Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 23 de Dezembro de 2009 (proc. C-376/08)

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Processo C-376/08

Serrantoni Srl
e
Consorzio stabile edili Scrl
contra
Comune di Milano

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia)

 

«Empreitadas de obras públicas - Directiva 2004/18/CE - Artigos 43.° CE e 49.° CE - Princípio da igualdade de tratamento - Consórcios de empresas - Proibição de participação no mesmo concurso, como concorrentes, de um ‘consorzio stabile' (‘consórcio estável') e de uma sociedade que faz parte deste»

 

Sumário do acórdão:

O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, a qual, no procedimento de adjudicação de um contrato público cujo montante não atinge o limiar previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, mas que reveste um interesse transfronteiriço certo, prevê a exclusão automática da participação nesse procedimento e a aplicação de sanções penais tanto a um consórcio estável, na acepção da legislação nacional, como às empresas que sejam membros deste, quando estas últimas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do mesmo procedimento, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas.

Com efeito, tal medida de exclusão automática, que respeita unicamente à figura do consórcio estável e à das empresas que dele sejam membros e é aplicável aos casos de propostas concorrentes, independentemente da questão de saber se o consórcio em causa participa ou não no concurso público por conta e no interesse das empresas que apresentaram uma proposta, constitui um tratamento discriminatório em detrimento deste tipo de consórcio e, por conseguinte, não respeita o princípio da igualdade.

Para mais, uma regra de exclusão sistemática, que comporta igualmente, para as entidades adjudicantes, uma obrigação absoluta de exclusão das entidades em causa, ainda que as relações existentes entre estas não tenham nenhuma incidência no seu comportamento no âmbito dos procedimentos nos quais participaram, contraria o interesse comunitário segundo o qual deve ser assegurada a maior participação possível de proponentes num concurso e excede o necessário para atingir o objectivo que consiste em assegurar a aplicação dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência. Tal regra não é assim compatível com o princípio da proporcionalidade.

Por outro lado, os artigos 43.° CE e 49.° CE opõem‑se a qualquer medida nacional que, ainda que se aplique sem discriminação em razão da nacionalidade, seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivo o exercício, por parte dos cidadãos comunitários, da liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços garantida por estas disposições do Tratado. A este respeito, uma regra nacional que prevê uma medida de exclusão automática em detrimento dos consórcios estáveis e das empresas membros destes é susceptível de exercer uma influência dissuasiva nos operadores económicos estabelecidos noutros Estados‑Membros, ou seja, por um lado, os operadores que pretendam estabelecer‑se no Estado‑Membro em causa, através da criação de um consórcio estável, eventualmente constituído por empresas nacionais e estrangeiras, e, por outro, os que pretendam aderir a tais consórcios já constituídos, para terem facilitada a sua participação em procedimentos de concursos públicos lançados por entidades adjudicantes desse Estado‑Membro e poderem, assim, oferecer mais facilmente os seus serviços. Semelhante restrição na acepção dos artigos 43.° CE e 49.° CE não pode ser justificada, independentemente do seu objectivo legítimo de luta contra os potenciais conluios entre o consórcio em causa e as empresas que o compõem, porquanto excede o necessário para atingir esse objectivo.

(cf. n.os 37‑38, 40-42, 45‑ 46 e disp.)

 

Texto integral: 

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

23 de Dezembro de 2009 (*)

No processo C‑376/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia (Itália), por decisão de 2 de Abril de 2008, entrada no Tribunal de Justiça em 18 de Agosto de 2008, no processo

Serrantoni Srl,
Consorzio stabile edili Scrl
contra
Comune di Milano,
sendo intervenientes:
Bora Srl Construzioni edili,
Unione consorzi stabili Italia (UCSI),
Associazione nazionale imprese edili (ANIEM),

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente da Terceira Secção, exercendo funções de presidente da Quarta Secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász (relator), G. Arestis e T. von Danwitz, juízes,

advogada‑geral: J. Kokott,

secretário: R. Grass,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:
─ em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por C. Zadra e D. Recchia, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvida a advogada‑geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1. O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 4.° da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços (JO L 134, p. 114), dos artigos 39.° CE, 43.° CE, 49.° CE e 81.° CE e dos princípios gerais da igualdade de tratamento e da proporcionalidade.

2. Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a sociedade de construção Serrantoni Srl (a seguir «Serrantoni») à Comune di Milano (município de Milão), a respeito da decisão deste último de excluir a Serrantoni da participação no processo de adjudicação de um contrato de empreitada de obras públicas.

       Quadro jurídico

       Regulamentação comunitária

3. O segundo considerando da Directiva 2004/18 enuncia:

«[...] A adjudicação de contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros organismos de direito público deve respeitar os princípios do Tratado [CE], nomeadamente os princípios da livre circulação de mercadorias, da liberdade de estabelecimento e da livre prestação de serviços, assim como os princípios deles resultantes, tais como os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação, do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da transparência. Todavia, no que se refere aos contratos públicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhável estabelecer disposições que instituam uma coordenação comunitária dos procedimentos nacionais para a adjudicação dos contratos públicos que se baseiem nesses princípios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura à concorrência dos contratos públicos. Por conseguinte, tais disposições de coordenação devem ser interpretadas em conformidade com as regras e princípios atrás referidos, bem como com as restantes regras do Tratado.»

4. Nos termos do artigo 2.° desta directiva:

«As entidades adjudicantes tratam os operadores económicos de acordo com os princípios da igualdade de tratamento e da não discriminação e agem de forma transparente.»

5. O artigo 4.° da referida directiva, sob o título «Operadores económicos», dispõe:

«1. Os candidatos ou proponentes que, por força da legislação do Estado‑Membro em que se encontram estabelecidos, estejam habilitados a fornecer a prestação em questão não podem ser rejeitados pelo simples facto de, ao abrigo da legislação do Estado‑Membro em que se efectua a adjudicação, serem uma pessoa singular ou uma pessoa colectiva.

[...]

2. Os agrupamentos de operadores económicos podem apresentar propostas ou constituir‑se candidatos. Para efeitos de apresentação da proposta ou do pedido de participação, as entidades adjudicantes não podem exigir que os agrupamentos de operadores económicos adoptem uma forma jurídica determinada, mas o agrupamento seleccionado pode ser obrigado a adoptar uma forma jurídica determinada uma vez que lhe seja adjudicado o contrato, na medida em que tal seja necessário para a boa execução do mesmo.»

6. Em conformidade com o disposto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18, na sua versão em vigor à data dos factos do processo principal, na sequência da adaptação introduzida pelo Regulamento (CE) n.° 2083/2005 da Comissão, de 19 de Dezembro de 2005, que altera as Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativamente aos limiares de valor aplicáveis nos processos de adjudicação dos contratos públicos (JO L 333, p. 28), a Directiva 2004/18 é aplicável aos contratos de empreitadas de obras públicas cujo valor estimado, sem imposto sobre o valor acrescentado, seja igual ou superior a 5 278 000 euros.

7. O artigo 45.° desta directiva, intitulado «Situação pessoal do candidato ou do proponente», prevê, no seu n.° 2:

«Pode ser excluído do procedimento de contratação [qualquer operador económico que]:

a) Se encontre em situação de falência, de liquidação, ou de cessação de actividade, ou se encontre sujeito a qualquer meio preventivo da liquidação de patrimónios ou em qualquer situação análoga resultante de um processo da mesma natureza nos termos da legislação e regulamentação nacionais;

b) Tenha pendente processo de declaração de falência, de liquidação, de aplicação de qualquer meio preventivo da liquidação de patrimónios ou qualquer outro processo da mesma natureza nos termos da legislação e regulamentação nacionais;

c) Tenha sido condenado por sentença com força de caso julgado nos termos da lei do país, por delito que afecte a sua honorabilidade profissional;

d) Tenha cometido falta grave em matéria profissional, comprovada por qualquer meio que as entidades adjudicantes possam evocar;

e) Não tenha cumprido as suas obrigações relativamente ao pagamento de impostos e contribuições, de acordo com as disposições legais do país onde se encontra estabelecido ou do país da entidade adjudicante;

f) Não tenha cumprido as suas obrigações relativamente ao pagamento de impostos e contribuições, de acordo com as disposições legais do país onde se encontra estabelecido ou do país da entidade adjudicante;

g) Tenha prestado, com culpa grave, falsas declarações ao fornecer as informações que possam ser exigidas nos termos da presente secção ou não tenha prestado essas informações.

Em conformidade com a sua legislação nacional e na observância do direito comunitário, os Estados‑Membros especificarão as condições de aplicação do presente número.»

       Legislação nacional

8. O Decreto legislativo n.° 163, que aprovou o Código das Empreitadas de Obras Públicas, dos Contratos Públicos de Serviços e dos Contratos Públicos de Fornecimentos, em Aplicação das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE (Codice dei contratti pubblici relativi a lavori, servizi e forniture in attuazione delle direttive 2004/17/CE e 2004/18/CE), de 12 de Abril de 2006 (suplemento ordinário do GURI n.° 100, de 2 de Maio de 2006, a seguir «Decreto legislativo n.° 163/2006»), regulamenta, em Itália, no seu todo, os procedimentos de adjudicação dos contratos públicos nos sectores das empreitadas de obras públicas, dos serviços e dos fornecimentos. O artigo 34.° deste decreto legislativo, conforme alterado pelo Decreto legislativo n.° 113, de 31 de Julho de 2007, intitulado «Pessoas às quais os contratos públicos podem ser adjudicados», prevê, no seu n.° 1:

«1. Sem prejuízo das restrições expressamente previstas, podem participar nos processos de adjudicação de contratos públicos:

[...]

b) Consórcios entre cooperativas de produção e cooperativas de trabalho [...] e [...] consórcios entre empresas de artesãos [...];

c) Consórcios com carácter estável, constituídos sob a forma de agrupamentos de consórcios [...], entre empresários em nome individual (incluindo artesãos), sociedades comerciais ou cooperativas de produção e cooperativas de trabalho, em conformidade com o disposto no artigo 36.°;

[...]

f) Sujeitos que tenham constituído um agrupamento europeu de interesse económico [AEIE] [...];

fbis) Operadores económicos [...] estabelecidos noutros Estados‑Membros, cuja constituição tenha sido efectuada nos termos da legislação em vigor no Estado em causa.»

9. Nos termos do artigo 36.°, n.° 1, do Decreto legislativo n.° 163/2006:

«Entende‑se por ‘consórcios estáveis' (‘consorzi stabili') os consórcios [...] que, por meio de decisão adoptada pelos seus respectivos órgãos directivos, tenham acordado participar em conjunto em contratos de empreitadas de obras públicas, em contratos públicos de serviços ou em contratos públicos de fornecimentos, por um período não inferior a cinco anos, criando, para esse efeito, uma estrutura de empresa comum.»

10. O artigo 36.°, n.° 5, do Decreto legislativo n.° 163/2006, na versão em vigor à data dos factos no processo principal, dispunha:

«[...] é proibida a participação, no mesmo procedimento de adjudicação, do consórcio estável e das empresas membros desse consórcio; em caso de inobservância desta proibição, é aplicável o artigo 353.° do Código Penal [...]»

11. O artigo 37.°, n.° 7, do referido decreto legislativo, na versão em vigor à data dos factos do processo principal, preceituava:

«[...] Os consórcios previstos no artigo 34.°, n.° 1, alínea b), são obrigados a indicar, na proposta, as empresas membros do consórcio no interesse das quais concorrem: estas últimas ficam proibidas de participar, por qualquer outra forma, no mesmo concurso público; em caso de violação, são excluídos do concurso tanto o consórcio como a empresa membro do consórcio; em caso de inobservância desta proibição, é aplicável o artigo 353.° do Código Penal [...]»

12. Em conformidade com o disposto no artigo 353.° do Código Penal, a não observância da proibição acima referida é punida com pena de prisão até dois anos e, em determinadas circunstâncias, até cinco anos, e com a aplicação de uma multa.

       Litígio no processo principal e questões prejudiciais

13. A Comune di Milano lançou, em 2007, um concurso público para a adjudicação de uma empreitada de obras públicas relativa a «intervenções de emergência e [à] racionalização dos escritórios anexos do Registo Civil, lote V». Em 27 de Setembro de 2007, a Comune di Milano decidiu excluir do procedimento de adjudicação do contrato a Serrantoni, sociedade membro do consórcio estável Consorzio stabile edili Scrl, e este agrupamento, por violação do artigo 36.°, n.° 5, do Decreto legislativo n.° 163/2006. A Comune di Milano ordenou igualmente, com base nesta disposição, a transmissão dos factos à Procuradoria da República, para efeitos da aplicação do artigo 353.° do Código Penal, e adjudicou o contrato a outra empresa.

14. A Serrantoni e o consórcio estável ao qual pertence interpuseram recurso desta decisão da entidade adjudicante para o órgão jurisdicional de reenvio, tendo alegado que o artigo 36.°, n.° 5, do Decreto legislativo n.° 163/2006 é incompatível com o artigo 4.° da Directiva 2004/18, com os artigos 39.° CE, 43.° CE, 49.° CE e 81.° CE e com o princípio da não discriminação.

15. O órgão jurisdicional de reenvio sublinha, em primeiro lugar, que a legislação nacional em causa no processo principal efectua uma distinção entre os consórcios estáveis, por um lado, e os consórcios de cooperativas de produção e de trabalho e os consórcios de empresas artesanais, por outro. No que se refere aos primeiros, existe uma proibição absoluta, para o consórcio e para as sociedades que dele fazem parte, de participar simultaneamente no mesmo concurso através da apresentação de propostas separadas, sob pena de exclusão automática destes e da aplicação de sanções penais. Relativamente aos segundos, esta proibição aplica‑se apenas ao consórcio e à sociedade no interesse da qual esse consórcio apresentou uma proposta no âmbito do concurso em causa. Este órgão jurisdicional observa que, no processo principal, o consórcio estável em causa não participou no concurso público no interesse da Serrantoni.

16. O órgão jurisdicional de reenvio salienta, em seguida, que os diferentes tipos de consórcios acima referidos não apresentam entre si diferenças de finalidade e de organização, susceptíveis de justificar semelhante desigualdade de tratamento. Estes tipos de agrupamentos caracterizam‑se pela existência de uma estrutura comum, para criar uma cooperação entre as empresas membros, destinada a reduzir os custos de gestão, a optimizar os resultados económicos de cada uma delas e a aumentar a competitividade nos concursos públicos. O órgão jurisdicional de reenvio questiona, assim, se essa diferença de tratamento é compatível com o princípio da não discriminação e com a exigência comunitária segundo a qual há que garantir a maior participação possível nos procedimentos de concursos públicos.

17. O órgão jurisdicional de reenvio pergunta igualmente se esta diferença de tratamento é compatível com o artigo 4.° da Directiva 2004/18, na medida em que a exclusão em causa se baseia apenas na forma jurídica da entidade em causa, enquanto consórcio estável, e com os artigos 39.° CE, 43.° CE, 49.° CE e 81.° CE. Esta discriminação reveste, para mais, uma especial importância, por o instituto dos consórcios ter sido amplamente consagrado nos ordenamentos jurídicos dos outros Estados‑Membros e por se encontrar sintetizado a nível comunitário nos agrupamentos europeus de interesse económico (AEIE).

18. Por último, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que a proibição absoluta em causa se baseia exclusivamente num elemento formal, a saber, na participação de uma sociedade num determinado tipo de consórcio. Com efeito, a legislação controvertida não impõe nenhuma apreciação concreta da influência recíproca exercida pelo consórcio e pela empresa membro, antes criando uma presunção abstracta de interferência recíproca. Assim, como salienta o referido órgão jurisdicional, esta proibição absoluta é aplicável mesmo quando o consórcio não participe no concurso no interesse da sociedade em causa, não recorra a esta para a execução do contrato e não tenha, portanto, chegado a acordo com esta sociedade para a apresentação da proposta. Consequentemente, o órgão jurisdicional de reenvio questiona se esta proibição absoluta se pode justificar por uma razão imperiosa de interesse geral, destinada a salvaguardar a regularidade dos procedimentos de adjudicação de contratos públicos, e se não excede amplamente a sua finalidade.

19. Tendo em conta estas considerações, o Tribunale amministrativo regionale per la Lombardia decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Obstam à correcta aplicação do artigo 4.° da Directiva 2004/18 [...] as disposições nacionais do artigo 36.°, n.° 5, do Decreto legislativo n.° 163/2006 [...], que prevêem:

─ quando uma empresa membro de um consórcio participa num concurso público, a exclusão automática do sujeito associado pelo simples facto de ter uma forma jurídica particular (a de consórcio estável) e não uma de outras formas jurídicas substancialmente idênticas (consórcio de cooperativas de produção e trabalho ou consórcio de empresas artesanais);

─ simultaneamente, quando um consórcio estável participa num concurso público e declara que concorre por conta de empresas diferentes e que atribuirá as obras a empresas diferentes se o contrato lhe for adjudicado, a exclusão automática de uma empresa pelo simples facto de ser membro desse consórcio?

2) Obstam à correcta aplicação dos artigos [39.° CE, 43.° CE, 49.° CE e 81.° CE] as disposições nacionais do artigo 36.°, n.° 5, do Decreto legislativo n.° 163/2006 [...], que prevêem:

─ quando uma empresa membro de um consórcio participa num concurso público, a exclusão automática do sujeito associado, pelo simples facto de ter uma forma jurídica particular (a de consórcio estável) e não uma de outras formas jurídicas substancialmente idênticas (consórcio de cooperativas de produção e trabalho ou consórcio de empresas artesanais);

─ simultaneamente, quando um consórcio estável participa num concurso público e declara que concorre por conta de empresas diferentes e que atribuirá as obras a empresas diferentes se o contrato lhe for adjudicado, a exclusão automática de uma empresa pelo simples facto de ser membro desse consórcio?»

       Quanto às questões prejudiciais

20. Há que referir, a título liminar, que, como resulta do processo submetido ao Tribunal de Justiça, o montante do contrato ao qual o procedimento de adjudicação controvertido se refere é manifestamente inferior ao limiar previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18. Por conseguinte, este contrato não é abrangido pelo âmbito de aplicação dos procedimentos previstos nessa directiva.

21. No entanto, importa sublinhar que o facto de o montante de um contrato não atingir o limiar previsto nas regras comunitárias não significa que, por esse motivo, esse contrato fique excluído do âmbito de aplicação do direito comunitário.

22. Com efeito, de acordo com jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, no âmbito da adjudicação de um contrato cujo montante não atinge o referido valor, devem ser respeitadas as regras fundamentais do Tratado e, em especial, o princípio da igualdade de tratamento. O elemento de distinção relativamente aos contratos cujo montante ultrapassa o limiar fixado nas disposições da Directiva 2004/18 consiste em só estes últimos estarem sujeitos aos procedimentos especiais e rigorosos previstos nessas disposições (v., neste sentido, acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2008, SECAP e Santorso, C‑147/06 e C‑148/06, Colect., p. I‑3565, n.ºs 19 e 20).

23. Esta interpretação é confirmada pelo segundo considerando da Directiva 2004/18, que enuncia que a adjudicação de todos os contratos celebrados nos Estados‑Membros por conta de entidades adjudicantes deve respeitar as regras de base do Tratado, nomeadamente as relativas à livre circulação de produtos e à livre prestação de serviços assim como o direito de estabelecimento, e os princípios fundamentais deles resultantes, designadamente, os da igualdade de tratamento, da proporcionalidade e da transparência.

24. Todavia, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a aplicação das regras fundamentais e dos princípios gerais do Tratado aos procedimentos de adjudicação dos contratos de montante inferior ao limiar de aplicação das disposições comunitárias pressupõe que os contratos em causa tenham um interesse transfronteiriço certo (acórdão SECAP e Santorso, já referido, n.° 21 e jurisprudência referida).

25. A este respeito, o Tribunal de Justiça já salientou que compete ao órgão jurisdicional de reenvio proceder a uma apreciação circunstanciada de todos os elementos relevantes referentes ao contrato em causa, para verificar se existe um interesse transfronteiriço certo (acórdão SECAP e Santorso, já referido, n.° 34). No presente caso, as respostas às questões colocadas partem do pressuposto, que, no entanto, o órgão jurisdicional de reenvio terá de verificar, de que o contrato em causa no processo principal reveste um interesse transfronteiriço certo.

       Quanto à primeira questão

26. Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 4.° da Directiva 2004/18 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que prevê a exclusão automática da participação num procedimento de adjudicação de um concurso público e a aplicação de sanções penais tanto a um consórcio estável como às empresas que dele sejam membros, quando estas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do procedimento em causa, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas.

27. A este respeito, como recordado no n.° 20 do presente acórdão, o contrato em causa no processo principal não é abrangido pelo âmbito de aplicação dos procedimentos previstos nessa directiva, porquanto o seu montante é inferior ao limiar previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18.

28. Por conseguinte, não há que responder à questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio.

       Quanto à segunda questão

29. Com esta questão, considerada à luz do pedido de decisão prejudicial visto no seu todo, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se os princípios gerais da igualdade de tratamento e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 43.° CE e 49.° CE e nos artigos 39.° CE e 81.° CE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, a qual prevê a exclusão automática da participação num procedimento de adjudicação de um concurso público e a aplicação de sanções penais tanto contra um consórcio estável como contra as empresas membros deste, quando estas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do mesmo procedimento, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas.

30. No que respeita aos artigos do Tratado para os quais remete o órgão jurisdicional de reenvio, há que referir, desde logo, que a situação de exclusão em causa no processo principal não apresenta relação alguma com a livre circulação de trabalhadores nem com os acordos entre empresas e as decisões de associações de empresas, na acepção dos artigos 39.° CE e 81.° CE. Por conseguinte, não é necessária uma resposta do Tribunal de Justiça à luz destes artigos.

31. No que respeita aos princípios da igualdade de tratamento e da transparência, há que reconhecer aos Estados‑Membros uma determinada margem de apreciação para efeitos da adopção de medidas destinadas a garantir o respeito desses princípios, que se impõem às entidades adjudicantes em qualquer processo de adjudicação de um concurso público (v., neste sentido, acórdão de 16 de Dezembro de 2008, Michaniki, C‑213/07, ainda não publicado na Colectânea, n.° 44).

32. Com efeito, cada Estado‑Membro pode identificar melhor, à luz de considerações históricas, jurídicas, económicas ou sociais que lhe são próprias, as situações propícias a dar origem a comportamentos susceptíveis de causar desvios ao respeito desses princípios (v. acórdão Michaniki, já referido, n.° 56).

33. Contudo, de acordo com o princípio da proporcionalidade, que é um princípio geral de direito comunitário (v., nomeadamente, acórdão de 14 de Dezembro de 2004, Swedish Match, C‑210/03, Colect., p. I‑11893, n.° 47), as medidas adoptadas pelos Estados‑Membros não devem exceder o necessário para alcançar esse objectivo (v., neste sentido, acórdão, já referido, Michaniki, n.ºs 48 e 61, e de 19 de Maio de 2009, Assitur, C‑538/07, ainda não publicado na Colectânea, n.ºs 21 e 23).

34. Em primeiro lugar, no que respeita aos princípios da igualdade de tratamento e da proporcionalidade, há que salientar que a legislação em causa no processo principal prevê a exclusão automática da participação num concurso público, em caso de propostas simultâneas e concorrentes apresentadas por um estabelecimento estável e por uma ou várias das empresas que dele façam parte.

35. A este respeito, importa sublinhar que a exclusão automática em causa no processo principal se aplica unicamente aos consórcios estáveis e às empresas que os compõem, e não a outros tipos de consórcios, como os de cooperativas de produção e de trabalho e os de empresas artesanais. No que respeita a estes últimos tipos de consórcios, a exclusão só se aplica, por força do disposto no artigo 37.°, n.° 7, do Decreto legislativo n.° 163/2006, quando tenham sido apresentadas propostas concorrentes pelo consórcio em causa e pelas empresas que o compõem, por conta das quais o referido consórcio tenha, ele próprio, apresentado uma proposta.

36. O órgão jurisdicional de reenvio salienta, a este respeito, que se trata de figuras substancialmente idênticas e que não apresentam entre si diferenças de finalidade e de organização que justifiquem uma desigualdade de tratamento.

37. Há, pois, que constatar que a medida de exclusão automática em causa no processo principal, que respeita unicamente à figura do consórcio estável e à das empresas que dele sejam membros e é aplicável aos casos de propostas concorrentes, independentemente da questão de saber se o consórcio em causa participa ou não no concurso público por conta e no interesse das empresas que apresentaram uma proposta, constitui um tratamento discriminatório em detrimento deste tipo de consórcio e que, por conseguinte, não respeita o princípio da igualdade.

38. Importa acrescentar que, ainda que o tratamento em causa seja aplicado indistintamente a todas as figuras de consórcios, ou que o órgão jurisdicional nacional constate que existem elementos objectivos que permitem distinguir a situação dos consórcios estáveis da situação das outras figuras de consórcios, uma regra de exclusão automática como a que está em causa no processo principal não é, em todo caso, compatível com o princípio da proporcionalidade.

39. Com efeito, tal regra comporta uma presunção inilidível de interferência recíproca nos casos em que um consórcio e uma ou várias das empresas que o compõem tenham apresentado, no mesmo procedimento de concurso público, propostas concorrentes, ainda que o consórcio em causa não tenha intervindo no procedimento por conta e no interesse das referidas empresas, sem que tenha sido dada ao consórcio ou às empresas em causa a possibilidade de provar que as suas propostas foram formuladas de forma absolutamente independente e que, por conseguinte, não há o risco de a concorrência entre os proponentes ser influenciada [v., neste sentido, a propósito dos contratos públicos abrangidos, respectivamente, pelo âmbito de aplicação das Directivas 93/37/CEE do Conselho, de 14 de Junho de 1993, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas (JO L 199, p. 54) e 92/50/CEE do Conselho, de 18 de Junho de 1992, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços (JO L 209, p. 1), acórdãos, já referidos, Michaniki, n.° 67, e Assitur, n.° 30].

40. Essa regra de exclusão sistemática, que comporta igualmente, para as entidades adjudicantes, uma obrigação absoluta de exclusão das entidades em causa, ainda que as relações existentes entre estas não tenham nenhuma incidência no seu comportamento no âmbito dos procedimentos nos quais participaram, contraria o interesse comunitário segundo o qual deve ser assegurada a maior participação possível de proponentes num concurso e excede o necessário para atingir o objectivo que consiste em assegurar a aplicação dos princípios da igualdade de tratamento e da transparência (v., neste sentido, a propósito dos concursos públicos abrangidos pelo âmbito de aplicação da Directiva 92/50, acórdão Assitur, já referido, n.ºs 26 a 29).

41. Em segundo lugar, há que referir que, em conformidade com a jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, os artigos 43.° CE e 49.° CE se opõem a qualquer medida nacional que, ainda que se aplique sem discriminação em razão da nacionalidade, seja susceptível de impedir, entravar ou tornar menos atractivo o exercício, por parte dos cidadãos comunitários, da liberdade de estabelecimento e de livre prestação de serviços garantida por estas disposições do Tratado (v., neste sentido, acórdãos de 14 de Outubro de 2004, Comissão/Países Baixos, C‑299/02, Colect., p. I‑9761, n.° 15, e de 9 de Novembro de 2006, Comissão/Bélgica, C‑433/04, Colect., p. I‑10653, n.° 28).

42. Ora, como a Comissão das Comunidades Europeias observa com pertinência, uma regra nacional como a que está em causa no processo principal, que prevê uma medida de exclusão automática em detrimento dos consórcios estáveis e das empresas membros destes, é susceptível de exercer uma influência dissuasiva nos operadores económicos estabelecidos noutros Estados‑Membros, ou seja, por um lado, os operadores que pretendam estabelecer‑se no Estado‑Membro em causa, através da criação de um consórcio estável, eventualmente constituído por empresas nacionais e estrangeiras, e, por outro, os que pretendam aderir a tais consórcios já constituídos, para terem facilitada a sua participação em procedimentos de concursos públicos lançados por entidades adjudicantes desse Estado‑Membro e poderem, assim, oferecer mais facilmente os seus serviços.

43. Essa medida nacional susceptível de ter um efeito dissuasivo nos operadores económicos estabelecidos noutros Estados‑Membros constitui uma restrição na acepção dos artigos 43.° CE e 49.° CE (v., neste sentido, acórdão Comissão/Bélgica, já referido, n.° 29), tanto mais que esse efeito dissuasivo é acentuado pelo risco que representam as sanções penais previstas na legislação nacional em causa no processo principal.

44. No entanto, uma restrição como a que está em causa no processo principal pode eventualmente justificar‑se caso prossiga um objectivo legítimo de interesse geral e desde que seja adequada para garantir a sua realização e não exceda o necessário para atingir esse objectivo.

45. Ora, no presente caso, há que constatar que a restrição em causa, independentemente do seu objectivo legítimo de luta contra os potenciais conluios entre o consórcio em causa e as empresas que o compõem, não pode ser justificada porquanto, como resulta dos n.ºs 38 a 40 do presente acórdão, excede o necessário para atingir esse objectivo.

46. Importa, pois, responder à segunda questão que o direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, a qual, no procedimento de adjudicação de um contrato público cujo montante não atinge o limiar previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18, mas que reveste um interesse transfronteiriço certo, prevê a exclusão automática da participação nesse procedimento e a aplicação de sanções penais tanto a um consórcio estável como às empresas que sejam membros deste, quando estas últimas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do mesmo procedimento, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas.

       Quanto às despesas

47. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

       Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

       O direito comunitário deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, a qual, no procedimento de adjudicação de um contrato público cujo montante não atinge o limiar previsto no artigo 7.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, mas que reveste um interesse transfronteiriço certo, prevê a exclusão automática da participação nesse procedimento e a aplicação de sanções penais tanto a um consórcio estável como às empresas que sejam membros deste, quando estas últimas tenham apresentado propostas concorrentes da proposta desse consórcio, no âmbito do mesmo procedimento, mesmo não tendo a proposta do referido consórcio sido apresentada por conta e no interesse dessas empresas.

 

Assinaturas

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(*) Língua do processo: italiano.