Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 9 de Junho de 2009 (proc. C-480/06)

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Processo C‑480/06

Comissão das Comunidades Europeias
contra
República Federal da Alemanha

 

«Incumprimento de Estado - Directiva 92/50/CEE - Inexistência de processo formal europeu de celebração de contratos públicos para a adjudicação de serviços de tratamento de resíduos - Cooperação entre autarquias locais»

 

Sumário do acórdão:

Não está abrangido pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços, um contrato que constitui quer o fundamento quer o quadro jurídico para a construção e a exploração futuras de uma instalação destinada a prestar um serviço público, concretamente, a valorização térmica dos resíduos, na medida em que apenas foi celebrado por autoridades públicas, sem a participação de privados, e não prevê nem considera a adjudicação dos contratos eventualmente necessários para a construção e a exploração da instalação de tratamento de resíduos.

Com efeito, uma autoridade pública pode desempenhar as missões de interesse público que lhe incumbem, através dos seus próprios meios, ou em colaboração com outras autoridades públicas, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas que não pertençam aos seus serviços. A este respeito, o direito comunitário de maneira nenhuma impõe às autoridades públicas, para assegurar conjuntamente as suas missões de serviço público, que recorram a uma forma jurídica especial. Por outro, essa colaboração entre as autoridades públicas não pode pôr em causa o objectivo principal das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos, isto é, a livre circulação de serviços e a abertura à concorrência não falseada em todos os Estados‑Membros, desde que a realização desta cooperação seja regida unicamente por considerações e exigências próprias à prossecução de objectivos de interesse público e que o princípio da igualdade de tratamento dos interessados consagrado na Directiva 92/50 seja garantido, de modo que nenhuma empresa privada seja colocada numa situação privilegiada relativamente aos seus concorrentes.

(cf. n.os 44‑45, 47)

 

Texto integral:

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

9 de Junho de 2009 (*)

No processo C‑480/06,

que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 24 de Novembro de 2006,

Comissão das Comunidades Europeias, representada por X. Lewis e B. Schima, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo, demandante,
contra
República Federal da Alemanha, representada por M. Lumma e C. Schulze‑Bahr, na qualidade de agentes, assistidos por C. von Donat, Rechtsanwalt, demandada,
apoiada por:
Reino dos Países Baixos, representado por C. M. Wissels e Y. de Vries, na qualidade de agentes,
República da Finlândia, representada por J. Heliskoski, na qualidade de agente,
intervenientes,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, P. Jann, C. W. A. Timmermans, K. Lenaerts e J.‑C. Bonichot (relator), presidentes de secção, A. Borg Barthet, J. Malenovský, J. Klučka e U. Lõhmus, juízes,

advogado‑geral: J. Mazák,

secretário: B. Fülöp, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 11 de Novembro de 2008,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 19 de Fevereiro de 2009,

profere o presente

Acórdão

1. Na sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que a República Federal da Alemanha não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força das disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), uma vez que os Landkreise (circunscrições administrativas) de Rotenburg (Wümme), Harburg, Soltau‑Fallingbostel e Stade celebraram um contrato relativo à eliminação dos resíduos directamente com os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, sem que este contrato de prestação de serviços tenha sido objecto de concurso público no quadro de um processo formal à escala da Comunidade Europeia.

       Quadro jurídico

       Direito comunitário

2. O artigo 1.° da Directiva 92/50 dispõe:

«Para efeitos do disposto na presente directiva:

a) Os ‘contratos públicos de serviços' são contratos a título oneroso celebrados por escrito entre um prestador de serviços e uma entidade adjudicante [...]

b) São consideradas ‘entidades adjudicantes' o Estado, as autarquias locais ou regionais, os organismos de direito público, as associações formadas por uma ou mais autarquias ou organismos de direito público.

Considera‑se ‘organismo de direito público' qualquer organismo:

─ criado com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial,

e

─ dotado de personalidade jurídica

e

─ financiado maioritariamente pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, ou submetido a um controlo de gestão por parte dessas entidades, ou que tenha um órgão de administração, de direcção ou de fiscalização cujos membros são, em mais de 50%, designados pelo Estado, por autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público.

[...]

c) Os ‘prestadores de serviços' são qualquer pessoa singular ou colectiva, incluindo organismos de direito público, que ofereçam serviços. O prestador de serviços que apresenta uma proposta é designado pelo termo ‘proponente'; aquele que solicitou um convite para participar num concurso limitado ou num procedimento por negociação é designado pelo termo candidato [...]»

3. Nos termos do artigo 11.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 92/50:

«As entidades adjudicantes podem celebrar contratos públicos de serviços recorrendo a um procedimento por negociação, sem publicação prévia de um anúncio, nos seguintes casos:

[...]

b) Quando, por motivos técnicos ou artísticos, ou ainda atinentes à protecção de direitos exclusivos, os serviços apenas possam ser executados por um prestador de serviços determinado.»

       Factos na origem da acção e procedimento pré‑contencioso

4. Quatro Landkreise da Baixa Saxónia, concretamente os de Rotenburg (Wümme), Harburg, Soltau‑Fallingbostel e Stade, celebraram, em 18 de Dezembro de 1995, com os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, um contrato relativo à eliminação dos seus resíduos na nova instalação de valorização térmica de Rugenberger Damm, com uma capacidade de 320 000 toneladas, destinada a, ao mesmo tempo, produzir electricidade e calor e cuja construção deveria ficar terminada em 15 de Abril de 1999.

5. Mediante este contrato, os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo reservam uma capacidade de 120 000 toneladas para os quatro Landkreise em causa, por um preço calculado de acordo com a mesma fórmula para cada uma das partes em causa. Este preço é pago à exploradora da instalação, co‑contratante dos Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, por intermédio desses serviços. A duração do contrato é de vinte anos. As partes acordaram em dar início às negociações, o mais tardar, cinco anos antes do termo do contrato, para decidir da sua prorrogação.

6. O contrato em causa foi celebrado directamente entre os quatro Landkreise e os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, sem recorrer ao processo de concurso previsto na Directiva 92/50.

7. Por notificação para cumprir enviada em 30 de Março de 2004, nos termos do artigo 226.°, primeiro parágrafo CE, a Comissão chamou a atenção das autoridades alemãs para o facto de que, ao celebrar directamente um contrato relativo à eliminação de resíduos, sem recorrer a um processo de concurso nem a uma adjudicação a nível europeu, a República Federal da Alemanha tinha violado as disposições conjugadas do artigo 8.° e dos títulos III a VI da Directiva 92/50.

8. Por ofício de 30 de Junho de 2004 enviado à Comissão, a República Federal da Alemanha alega que o contrato em causa era o resultado de um acordo sobre a execução conjunta de uma missão de serviço público que incumbia aos Landkreise em questão e à cidade de Hamburgo. Este Estado‑Membro explicou que a operação de cooperação municipal em causa, tendo por objecto uma actividade que se processava na esfera estatal, não afectava o concurso e, portanto, não estava abrangida pelo direito dos contratos públicos.

9. Considerando, não obstante estas explicações, que os Landkreise em questão eram entidades adjudicantes públicas, que o contrato relativo à eliminação dos resíduos era um contrato de serviços a título oneroso, celebrado por escrito, que ultrapassava o limiar fixado para a aplicação da Directiva 92/50 e que, por conseguinte, estava abrangido pelo âmbito de aplicação desta directiva, a Comissão enviou, em 22 de Dezembro de 2004, um parecer fundamentado à República Federal da Alemanha, nos termos do artigo 226.°, primeiro parágrafo, CE.

10. Por ofício de 25 de Abril de 2005, a República Federal da Alemanha reiterou a argumentação invocada anteriormente.

11. Considerando que estes argumentos não permitiam refutar as acusações formuladas no parecer fundamentado, a Comissão decidiu, nos termos do artigo 226.°, segundo parágrafo, CE, intentar a presente acção.

       Quanto à acção

       Argumentos das partes

12. A Comissão alega, em primeiro lugar, que os Landkreise em questão devem ser considerados entidades adjudicantes, na acepção da Directiva 92/50, e que o contrato em causa é um contrato celebrado a título oneroso, por escrito, que ultrapassa o limiar fixado para a aplicação desta directiva. Além disso, a eliminação dos resíduos é uma actividade qualificada de «serviços», na acepção da categoria 16 que figura no anexo I A da referida directiva.

13. Por seu turno, a República Federal da Alemanha considera que o contrato em causa é o resultado de uma operação interna da administração e que, por conseguinte, não está abrangido pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50.

14. Segundo este Estado‑Membro, deve considerar‑se que os co‑contratantes em causa prestam uma assistência administrativa mútua no cumprimento de uma missão de serviço público. Neste sentido, os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo poderiam ser considerados não como um prestador de serviços que actua mediante o pagamento de uma remuneração, mas como um organismo de direito público responsável pela eliminação dos resíduos, prestando uma assistência administrativa a autarquias limítrofes contra o reembolso dos seus custos de funcionamento.

15. A este propósito, o Reino dos Países Baixos, como a República Federal da Alemanha, baseia‑se nos n.ºs 16 e 17 do acórdão de 3 de Outubro de 2000, University of Cambridge (C‑380/98, Colect., p. I‑8035), para daí deduzir que o conceito de «prestação de serviços» deve ser interpretado no sentido de visar exclusivamente as prestações de serviços que podem ser oferecidas no mercado pelos operadores, em determinadas condições específicas.

16. Ora, o conteúdo do contrato em causa ultrapassa, segundo estes dois Estados‑Membros, o previsto num «contrato de prestação de serviços», na acepção da Directiva 92/50, uma vez que impõe que os Landkreise em causa, como contrapartida do tratamento dos resíduos na instalação de Rugenberger Damm, ponham à disposição dos Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, a uma tarifa acordada, a capacidade de aterros que os próprios Landkreise não utilizam, a fim de colmatar a falta de capacidade de aterros a que a cidade de Hamburgo deve fazer face.

17. A República Federal da Alemanha sublinha também que esta relação jurídica é qualificada, no preâmbulo do referido contrato, de «acordo de cooperação regional com vista à eliminação de resíduos». Este acordo permite estabelecer uma cooperação entre as partes contratantes, que, em caso de necessidade, prestariam assistência mútua no âmbito da execução da sua obrigação legal de eliminação dos resíduos e que, por este facto, cumprem esta missão colectiva na região em causa. Assim, está previsto que, em determinadas circunstâncias, os Landkreise em causa se comprometem a reduzir, durante um determinado período de tempo, a quantidade de resíduos entregues, no caso de mau funcionamento da instalação de tratamento. Aceitam, assim, restringir o seu direito à execução do contrato.

18. Segundo a Comissão, os serviços prestados no caso presente não podem ser considerados como constituindo uma assistência administrativa, na medida em que os serviços de limpeza exercem as suas actividades não por força de uma lei ou de outros actos unilaterais mas com base num contrato.

19. A Comissão acrescenta que as únicas excepções permitidas na aplicação das directivas sobre o direito dos contratos públicos são as que nelas estão expressa e taxativamente previstas [v. acórdão de 18 de Novembro de 1999, Teckal, C‑107/98, Colect., p. I‑8121, n.° 43, a propósito da Directiva 93/36/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento (JO L 199, p. 1)]. No entender da Comissão, no acórdão de 13 de Janeiro de 2005, Comissão/Espanha (C‑84/03, Colect., p. I‑139, n.ºs 38 a 40), o Tribunal de Justiça confirmou que os contratos de cooperação horizontal celebrados pelas autarquias locais, como o presente contrato, estão sujeitos ao direito dos contratos públicos.

20. A República Federal da Alemanha contesta esta interpretação do acórdão Comissão/Espanha, já referido, considerando que, no processo que lhe deu origem, o Tribunal de Justiça não decidiu expressamente que todos os acordos celebrados entre os organismos administrativos eram abrangidos pelo direito dos contratos públicos, mas censurou unicamente o Reino de Espanha pela exclusão geral dos acordos celebrados entre organismos de direito público do âmbito de aplicação desse direito.

21. A Comissão não aceita, em segundo lugar, que a República Federal da Alemanha possa invocar a excepção «in house», de acordo com a qual não entram no âmbito de aplicação das directivas em matéria de adjudicação de contratos públicos os contratos celebrados por uma entidade adjudicante, quando, por um lado, a entidade pública exerce sobre o seu co‑contratante, pessoa juridicamente distinta dela, um controlo análogo ao que exerce sobre os seus serviços, e na medida em que, por outro lado, esta pessoa realize o essencial da sua actividade com a entidade pública (v., neste sentido, acórdão Teckal, já referido, n.ºs 49 e 50). No entender da Comissão, o requisito relativo à existência de tal controlo não está preenchido no caso concreto, porque nenhuma das entidades adjudicantes em causa tem poder sobre a gestão dos Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo.

22. A República Federal da Alemanha considera, pelo contrário, que, no âmbito da região metropolitana de Hamburgo, a exigência relativa à intensidade do controlo exercido, que deve ser medida à luz do interesse público (v., neste sentido, acórdão de 11 de Janeiro de 2005, Stadt Halle e RPL Lochau, C‑26/03, Colect., p. I‑1, n.° 50), está cumprida, uma vez que os administradores em causa exercem um controlo recíproco. Uma divergência relativamente aos objectivos definidos em comum poria fim à cooperação na sua totalidade. Ora, o princípio «dar e receber» implica que os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, como os Landkreise em causa, têm interesse em manter essa cooperação e, por conseguinte, em cumprir os objectivos definidos conjuntamente.

23. Baseando‑se no acórdão de 19 de Abril de 2007, Asemfo (C‑295/05, Colect., p. I‑2999), o Reino dos Países Baixos entende que o requisito relativo à intensidade do controlo exercido pode ser preenchido mesmo que o controlo que a entidade pública em causa exerce seja mais limitado do que o exercido sobre os seus próprios serviços. Não considera que este requisito implique um controlo idêntico. Na sua opinião, apenas é exigido um controlo semelhante.

24. No entender da Comissão, esse acórdão não tem por efeito mitigar a jurisprudência resultante do acórdão Teckal, já referido. Especifica unicamente que o critério relativo à intensidade do controlo exercido pode também ser preenchido quando um quadro jurídico específico estabelece uma relação de dependência e de subordinação que permite o exercício de um controlo análogo por várias entidades adjudicantes, o que não se verifica no caso presente.

25. Em terceiro lugar, a Comissão considera que a República Federal da Alemanha não provou que, por razões técnicas, apenas os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo estavam em condições de celebrar o contrato em causa e, por conseguinte, que podia invocar a derrogação prevista no artigo 11.°, n.° 3, alínea b), da Directiva 92/50.

26. A República Federal da Alemanha alega que, se tivesse sido realizado um concurso público, os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo não estariam necessariamente em condições de concorrer, porque, em 1994, esta cidade não tinha uma capacidade de valorização dos resíduos que a incitasse a participar nesse concurso. Foi apenas atendendo à necessidade de os Landkreise em causa valorizarem os seus resíduos, necessidade conhecida posteriormente, e à garantia de que utilizariam uma futura central que foi perspectivada a construção da instalação de Rugenberger Damm.

27. Este Estado‑Membro sublinha também que os referidos Landkreise tinham a garantia da entrada em funcionamento, num prazo previsível, da instalação projectada pelos Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, garantia que nenhum outro proponente poderia oferecer.

28. Em quarto lugar, a Comissão rejeita a argumentação da República Federal da Alemanha, de acordo com a qual a Directiva 92/50 não deve ser aplicada, por força do artigo 86.°, n.° 2, CE, quando, como no caso presente, impeça a realização, pelos organismos públicos, da missão de eliminação dos resíduos que lhes foi cometida.

29. A República Federal da Alemanha considera, com efeito, que a interpretação da Directiva 92/50 feita pela Comissão levaria, por um lado, a que os Landkreise em causa não pudessem encarregar os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo da eliminação dos resíduos, que constitui uma missão de interesse geral a nível comunitário, e se vissem forçados a confiar essa missão ao operador que fizesse a proposta economicamente mais vantajosa, sem nenhuma garantia de que o serviço público fosse executado de modo satisfatório e permanente, e, por outro lado, a que as capacidades da nova central não fossem utilizadas de modo rentável.

30. Este Estado‑Membro lembra que, sem a celebração do contrato controvertido, nenhuma das partes estaria em condições de desempenhar a sua missão pública. A cidade de Hamburgo, designadamente, não teria podido proceder à construção de uma instalação dotada de sobrecapacidade, para, em seguida, tentar, sem nenhuma garantia de resultado, vender no mercado, por razões económicas, as capacidades não utilizadas.

       Apreciação do Tribunal de Justiça

31. Importa recordar, a título preliminar, que a acção da Comissão tem por objecto o único contrato celebrado entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e quatro Landkreise limítrofes, destinado a assegurar o tratamento conjunto dos respectivos resíduos, e não o contrato pelo qual devem ser fixadas as relações entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e o explorador da instalação de tratamento dos resíduos de Rugenberger Damm.

32. Nos termos do artigo 1.°, alínea a), da Directiva 92/50, os contratos públicos de serviços são contratos a título oneroso celebrados por escrito entre um prestador de serviços e uma das entidades adjudicantes mencionadas no artigo 1.°, alínea b), desta directiva, entre as quais figuram as autarquias locais, como os Landkreise em causa na presente acção por incumprimento.

33. Nos termos do artigo 1.°, alínea c), desta mesma directiva, o co‑contratante prestador de serviços pode ser «qualquer pessoa singular ou colectiva, incluindo organismos de direito público». Assim, a circunstância de o prestador de serviços ser uma entidade pública diferente do beneficiário dos serviços não obsta à aplicação da Directiva 92/50 (v., neste sentido, acórdão Comissão/Espanha, já referido, n.° 40, a propósito dos contratos públicos de fornecimento e de empreitadas de obras públicas).

34. Resulta, todavia, da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o concurso não é obrigatório, no caso de a autoridade pública, que é uma entidade adjudicante, exercer sobre a entidade distinta em causa um controlo análogo ao que exerce sobre os seus próprios serviços, desde que essa entidade realize o essencial da sua actividade com ela ou com outras autarquias locais que a detêm (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Teckal, n.° 50, e Stadt Halle e RPL Lochau, n.° 49).

35. Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça decidiu, quanto à atribuição, por um município, de uma delegação de serviço público a uma sociedade cooperativa intermunicipal, cujo objecto é exclusivamente prestar serviços aos municípios associados, que esta podia igualmente ocorrer sem haver concurso público, porque considerou que, apesar dos aspectos autónomos de gestão desta cooperativa pelo seu conselho de administração, os municípios associados deviam ser considerados como exercendo conjuntamente o controlo (v., neste sentido, acórdão de 13 de Novembro de 2008, Coditel Brabant, C‑324/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 41).

36. Todavia, é pacífico, no caso presente, que os quatro Landkreise em causa não exercem controlo algum que possa ser qualificado de análogo ao que exercem sobre os seus próprios serviços, seja sobre o seu co‑contratante, concretamente, os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, seja sobre o explorador da instalação térmica de Rugenberger Damm, que é uma sociedade cujo capital é constituído parcialmente por fundos privados.

37. No entanto, há que realçar que o contrato controvertido cria uma cooperação entre autarquias locais, que tem por objectivo assegurar a realização de uma missão de serviço público comum, a saber, a eliminação de resíduos. Há que recordar que esta missão está ligada à aplicação da Directiva 75/442/CEE do Conselho, de 15 de Julho de 1975, relativa aos resíduos (JO L 194, p. 39; EE 15 F1 p. 129), que obriga os Estados‑Membros a estabelecerem planos de gestão dos resíduos, prevendo, especialmente, «as medidas susceptíveis de incentivar a racionalização da recolha, da triagem e do tratamento dos resíduos», sendo uma das medidas mais importantes, por força do artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 91/156/CEE do Conselho, de 18 de Março de 1991, que altera a Directiva 75/442 (JO L 78, p. 32), o tratamento dos resíduos numa instalação o mais próxima possível.

38. Além disso, é indiscutível que o contrato celebrado entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e os Landkreise em causa deve ser analisado como o culminar de um processo de cooperação intermunicipal entre as partes no contrato e que este implica exigências idóneas para assegurar a missão de eliminação dos resíduos. Com efeito, tem por objectivo permitir à cidade de Hamburgo construir e explorar uma instalação de tratamento de resíduos, nas condições económicas mais vantajosas, graças à entrega de resíduos dos Landkreise limítrofes, o que permite atingir uma capacidade de 320 000 toneladas. Por esta razão, a construção desta instalação apenas foi decidida e realizada depois do acordo dos quatro Landkreise em causa, de utilizar a central, e do seu compromisso nesse sentido.

39. O objecto deste contrato, como é expressamente indicado nas primeiras cláusulas, consiste principalmente no compromisso de os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo porem à disposição dos quatro Landkreise em causa, anualmente, uma capacidade de tratamento de 120 000 toneladas de resíduos, com vista à sua valorização térmica na instalação de Rugenberger Damm. Como foi seguidamente especificado no contrato, os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo não assumem de maneira nenhuma a responsabilidade da exploração desta instalação e não oferecem garantias a este propósito. No caso de paragem ou de mau funcionamento da instalação, as suas obrigações limitam‑se a oferecer capacidades de substituição, sendo no entanto esta obrigação condicionada a dois aspectos. Por um lado, a eliminação dos resíduos da cidade de Hamburgo deve ser assegurada prioritariamente e, por outro, deve haver disponibilidade de capacidade noutras instalações às quais os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo têm acesso.

40. Como contrapartida do tratamento dos seus resíduos na instalação de Rugenberger Damm, tal como foi descrito no número anterior do presente acórdão, os quatro Landkreise em causa pagam, aos Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, uma remuneração anual cujo modo de cálculo e as modalidades de pagamento estão previstos no contrato. As capacidades de entrega e de tratamento dos resíduos são aprovadas, semanalmente, entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e um interlocutor designado por esses Landkreise. Além disso, decorre do contrato que os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo, que dispõem, relativamente ao explorador da referida instalação, de um direito ao pagamento de uma indemnização, se comprometem, no caso de os referidos Landkreise terem sofrido um prejuízo, a defender os interesses destes últimos face ao explorador, incluindo, eventualmente, pela via judicial.

41. O contrato em causa prevê também determinados compromissos das autarquias locais contratantes, directamente relacionados com o objectivo de serviço público. Com efeito, embora a cidade de Hamburgo assuma a maior parte dos serviços que são objecto do contrato celebrado entre ela e os quatro Landkreise em causa, estes ponham à disposição dos serviços de limpeza da cidade a capacidade de aterros que não utilizam, a fim de colmatar a falta de capacidade de aterros da cidade de Hamburgo. Comprometem‑se também a aceitar nos seus aterros as quantidades de escórias de incineração não valorizáveis proporcionalmente às quantidades de resíduos que entregaram.

42. Além disso, nos termos do contrato, as partes contratantes devem, em caso de necessidade, prestar assistência no quadro da execução da sua obrigação legal de eliminação dos resíduos. Está designadamente previsto que, em determinadas circunstâncias, como a sobrecarga pontual da instalação em causa, os quatro Landkreise em causa se comprometem a reduzir a quantidade de resíduos entregues e aceitam assim restringir o seu direito de acesso à instalação de incineração.

43. Por último, o fornecimento de serviços de eliminação de resíduos dá lugar ao pagamento de um preço, unicamente, ao explorador da instalação. Em contrapartida, resulta das cláusulas do contrato em causa que a cooperação que este último estabelece entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e os quatro Landkreise em causa apenas dá lugar, entre estas entidades, aos movimentos financeiros que correspondem ao reembolso da parte dos encargos que incumbem aos referidos Landkreise, mas paga ao explorador pelos serviços de limpeza.

44. Assim, afigura‑se que o contrato controvertido constitui quer o fundamento quer o quadro jurídico para a construção e a exploração futuras de uma instalação destinada a prestar um serviço público, concretamente, a valorização térmica dos resíduos. O referido contrato apenas foi celebrado por autoridades públicas, sem a participação de privados, e não prevê nem considera a adjudicação dos contratos eventualmente necessários para a construção e a exploração da instalação de tratamento de resíduos.

45. Ora, o Tribunal de Justiça recordou que uma autoridade pública pode desempenhar as missões de interesse público que lhe incumbem, através dos seus próprios meios, sem ser obrigada a recorrer a entidades externas que não pertençam aos seus serviços, e que pode fazê‑lo em colaboração com outras autoridades públicas (v. acórdão Coditel Brabant, já referido, n.ºs 48 e 49).

46. Aliás, a Comissão esclareceu na audiência que, embora a cooperação em causa se tenha traduzido na criação de um organismo de direito público a quem as diferentes autarquias envolvidas encarregaram de desempenhar a missão de interesse geral de eliminação de resíduos, admitiu que a utilização da central pelos Landkreise em causa não estava abrangida pela regulamentação relativa aos contratos públicos. Entende no entanto que, não existindo esse organismo de cooperação intermunicipal, o contrato de prestação de serviços celebrado entre os Serviços de Limpeza da Cidade de Hamburgo e os Landkreise em causa deveria ter sido objecto de concurso público.

47. Todavia, há que, por um lado, realçar que o direito comunitário de maneira nenhuma impõe às autoridades públicas, para assegurar conjuntamente as suas missões de serviço público, que recorram a uma forma jurídica especial. Por outro, essa colaboração entre as autoridades públicas não pode pôr em causa o objectivo principal das disposições comunitárias em matéria de contratos públicos, isto é, a livre circulação de serviços e a abertura à concorrência não falseada em todos os Estados‑Membros, desde que a realização desta cooperação seja regida unicamente por considerações e exigências próprias à prossecução de objectivos de interesse público e que o princípio da igualdade de tratamento dos interessados consagrado na Directiva 92/50 seja garantido, de modo que nenhuma empresa privada seja colocada numa situação privilegiada relativamente aos seus concorrentes (v., neste sentido, acórdão Stadt Halle e RPL Lochau, já referido, n.ºs 50 e 51).

48. Além disso, cabe concluir que não resulta de nenhum dos elementos dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, no presente processo, as autarquias em causa se tenham servido de um expediente destinado a eludir as regras em matéria de contratos públicos.

49. Visto todos estes elementos, e sem que seja necessário decidir sobre os outros fundamentos de defesa apresentados pela República Federal da Alemanha, há que julgar improcedente a acção da Comissão.

       Quanto às despesas

50. Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Federal da Alemanha pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená‑la nas despesas.

       Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) decide:

       1) A acção é julgada improcedente.

       2) A Comissão das Comunidades Europeias é condenada nas despesas.

 

Assinaturas

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(*) Língua do processo: alemão.