas. Com efeito, tendo em consideração a estrutura da disposição em análise, parece difícil, mesmo fazendo referência às outras versões linguísticas, identificar um caso abrangido na terceira variante no qual as obras não tenham sido realizadas por um «terceiro». De qualquer maneira, recorde‑se que, segundo jurisprudência assente, a formulação utilizada numa das versões linguísticas de uma disposição comunitária não pode servir como ponto de partida único para a interpretação dessa norma, nem ser‑lhe atribuído, a esse propósito, um carácter prioritário em relação às outras. A este respeito, v., por exemplo, acórdãos de 27 de Março de 1990, Cricket St Thomas (C‑372/88, Colect., p. I‑1345, n.° 18), e de 19 de Abril de 2007, Velvet & Steel Immobilien (C‑455/05, Colect., p. I‑3225, n.° 19).
(17) Essas especificidades da versão alemã têm a sua origem já na Directiva 89/440/CEE do Conselho, de 18 de Julho de 1989, que altera a Directiva 71/305/CEE, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 210, p. 1). A Directiva 89/440 introduziu pela primeira vez no ordenamento jurídico comunitário a actual definição «tripartida» do concurso de obras públicas.
(18) V. acórdão Auroux e o., referido na nota 6, n.° 40.
(19) V. artigo 16.° da directiva.
(20) Por exemplo, em vez de pagar uma soma em dinheiro, a administração pública pode conceder a isenção de pagamento de algumas contribuições: v. acórdão Ordem dos Arquitectos e o., já referido na nota 4, n.ºs 76 a 86.
(21) Acórdão de 15 de Janeiro de 1998, Mannesmann Anlagenbau Austria AG e o. (C‑44/96, Colect., p. I‑73, n.° 32). V. também acórdãos de 18 de Novembro de 2004, Comissão/Alemanha (C‑126/03, Colect., p. I‑11197, n.° 18), e de 11 de Janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau (C‑26/03, Colect., p. I‑1, n.° 26).
(22) V., em particular, o segundo «considerando» da Directiva 2004/18, assim como, com anterioridade, o segundo e décimo «considerandos» da revogada Directiva 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54). Sobre este ponto, v. também acórdãos Ordem dos Arquitectos e o., referido na nota 4, n.° 52, e de 12 de Dezembro de 2002, Universale‑Bau e o. (C‑470/99, Colect., p. I‑11617, n.° 51 e jurisprudência aí indicada).
(23) V., por exemplo, acórdãos Universale‑Bau e o., referido na nota 22, n.° 53, de 13 de Dezembro de 2007, Bayerischer Rundfunk e o. (C‑337/06, Colect., p. I‑11173, n.° 37), e de 10 de Abril de 2008, Ing. Aigner (C‑393/06, Colect., p. I‑2339, n.° 37).
(24) Acórdão Universale‑Bau e o., referido na nota 22.
(25) Acórdão Bayerischer Rundfunk e o., referido na nota 23. V. também, para uma situação semelhante, acórdão de 11 de Junho de 2009, Hans & Christophorus Oymanns (C‑300/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 57).
(26) V., por exemplo, acórdãos de 17 de Novembro de 1983, Merck (292/82, Recueil, p. 3781, n.° 12), de 14 de Outubro de 1999, Adidas (C‑223/98, Colect., p. I‑7081, n.° 23), e de 7 de Junho de 2005, VEMW e o. (C‑17/03, Colect., p. I‑4983, n.° 41).
(27) Referido na nota 6.
(28) Ibidem, n.° 47.
(29) V. n.ºs 35 e segs.
(30) V. acórdão Auroux, referido na nota 6, n.° 42.
(31) V. n.° 20.
(32) Na formulação da questão, para ser preciso, o órgão jurisdicional de reenvio faz referência à propriedade do terreno em que a obra ou os trabalhos devem ser realizados. Como, porém, o mesmo órgão jurisdicional de reenvio observa na fundamentação do despacho, no direito alemão o direito de fruição de um edifício é a consequência directa do direito de propriedade relativo ao terreno no qual o edifício foi construído. Consequentemente, o verdadeiro problema na base da questão é, precisamente, o da relação entre concessão e direito de propriedade.
(33) V., relativamente a essa ratio legis, a Comunicação interpretativa da Comissão sobre as concessões em direito comunitário (JO 2000, C 121, p. 2, ponto 1.2) e, mais recentemente, a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité económico e social europeu e ao Comité das regiões sobre as parcerias público‑privadas e o direito comunitário sobre contratos públicos e concessões, de 15 de Novembro de 2005 [COM(2005) 569 final, n.° 1].
(34) V. acórdãos de 13 de Outubro de 2005, Parking Brixen (C‑458/03, Colect., p. I‑8585, n.° 40), e de 13 de Novembro de 2008, Comissão/Itália (C‑437/07, ainda não publicado na Colectânea, n.os 29‑31). Esse risco não deve necessariamente ser elevado, pois são actividades em que é intrinsecamente reduzido: mas deve ser a totalidade, ou pelo menos uma parte significativa, do risco que a administração pública teria de suportar se desenvolvesse directamente essa actividade [acórdão de 10 de Setembro de 2009, Eurawasser, (C‑206/08, ainda não publicado na Colectânea, n.ºs 69 a 77)].
(35) Portanto, parece‑me correcta e conforme ao direito comunitário a nova lei alemã, referida na nota 7, que, inter alia, introduziu uma definição de concessão de obras públicas que indica expressamente a natureza limitada no tempo do direito reconhecido ao concessionário.
(36) Referido na nota 10.
(37) Ibidem, n.° 40.
(38) Ibidem, n.° 41.
(39) Ibidem, n.° 42.